Quando Leopoldo Lugones dizia que a Pátria devia ser “olhada com melhores olhos” estava perfilando uma semelhança que, sem dúvidas, testemunha a trajetória de Federico Ortiz (1929-2005). No duplo olhar do historiador da arquitetura e do fotógrafo, Federico haveria de plasmar uma documentação excepcional na segunda metade do século XX sobre o que foi a arquitetura e a paisagem da Argentina.
O fez por convicção e talento, alinhado com as pesquisas promovidas por Mario Buschiazzo no Instituto de Arte Americano da Universidade de Buenos Aires que fundara em 1947, mas, às vezes, a partir de sua função docente, que Federico sempre caracterizou com sua iniciativa e sua reflexão autônoma.
O arco do tempo de sua leitura fotográfica talvez nos leve a 1954, quando, estudante ainda, apresentara uma Exposição de fotografias nas Primeiras Jornadas de Arquitetos que a Sociedade Central organizara em Córdoba visando a consolidação do espírito comunitário da profissão em tempos de conflitos institucionais. Federico, que já exercia uma liderança visível entre os estudantes de arquitetura, como se demonstraria na eleição majoritária que seus companheiros fizeram em 1955 para representá-los, decidiu com o Centro de Estudantes acompanhar essa reunião com uma mostra. Aquelas fotografias nos evidenciam a identificação temática que Federico tinha com a arquitetura histórica ao transitar outra vez o caminho que Buschiazzo já havia traçado com a Exposição de Arquitetura Colonial Argentina, apresentada em Lima por ocasião do V Congresso Pan-americano de Arquitetos quando corria o ano de 1947.
Mas Federico desde o início se identificou, como propunha Buschiazzo, com um olhar amplo e abrangente, que não se circunscrevia a um tempo histórico, mas que era capaz de ampliar a visada para todos até a contemporaneidade, auscultando, ao mesmo tempo, a extensa geografia de nosso país. Justamente nisso consistiu sempre o sentido nacional que caracterizou a busca de Federico Ortiz em sua disciplina de historiador, nessa capacidade de rastrear não só os testemunhos factuais da obra, mas também as fontes eruditas que informavam a base de um desenho academicista nos tempos em que o país olhava mais para fora do que para dentro de suas fronteiras.
Essa dialética do nacional, das buscas de raízes que “o inglês” Ortiz reconhecia diretamente na diversidade de seus próprios ancestrais, lhe permitiu construir uma concepção intelectual que foi consolidando sobre um conhecimento e uma reflexão de nossa história. Uma história que se distanciava das versões oficiais, mas que se podia reconstruir nesse profundo estudo da paisagem, onde a arquitetura lhe dava o suporte de referências de identidades ricas e variadas, que expressavam os modos de vida da sociedade argentina através do tempo.
Mas, simultaneamente tinha uma visão universal. Com a concentração de informações que sua participação no mundo publicitário lhe facilitava, Federico podia dimensionar com clareza os traços emergentes desse horizonte cultural argentino que se nutria, com uma inegável capacidade de absorção, daquilo que as usinas do pensamento contemporâneo, externas ao país, geravam.
A fotografia sempre foi para Federico uma maneira melhor de olhar a pátria. Não só por sua probidade profissional de fotógrafo, paciente, tenaz e criativo, mas também porque demonstrava que não era um simples capturador de objetos, mas um inteligente selecionador de imagens. A preocupação de Federico não se esgotava nos sentidos artístico e documental de sua fotografia, salientando ainda o caráter essencial de um meio de comunicação, que sua vinculação publicitária potenciava na possibilidade de multiplicar o conteúdo da mensagem. Inclusive não faltariam em sua tarefa publicitária essa cumplicidade entre suas fotos de arquitetura com as campanhas para revalorizar a cidade, como aquelas das múltiplas “caras” de Buenos Aires recolhidas das terracotas ornamentais.
Federico era capaz de encontrar os valores de nossa arquitetura dos diversos pontos de vista que sua formação historiográfica lhe permitia. Desde a leitura erudita do academicismo francês ou italiano, até a valorização precisa da arquitetura moderna, o que lhe permitiu, pioneiramente, valorar a obra recente do grupo SEPRA ou matizar o mítico momento de uma “modernidade” internacionalista.
Foi capaz de registrar a arquitetura popular e anônima dos casarios do norte. Ainda me recordo da sonora gargalhada com que batizou como “O Partenón de Añatuya” aquele rancho de Santiago, construção de madeira que mostrariam, como havia apreciado na obra de Laugier de 1755, a gênese da arquitetura grega na humilde cabana de troncos. Esse mesmo rancho que hoje, nesta mostra-homenagem a Federico, continua nos manifestando a razão de sua capacidade de emoção ante as genuínas expressões de uma arquitetura sem arquitetos.
A leitura que Federico fez de nossa arquitetura abarcou o extenso do território desde o Noroeste até a Patagônia. Sempre pôde captar, junto à arquitetura, a paisagem e a flora. Tinha uma visão da arquitetura no território, mas, com rapidez, essa maneira de olhar melhor, o levou a manejar com deleite a captação emergente do detalhe. As tomadas de Federico, sobre nossa arquitetura art nouveau e art déco, são indicativas não somente da qualidade desses detalhes, mas também da compreensão que estes movimentos se reformulavam entre nós justamente na entidade paradigmática dos detalhes.
Poucos como Federico compreenderam a ambigüidade contraditória de nossa arquitetura em tempos em que quisemos ser europeus. Uma leitura contextualizada na busca das fontes acadêmicas, nos “fora de série” da arquitetura francesa dos séculos XVII e XVIII, no funcionalismo britânico e na maniera italiana, em definitivo nos permitiram aquela pioneira aproximação que se concretizaria no livro “A arquitetura do liberalismo na Argentina” (1968). Uma publicação que foi capaz de introduzir o debate não somente sobre a arquitetura, mas também sobre as conseqüências daquele modelo do século XIX de país.
Ali Federico apresentou não somente seu arquivo de fotos e documentação, mas estruturou uma leitura que foi retomando com os anos até culminar com seus maduros ensaios na “Historia da Arte Argentina” da Academia Nacional de Belas Artes. Tive o privilégio de compartilhar com Federico vários trabalhos e textos que me permitiram cobrir quase todos os períodos históricos da arquitetura argentina. Sempre me surpreendia sua capacidade de síntese para enquadrar historicamente o fato arquitetônico, para desenvolver a partir dele as reflexões sobre contexto que o explicava e para fazer uma leitura formal e funcional sempre contemporânea.
Aprendi com Federico a magnífica destreza de síntese publicitária com a que “batizava” a suas fotos, a compreensão de que essa nota ao pé da foto era o complemento essencial para começar a olhar, para ensinar a compreender e para ressaltar aquilo que se queria mostrar. Uma capacidade jornalística treinada não só na possibilidade de exibir o objeto da melhor maneira, mas também de fazer útil e necessária sua própria leitura. O humor e a ironia foram sempre seus recursos para dar dimensão humana ao que costumava aparecer “afetado de seriedade” ou o expressivo da soberbia em nossa arquitetura... ou nos gestos prepotentes de nossos arquitetos.
A obra de arquitetura que Federico fotografava tinha a vitalidade que lhe conferiam as visões complementarias. Incluía o registro documental, mas também a preocupação artística do enquadre, a relação contextual com o meio físico, a paisagem ou com a atmosfera vital dos que a usavam, mas também ia ao detalhe que, com perspicácia, sabia extrair do conjunto para lhe dar uma autonomia em sua mensagem.
Federico sempre teve para nós uma capacidade de nos ensinar a arquitetura argentina indo desde a “palavra” até a “imagem”, uma síntese onde ambas adquiriam o caráter persuasivo de um discurso compacto e preciso. Nos ensinou a olhar com uma reflexão que se foi enriquecendo com o tempo e que nos deixou, aos que fomos seus alunos e depois seus companheiros de pesquisa, um legado para seguir admirando o que ele admirou, seguir valorizando a arquitetura argentina e cultivar por ela o carinho que ele manifestou em seus textos e em suas magníficas fotografias.
Uma homenagem a Federico Ortiz e suas fotografias é sempre uma homenagem à arquitetura argentina, porque ele soube vê-la com olhos melhores (1).
[tradução ivana barossi garcia]
notas
1
GUTIÉRREZ, Ramón; MÉNDEZ, Patrícia (org). Federico Ortiz. Miradas sobre la arquitectura. Coleção FotoArquitectura, nº 1. Buenos Aires, Cedodal, 2005. ISBN: 978-987-1033-14-0.
sobre o autor
Ramón Gutiérrez é arquiteto argentino. Professor de História da Arquitectura. Consultor da UNESCO para temas de Patrimônio na América Latina. Pesquisador do Conselho de Pesquisas Científicas da Argentina. Autor de numerosos livros sobre arquitetura iberoamericana. Diretor do Centro de Documentação de Arquitetura Latinoamericana (CEDODAL) em Buenos Aires.