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LEONIDIO, Otavio. Um quarto de século de "Arquitetura contemporânea no Brasil". Homenagem a Yves Bruand. Resenhas Online, São Paulo, ano 05, n. 060.03, Vitruvius, dez. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/05.060/3121>.


Contrariando todas as expectativas e um temor mais ou menos generalizado, 2006, tudo indica, vai mesmo acabar e antes que isso aconteça é preciso lembrar de um dado, salvo engano, esquecido – os 25 anos de publicação de Arquitetura Contemporânea no Brasil, de Yves Bruand, pois a primeira edição é de 1981.

Para quem, como eu, ingressou na escola de arquitetura no início dos anos 1980, o livro constituiu uma espécie de marco referencial. A primeira razão disso era a própria incipiência do mercado de publicações de arquitetura à época, sobretudo em termos de arquitetura brasileira. Livros tão importantes quanto Depoimento de uma geração, de Alberto Xavier (1987) e Registro de uma vivência, de Lucio Costa (1995) ainda não haviam sido lançados, e, à exceção de Quatro séculos de arquitetura, de Paulo Santos – publicada originalmente em 1965 e republicada em 1977 e 1981 –, as principais obras de referência sobre a arquitetura moderna brasileira (Brazil Builds, de Philip Goodwin, 1943; Modern Architetcure in Brazil, de Henrique Mindlin, 1956; e Lucio Costa: sobre arquitetura, organizado por Xavier, 1962) só podiam ser encontradas em sebos ou bibliotecas.

Bem entendido, a importância da publicação de Arquitetura Contemporânea no Brasil não se mede apenas, nem principalmente, pela pobreza do meio editorial em que originalmente se inseriu. Diferentemente das obras mais ou menos panorâmicas que o precederam, o livro de Bruand era a primeira obra verdadeiramente compreensiva da arquitetura “contemporânea” (já na introdução, Bruand explicita suas restrições ao termo “moderno”) brasileira. Na verdade, é a primeira história stricto sensu da arquitetura brasileira do século XX, o que, em si mesmo, já demonstra sua extraordinária importância.

Curiosamente, não lembro de haver à época nenhuma valorização especial do livro de Bruand (ao menos no círculo acadêmico em que acabara de ingressar), e se o comprei (uma primeira edição) foi por pura intuição, alimentada possivelmente por um desinteresse congênito pelas estrelas editoriais da época – Michael Graves, Mario Botta, etc. Na verdade, creio que ainda hoje o livro é visto com certo desdém pelos brasileiros, e para isso contribuiu a vaga historiográfica revisionista iniciada por aqui na década de 1990. Identificado muitas vezes (e não raro de modo bem pouco crítico) com o que Carlos Alberto Ferreira Martins chamou, num trabalho pioneiro e inspirador (1), de constituição da “trama narrativa” da arquitetura moderna brasileira, o livro de Bruand, parece ter passado diretamente do estágio de indiferença (digo de parte dos comentadores, de vez que, em termos editorias, até onde sei, o livro foi desde cedo muito bem sucedido) ao estágio da restrição. Restrição de ordem vária, a principal delas sendo sempre a de ter dado seqüência ao esquema interpretativo iniciado por Lucio Costa em suas explicações acerca do sucesso da arquitetura moderna brasileira. Um comentador chegou mesmo a censurar Bruand porquanto “não propôs-se simplesmente a tarefa de estabelecer a história fatual do modernismo brasileiro” (2).

No meu caso, sempre tive uma relação muita diversa com Arquitetura contemporânea no Brasil. Ao lado de umas poucas obras (Por uma arquitetura, de Le Corbusier, A linguagem clássica da arquitetura, de John Summerson, e do livro do Mindlin, que herdei de minha avó Maria Luiza), constituiu a base de minha biblioteca de arquitetura e sempre senti uma certa segurança quando pensava que podia recorrer a ele sempre que precisasse de informações confiáveis e juízos esclarecedores sobre a arquitetura moderna brasileira. Uma sensação que não desfez depois de tantos anos, e que se alimenta de releituras esporádicas mas sempre prazerosas.

Embora não poucos autores tenham, nos últimos anos, analisado, de modo mais ou menos criterioso, o livro de Bruand, continuo com a sensação de que a obra ainda não foi objeto de uma análise crítica proporcional à sua importância. De um modo geral, não me parece que se tenha avançado muito desde que, em sua dissertação de mestrado, Carlos Martins identificou a dependência do esquema interpretativo de Bruand para com as idéias de Costa. Minha impressão, ao contrário, é que, na maior parte dos casos, as idéias originais e inspiradoras de Carlos Martins foram vulgarizadas, quer dizer, simplificadas ao extremo. Resumidamente, parte-se quase sempre da pressuposição de que Bruand teria dado seqüência, ingenuamente ou não, ao esquema (tido como ideológico, de vez que interessado) proposto por Costa. Mais do que equivocadas, creio que tais restrições padecem de um vício de origem, definido por uma matriz historiográfica essencialmente ideológica; uma matriz que, por isso mesmo, toma a priori as idéias como se fossem sempre ideologia. Não surpreende, portanto, que as principais questões levantadas pela publicação de Arquitetura contemporânea no Brasil permaneçam ainda hoje sem resposta, a principal delas sendo: como e porque surgiu, naquele exato momento, pelas mãos de um francês, a primeira história da arquitetura moderna brasileira?

De modo excessivamente especulativo (e um pouco irresponsavelmente), me arriscaria a dizer que, a favor de Bruand, bem mais do que a nacionalidade, pesou o fato (inteiramente contingente, como aliás Bruand reconhece na introdução do livro) de ter escrito sua obra num momento em que, pela primeira vez, era possível experimentar uma separação vis-à-vis de uma produção que, mal ou bem, havia vivido um continuum desde pelo menos o início da década de 1930. A inauguração de Brasília e o Golpe de 1964 teriam implicado, nesse sentido, não necessariamente uma crise nas condições de produção da arquitetura brasileira (ou seja, uma crise do métier, da práxis da arquitetura), senão o surgimento de condições de visibilidade e compreensão diversas das vigentes até então, com conseqüências imediatas mais epistemológicas que práticas. Desse ponto de vista, a crise vulgarmente identificada com o período 1957-1964 seria antes de tudo uma crise narrativa – a crise das condições narrativas que tornaram possível a consolidação, melhor, a reificação de algo chamado “arquitetura moderna brasileira”.

Nesse sentido, a diferença do livro de Bruand relativamente aos panoramas que o precederam adviria do fato de que, pela primeira vez, produzia-se uma narrativa descolada, digamos, de um curso de eventos considerados até então como estando “em processo”, sem nenhum encaminhamento ou desfecho definido. Um processo do qual os enunciadores (os estrangeiros incluídos) sentiam-se partícipes diretos. Embora um pouco tardio (o que é plenamente justificável em se tratando do autor), um depoimento de Lucio Costa, de 1979 (dois anos antes, portanto, da publicação do livro de Bruand) dá bem a medida da alteração desse quadro narrativo:

“Assim como a morte do Corbusier foi um alívio para todo mundo, o fato de Brasília ter sido construída foi um alívio para todos os arquitetos que finalmente se livraram daquele pesadelo, daquela arquitetura moderna que vinha desde 36 até Brasília. Agora é preciso esclarecer: esta arquitetura que ocorreu desde a época do Ministério se deveu fundamentalmente a Oscar Niemeyer. Sem o Oscar não teria havido esta arquitetura que surpreendeu os países europeus, a América do Norte, Japão, depois de um período de matança, de guerra, de destruição sistemática, bombardeios, bomba atômica. Enquanto isso construiu-se aqui o Ministério da Educação, e o Oscar, convidado pelo Juscelino, fez a Pampulha. Ele surgiu como arquiteto durante a construção do Ministério, onde sua contribuição foi fundamental, e na oportunidade oferecida em Minas, de fazer a Pampulha, ele se revelou uma personalidade fora de série. O movimento da arquitetura dita brasileira contemporânea, no fundo, é Oscar Niemeyer. O resto era arquitetos que acompanhavam mais ou menos o que ele fazia: o Reidy, esse, aquele outro, todos mais ou menos dentro do esquema, naquela tendência de querer renovar um pouco a arquitetura mais racionalista que havia anteriormente com esse novo elemento que dava uma certa graça, como nenhum dos grandes arquitetos anteriores havia contribuído, com elegância, um certo charme./ Então ficou um receituário que compunha arquitetura. Simultaneamente, toda a mediocridade que o havia acompanhado começou a fazer caricatura daquilo que ele fazia. Não só arquitetos medíocres, mas construtores e engenheiros; foi ficando um maneirismo, querendo imitar, aquele negócio com colunas em V, telhados em duas águas, uma série de coisas foram se repetindo, foram se espalhando pelo país. Isto chocava muito, arquitetos estrangeiros, que vinham à procura de coisas das coisas verdadeiras, antes de ver as obras autênticas, qualificadas, viam tanta coisa imitando, medíocre, e aquilo foi chateando um pouco, desgostando./ Por isso quando o Oscar escreve, fala ‘nós isso, nós aquilo’, ele está falando é dele, a ‘arquitetura brasileira’ é a arquitetura dele, do que ele fez, do que faz, porque é um fato, uma realidade, ele está dizendo a verdade de uma forma como se fosse modesta: ‘nós, a arquitetura brasileira’” (3).

Acaso alguém imagina Lucio Costa afirmando isso na década de 1950?

Mas minha relação com Arquitetura contemporânea no Brasil foi também marcada pelo encontro com seu autor, quando, junto com Ana Luiza Nobre, João Masao Kamita e Roberto Conduru, organizamos, em 2002, seminário comemorativo dos 100 anos de nascimento de Lucio Costa. Se me lembro bem, o nome de Bruand foi um dos primeiros da lista de convidados, e foi imediata e unânime a idéia de convidá-lo para proferir a conferência de abertura do colóquio.

Nenhum de nós sabia à época como localizar Bruand (et pour cause...); sabíamos que recentemente havia participado da banca de defesa de tese de doutorado de uma colega, ocorrida em Paris, e foi essa colega que nos forneceu seu número de telefone. Por sorte, fui incumbido de contatar Bruand.

Desde o primeiro contato, ele foi de uma gentileza invulgar, e não foi preciso mais do que dois ou três telefonemas (e da ajuda do então adido cultural do Consulado Francês no Rio de Janeiro, Marc Bauchamps, que conseguiu junto à Air France os bilhetes aéreos) para acertarmos sua vinda ao Brasil.

Sua participação foi, a meu juízo, o ponto alto do seminário Um século de Lucio Costa. Com voz doce e fala pausada, falando um português claro para um auditório lotado e, até onde pude perceber, emocionado, Bruand falou de Lucio Costa com muita familiaridade. A familiaridade de quem tinha estado mais de uma vez com Costa e, sobretudo, conhecia muito bem sua obra. Mesmo aparentando algumas vezes cansaço, fez questão de comparecer à maioria das sessões, demonstrando sempre grande interesse pelas falas dos colegas brasileiros.

Findo o seminário, antes de embarcar para Salvador, a caminho de casa, Bruand sugeriu, a Ana Luiza Nobre e a mim, que fôssemos a Niterói. Queria ver o MAC de Oscar Niemeyer. Era um domingo de sol, daqueles que faz o branco dos edifícios de Niemeyer latejar. Bruand desceu do carro, câmera na mão, e, pelo tempo que lá estivemos, pela primeira vez desde que o recebemos no Hotel Glória, no dia de sua chegada ao Brasil, não nos deu muita atenção. Percorreu todos os caminhos, subiu as rampas, fez muitas fotos. Parecia absorvido pela presença daquela nova realização do grande protagonista da arquitetura moderna brasileira. Uma arquitetura que, passados 25 anos da publicação de Arquitetura contemporânea no Brasil, deve renovar a sua gratidão para com Yves Bruand.

notas

1
MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Arquitetura e Estado no Brasil. Elementos para uma ivestigação sobre a constituição do discurso moderno no Brasil; a obra de Lucio Costa (1924-1952). São Paulo: FFLCH-USP, Dissertação de Mestrado, dez. 1987.

2
PUPPI, Marcelo. Por uma história não moderna da arquitetura brasileira. Campinas, PONTES/CPHA/IFVH, 1998, p. 100. Grifos meus.

3
COSTA, Lucio. Lucio Costa (entrevista a Álvaro Hardy, Éolo Maia, José Eduardo Ferolla, Maurício Andrés e Paulo Laender), Pampulha, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, nov./dez. 1979, p. 16, grifos meus.

sobre o autor

Otavio Leonídio, arquiteto, doutor em história, coordenador acadêmico e professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

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