Desde a publicação, em 1999, do livro Cidade Inteira, editado pela Secretaria Municipal de Habitação, mais voltado para uma visão geral das intervenções em favelas, e com um predomínio das imagens fotográficas, não existia um documento abrangente que explicasse o trabalho desenvolvido na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 2000, sob a direção de Luiz Paulo Conde – primeiro, como Secretário de Urbanismo e, posteriormente, como Prefeito – e de Sérgio Magalhães, Secretário de Habitação ao longo deste período.
Nos anos recentes, o interesse nacional e internacional pela experiência carioca gerou diversas publicações no exterior – os folhetos publicados na Argentina pela Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Desenho da Universidade de Buenos Aires; na Inglaterra, pela Architectural Association de Londres, em parceria com o PROURB da UFRJ; e na Harvard University Graduate School of Design –; prêmios internacionais – em 2000, The Sixth Veronica Rudge Green Prize in Urban Design, obtido pelo arquiteto Jorge Jáuregui nos Estados Unidos –; e a apresentação das intervenções em favelas, no Pavilhão do Brasil, 8ª Mostra Internazionale di Architettura (Next) da Bienal de Veneza, em 2002.
Essas publicações documentavam iniciativas fragmentárias que não permitiam uma percepção abrangente e, ao mesmo tempo, detalhada de uma das experiências mais importantes do Brasil e da América Latina, realizada no habitat da pobreza, para acabar com a marginalidade dos assentamentos espontâneos e integrá-los espacial e socialmente à cidade 'formal'. Na dramática realidade urbana do mundo, com o crescimento incontrolado das cidades e das megalópoles nos países em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina – que, segundo o ensaísta norte-americano Mike Davis vai atingir 10 bilhões de pessoas no ano de 2050–, o futuro próximo, neste século, é o de um Planet of Slums. Vivem nesses territórios, em condições de extrema pobreza, mais de um bilhão de habitantes, o que vai se incrementar nas décadas futuras: só no Brasil, existem 6,5 milhões de pessoas morando em favelas, palafitas e assentamentos precários nas áreas marginais e periféricas das cidades.
Em vista dessa realidade, a política da Prefeitura do Rio de Janeiro, na última década do século XX, foi assumir os problemas gerados pela existência de mais de um milhão de habitantes morando nas favelas espalhadas pela cidade e resolver os problemas básicos. Longe da uma atitude burocrática e assistencialista, baseada em iniciativas superficiais e esquemáticas; foram elaboradas propostas diversificadas, com os limitados recursos disponíveis – tanto na escala das intervenções, como na solução da regularização fundiária –, adaptadas às particularidades ambientais, à transformação da qualidade de vida da população, e à criação de uma urbanidade, no espaço da cidade 'informal'. Isto representou uma mudança radical com os programas implementados na cidade até a década de noventa, baseados principalmente na erradicação de favelas e na criação de conjuntos habitacionais periféricos. A iniciativa de integrar a favela com os bairros vizinhos, quebrando seu isolamento e a tradicional imagem de "câncer" urbano, transformando a estrutura espontânea de suas configurações – carente de infra-estruturas e de serviços essenciais básicos –, em uma nova organização espacial, formal e funcional, estabeleceu os parâmetros das intervenções realizadas com a participação dos melhores arquitetos e escritórios cariocas, que assumiram os projetos urbanísticos e arquitetônicos, caracterizados, não somente pelas soluções técnicas e funcionais, mas também pela alta qualidade estética dos prédios e do espaço público.
O livro está estruturado em várias seções que permitem uma aproximação às diferentes escalas, conteúdos e metodologias utilizados nos projetos das 148 comunidades integradas ao Programa. Os testemunhos dos prestigiosos urbanistas, Nuno Portas e Oriol Bohigas, antecedem os textos analíticos de Conde e Magalhães, que explicam as orientações e os objetivos essenciais propostos nas intervenções, ao longo dos oito anos de iniciativas. Uma breve história da evolução das favelas se articula com uma cronologia detalhada dos acontecimentos, decisões, ações das instituições internacionais que apoiaram o programa e a presença de visitantes ilustres – locais e estrangeiros –, que se interessaram em conhecer pessoalmente esta experiência. Em seguida, são apresentados os dois níveis da experiência: o físico – do desenho urbano e arquitetônico –, e o social, definido pela participação comunitária dos moradores das favelas nas decisões sobre as transformações propostas nos projetos.
Na terceira parte do livro são detalhadas, literária e graficamente, as ações em favelas localizadas em três grandes bairros da cidade: Caju, Tijuca e Madureira. A qualidade da informação teórica, o detalhamento dos planos urbanísticos e arquitetônicos, e as fotos das obras realizadas, permitem conhecer em profundidade os componentes conceituais, formais e espaciais de cada projeto. Fica demonstrado, nestas obras, o desejo de mudar radicalmente o nível de vida, a qualidade ambiental dos assentamentos precários, e gerar uma experiência de boa Arquitetura, sem impor decisões estéticas que entrassem em conflito com as tradições culturais dos moradores ou a identidade do sítio.
A procura de qualificação do espaço público é privilegiada sobre a construção de prédios habitacionais – o princípio básico, formulado por Sérgio Magalhães foi "não vamos construir casas, vamos construir cidade" –, com o objetivo de mobilizar as relações inter-pessoais, a dinâmica dos contatos sociais, a participação da comunidade, assumindo-se a significação do que seja o 'cidadão urbano', contido nos benefícios dos serviços e infra-estruturas que tem a cidade 'forma'. O volume é suficientemente consistente para derrubar as críticas, locais e internacionais, sobre a hipotética parcialidade da iniciativa, supostamente mais voltada para uma solução cosmética e cenográfica, com fins políticos e eleitoreiros. Esta afirmação corresponde à análise dos programas desenvolvidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e contido num ensaio de uma pesquisadora canadense – Anne-Marie Broudehoux – em uma coletânea organizada por Nezar AlSayyad, professor na Universidade de Berkeley, que vai ser publicado nos Estados Unidos.
O volume acaba com um útil quadro estatístico das obras e informações sociais das cinqüenta intervenções selecionadas, além de uma bibliografia que, desafortunadamente, não contém algumas das mais recentes publicações sobre o tema. Teria sido útil superar o limite imposto no livro do ano 2000 e documentar as transformações de usos nos espaços públicos, os problemas da especulação com os preços dos terrenos e das habitações e os conflitos nas relações sociais existentes nas favelas, que se mantiveram, uma vez acabada a intervenção do programa. Neste sentido, faltou um testemunho de algumas situações dramáticas criadas pelo tráfico de drogas e a violência que domina parte da dura realidade atual dos assentamentos precários no Rio de Janeiro. Neste panorama de entusiasmo otimista, que imagina um futuro promissor, faltou a dose de angústia contida na imagem cinematográfica do filme Cidade de Deus. A realidade não se manifesta nos dois extremos, mas no relacionamento dialético entre eles.
[esta resenha foi publicada originalmente no website ViverCidades <http://www.vivercidades.org.br>, tendo sido disponibilizada em 24 de setembro de 2004]
sobre o autorRoberto Segre é pesquisador e professor do PROURB/FAU/UFRJ