Espelho das Cidades reúne dois livros distintos de Henri-Pierre Jeudy. A decisão de juntá-los em um só volume deveu-se a sua evidente complementaridade. La Machinerie Patrimoniale (A maquinaria patrimonial) é uma análise crítica da questão patrimonial urbana atual, e Critique de l’esthétique urbaine (Crítica da estética urbana), um questionamento sobre a representação simbólica das cidades contemporâneas.
O autor trata de processos distintos, que podem ser chamados de patrimonialização e estetização urbanas, mas que fazem parte de um mesmo processo contemporâneo e mais vasto que chamo de espetacularização das cidades. Este processo, por sua vez, é indissociável das novas estratégias de marketing, ou mesmo do que podemos chamar hoje de branding urbano, ditas de revitalização, que buscam construir uma nova imagem para as cidades contemporâneas que lhe garantam um lugar na nova geopolítica das redes internacionais. Na lógica contemporânea de consumo cultural, a cultura passou a ser concebida como uma simples imagem de marca ou grife de entretenimento, a ser consumida rapidamente. Com relação às cidades, o que ocorre não é muito diferente: a competição, principalmente por turistas e investimentos estrangeiros, é acirrada e os políticos se empenham para melhor vender a imagem de marca de suas cidades.
Nas políticas e nos projetos urbanos contemporâneos, principalmente dentro da lógica do planejamento estratégico, existe uma clara intenção de se produzir uma imagem singular de cidade. Essa imagem, de marca, seria fruto de uma cultura própria, da dita “identidade” da cidade. Paradoxalmente, essas imagens de marca de cidades distintas, com culturas distintas, se parecem cada vez mais. Essa contradição pode ser explicada: cada vez mais as cidades precisam seguir um modelo internacional extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores multinacionais dos grandes projetos urbanos. Este modelo visa basicamente o turista internacional – e não o habitante local – e exige um certo padrão mundial, um espaço urbano tipo, padronizado. O modelo de gestão patrimonial mundial, por exemplo, segue a mesma lógica de homogeneização: ao preservar áreas históricas, de forte importância cultural local, utiliza normas de intervenção internacionais que não são pensadas nem adaptadas de acordo com as singularidades locais. Assim, esse modelo acaba tornando todas essas áreas – em diferentes países, de culturas das mais diversas – cada vez mais semelhantes entre si. Seria um processo de museificação urbana em escala global: e os turistas acabam visitando as cidades do mundo todo como se visitassem um único museu.
Para Jeudy, a cidade se tornou o principal alvo dos cuidados patrimoniais e por esta razão passou a sofrer cirurgias plásticas ou liftings. Sua restauração permanente é o espelho atual do porvir das sociedades contemporâneas. A conservação patrimonial, muitas vezes obsessiva, corre o risco de petrificar a própria cidade, que se transforma assim em um museu de si mesma. E prevalece o princípio da reflexividade: princípio por excelência da gestão urbana, baseado na idéia de que uma sociedade tem melhores condições de gestão quando se vê refletida em seu próprio espelho. Espelho este que seria tanto das cidades quanto das sociedades contemporâneas.
A noção de reflexividade é, para o autor, um modo determinante de preservação da ordem simbólica de uma sociedade. Mas essa preservação se tornou mundial, “globalizada”. O que interessa é a forma pela qual um certo enquadramento simbólico assegura a transmissão de sentido. A questão patrimonial se torna cada vez mais um problema de transmissão de sentido. O enquadramento simbólico supõe uma determinada gestão das representações comuns de uma sociedade ou de uma cultura. E a transmissão de sentido se vê, por vezes, representada como uma ordem de transmissão. Esta ordem de transmissão, por sua vez, está cada vez mais integrada a um processo, que seria o próprio processo de reflexividade. A lógica patrimonial conduz a uma apologia da reflexividade, ou seja, um estímulo contínuo de se olhar no próprio espelho. O princípio de reflexividade, um dos motores da lógica patrimonial, pode evidentemente provocar efeitos de saturação, como toda longa observação no espelho. Pois a reflexividade patrimonial se desenvolve a partir de um certo exibicionismo cultural: tudo está à mostra, tudo se tornou visível, até mesmo super visível, ou seja, o especular passou a ser espetacular, principalmente nas cidades contemporâneas.
Torna-se, pois, de fato, cada vez mais urgente, a respeito das cidades contemporâneas, um questionamento mais complexo e crítico da noção de patrimônio cultural e das práticas de intervenção urbanas que lhe são tributárias. Henri-Pierre Jeudy busca nos dar ferramentas teóricas para refletir sobre questões bem atuais. O que são exatamente os patrimônios urbanos, ou os ambientes culturais contemporâneos? Em que medida estes devem ou não ser preservados, ou ainda, como se diz, “revitalizados”? Qual o sentido da atual museificação urbana (transformação da cidade em museu)? E o que podemos dizer do uso contemporâneo que se faz da cultura como estratégia principal dos novos projetos ditos de revitalização urbana? O que quer dizer da atual "musealização" (proliferação de novos museus ou centros ditos culturais) que se produz nas cidades globalizadas? Qual o sentido desta estetização generalizada dos modos de vida? A nova produção artística que passa a ter novas funções sociais, além daquelas puramente estéticas, ainda pode ser considerada “arte”? E ainda, o que podemos pensar sobre o novo papel dos artistas, contratados pelo Estado, para “salvar” espaços públicos considerados “problemáticos”? E qual seria o novo papel do arquiteto-urbanista diante desses processos urbanos contemporâneos?
Nas últimas décadas, vêm-se acentuando em todo o mundo iniciativas que desencadeiam processos que podem ser classificados como uma "culturalização" das cidades contemporâneas. Essas intervenções – que tendem sempre a uma espetacularização urbana – muitas vezes se iniciam com uma patrimonialização das próprias cidades, com vistas a uma revitalização urbana que possibilite sua efetiva inserção na competitiva rede global das cidades turísticas.
A noção de Patrimônio Cultural Urbano – e seus conceitos correlatos, historicamente construídos – é hoje tratada como se fosse algo natural, como se a conservação patrimonial se desse quase por instinto, e esta “naturalização”, inicialmente conceitual, se rebate nos próprios procedimentos técnicos e práticos de intervenção e preservação dos patrimônios urbanos. Assim se dá uma “naturalização” dos procedimentos técnicos, decorrente da naturalização das noções conceituais, que se tornou tão intensa a ponto de construir um pretenso consenso entre os discursos teóricos, práticos, institucionais e políticos sobre a questão: “a preservação é uma prioridade da gestão urbana”.
A preservação do patrimônio urbano destaca-se hoje como uma das principais estratégias para a revitalização de certas cidades. Os casos orientais, principalmente das cidades japonesas – onde a questão do patrimônio não tem tanta importância, uma vez que as tradições ancestrais se mantêm vivas no cotidiano da população – poderiam ser vistos, como sugere Henri-Pierre Jeudy, como um contraponto aos casos europeus, ou seja, à atual museificação e petrificação das cidades européias, que chegam a ser consideradas cidades mortas. O caso brasileiro parece estar entre esses dois “modelos”: patrimonialização (européia) e inexistência da noção de patrimônio (oriental), muito embora os procedimentos técnicos e práticos sejam, em sua maioria, uma simples importação do savoir-faire europeu.
Pensar em outra forma de intervir torna-se, então, urgente, diante da tensão atual entre as forças de preservação e de destruição, que têm como principal palco de batalha as cidades contemporâneas globalizadas. No Brasil, os projetos de revitalização urbana de caráter patrimonial, realizados por intermédio da conservação do Patrimônio Cultural, vêm-se multiplicando em diferentes cidades consideradas históricas. A maior parte desses projetos repete a mesma fórmula, sem questionamento crítico: patrimonialização, estetização, espetacularização, padronização dos espaços, e o que seria mais grave, gentrificação (expulsão dos moradores mais pobres das áreas de intervenção que recebe moradores mais abastados ou novas funções elitizadas).
O projeto, dito de revitalização, do Centro Histórico de Salvador (Pelourinho), por exemplo, literalmente “limpou” o sítio histórico ao expulsar seus habitantes e suas respectivas práticas cotidianas populares e substituí-las por simulacros culturais turísticos. O antigo centro, tombado pela UNESCO como patrimônio mundial da humanidade, vem sendo restaurado desde 1992 (hoje na 7a etapa, com auxílio do BID, programa Monumenta), através de um processo de patrimonialização – restauração de fachadas, do espaço público (muitas vezes criados em antigos quintais das casas coloniais) – de mudanças de uso e de gentrificação – com a remoção de mais de 2000 famílias para dar lugar a restaurantes, bares e lojas de souvenirs para turistas – que faz parte de uma agenda maior, de um plano estratégico da agência estadual de turismo. O plano, que visa vender o produto cultural “Pelourinho” para turistas – conta ainda com uma programação de animação cultural nas praças criadas: “Pelourinho Noite & Dia”- que visa exatamente dar nova “vitalidade” ao local. A nova vitalidade inventada para turistas, com baianas fantasiadas para fotos e rodas de exibição de capoeira regional, é totalmente artificial, cenográfica. O projeto faz parte de um contexto político específico, mas se insere em uma estratégia de marketing genérica que visa construir uma nova imagem urbana (no caso, da primeira capital do país), que estaria a princípio ancorada na valorização da sua “identidade” cultural singular.
Espelho das cidades é uma excelente contribuição no sentido de se tentar desnaturalizar, através de um questionamento teórico-crítico, algumas noções e conceitos ligados tanto ao processo de patrimonialização quanto ao de estetização das cidades contemporâneas, cidades globalizadas, cada dia mais padronizadas e uniformizadas. Uma das maiores contribuições deste livro estaria portanto no questionamento dos atuais projetos urbanos contemporâneos, ditos de revitalização urbana, que vem sendo realizados no mundo inteiro segundo uma mesma estratégia – genérica, homogeneizadora e espetacular – de marketing ou ainda de branding (mais recente substituto contemporâneo do planejamento) urbano. Henri-Pierre Jeudy busca ir além da simples crítica `a espetacularização urbana contemporânea, hoje já recorrente no meio acadêmico, e, ao homenagear seu mestre, Henri Lefebvre, nos indica uma pista para se tentar sair deste ciclo vicioso contemporâneo – do especular que se torna espetacular – que seria de se vislumbrar na própria vida cotidiana das cidades contemporâneas, e de seus cidadãos, caminhos alternativos a este processo.[este texto é a apresentação da edição brasileira do livro de Henri-Pierre Jeudy]
sobre o autorPaola Berenstein Jacques, Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora CNPq