O legado do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) começa a ser avaliado de maneira crítica e criteriosa. Concentrando-se mais geográfica do que temporalmente – são analisadas as atividades da regional São Paulo do SPHAN entre 1937-75 – o livro de Cristiane Gonçalves é promissor. Reunindo as qualidades necessárias à empreitada – pesquisa acadêmica (o livro é resultado de sua dissertação de mestrado defendida na FAU/ USP em 2004), ensino (a autora é professora no Curso de Especialização em Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro, da UNICSUL, em São Paulo) e prática profissional (como arquiteta junto ao escritório Kruchin Arquitetura, também em São Paulo) – a atual doutoranda da mesma FAU/ USP mostra como eram, de fato, realizadas as “restaurações” do órgão em sua versão paulista, com destaque para a figura de Luis Saia.
Partindo da análise criteriosa de quatro estudos de caso – Igreja de São Miguel Paulista (1939-41), Sede e Capela do Sítio Santo Antônio (1940-47), Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia (1958-61) e Fazenda Pau d’Alho (1969-75) – investigando as etapas de projeto em cada um deles, da pesquisa histórica e de iconografia, passando pelas técnicas utilizadas nos levantamentos, até a solução e as especificações adotadas, a autora chega, finalmente, a crítica do método, da técnica e da “teoria” implícita em cada obra e na série como um todo.
Lançando mão de farta documentação – processos de tombamento, pesquisas, fotografias, depoimentos e correspondência entre a regional e a direção central do SPHAN – levantada junto aos arquivos da 9ª Superintendência Regional/ SP do IPHAN e na “árdua” tarefa de pesquisa no Arquivo Noronha Santos, no Rio de Janeiro, o trabalho deve muito de sua consistência ao rigor das análises in loco, não obstante suas considerações dizerem respeito a todo o processo envolvendo as intervenções, dificuldades e contexto da época incluídos.
Salta aos olhos as diferenças entre a regional SP e a direção nacional, principalmente no complicado caso da Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia, indicando o que muita gente (que pesquisa seriamente o assunto) já sabe: o “SPHAN” é muito menos monolítico do que comumente se imagina e as diferenças e discussões internas talvez não sejam assim tão secundárias.
Outro ponto de destaque é o flagrante na “evolução” do uso do concreto armado nas intervenções (São Miguel e, fundamentalmente, Sítio Santo Antônio), assunto que por si só, daria uma bela pesquisa sobre a história da técnica no país.
Como se disse, o trabalho é auspicioso: que o caminho aberto seja trilhado por outros. Afinal a estória do SPHAN, muitas vezes contada pelos próprios protagonistas ou herdeiros, deve se tornar história, tal como distingue Pierre Nora (1). Aí, enfim, a velha estória cederá lugar à nova história.
notas
1
"A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica”. NORA, P. "Entre memória e história: a problemática dos lugares". Projeto História n° 10. São Paulo, PUC/SP, dez 1993, p. 8-9.
sobre o autor
Ricardo Rocha, Professor Adjunto do Curso de Arquitetura da Universidade Federal de Santa Maria, Doutor em História da Arquitetura pela FAU-USP, Ex-Presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria, Conselheiro do DOCOMOMO-RS