A experiência profunda do belo implica a estranheza provocada por certa sensação de revelação, de perturbação, como de redescobrimento ante aquilo que nos fascina para comover-nos. E quando essa aparição se desvanece, na memória intelectual e sensorial de nosso espírito deixa um sedimento e um anseio que impulsiona a reiniciar sua procura. “Algo me faz falta: uma empatia que instantaneamente me afeta quando experimento a beleza. Antes de conhecê-la, não advertia ou já não sabia que me faltava, mas a renovação desse conhecimento me evidencia que sempre me fará falta. A beleza existe, ainda que suas aparições são relativamente pouco freqüentes e, normalmente, se produz em lugares inesperados.” - escreve Peter Zumthor na convicção de seu sentimento pela beleza, em sua determinação de impregnar seus edifícios dela para dotá-los de alma, de criar arquitetura capaz de apelar à dimensão sensual do corpo e à dimensão emocional do intelecto.
Dois pequenos volumes, Thinking Architecture e Atmospheres (Birkhäuser, 2006), reúnem o pensamento estético deste arquiteto que começou formando-se como artesão, cujo trabalho se distingue por uma incomparável maestria sobre o material e pela intensa impressão espacial que emanam seus edifícios. Justapostos estes a suas reflexões, se compreende que essencialmente a obra de Peter Zumthor é uma busca de realização da beleza depurada através da arquitetura. E, ao mesmo tempo, uma perseguição da depuração da própria arquitetura, de sua elevação ao absoluto no qual cada edifício devêm um ente indissoluvelmente aferrado à realidade como concreção desta. “Um edifício que seja ele mesmo, sendo um edifício, não representando alguma coisa, somente sendo. Aquilo que me interessa e no que quero concentrar minhas faculdades imaginativas é na realidade da específica atribuição do edifício relativa ao ato ou estado de habitar. A realidade da arquitetura é o corpo concreto no qual formas, volumes e espaços adquirem entidade. O único que contêm idéias são as coisas”.
A obra de Zumthor expõe a necessidade de fomentar uma arquitetura propositiva – “capaz de prover os indivíduos de condições espaciais naturais para suas rotinas diárias” - cuja transcendência reconfigure o ato de habitar, de abrigar, para ser ademais um lugar onde os cinco sentidos vibrem. Os arquitetos foram perdendo o instinto e a necessidade de criar essa dimensão, transformando freqüentemente suas obras num feito vulgar pela ausência dessa vontade que pode transformar o pensar e o construir num feito que aproxime ao sagrado. A criação destes mundos - não necessariamente mediante o uso de especulações dialéticas nem parafernálias estruturais - tem mais a ver com os detalhes, a idéia de apalpar, cheirar, escutar, ver… ao sermos elevados ao sentir estamos imersos num universo único e particularmente nosso.
Peter Zumthor sustém que a atividade mental do arquiteto consiste em imaginar, “em compor as coisas primeiro em nossas cabeças e depois transladá-lo ao mundo real”. Questionar-se sobre o objeto a desenhar e de qual será sua relação com o entorno circundante, para dotá-lo de uma identidade e individualidade fundamentada em algumas qualidades sensuais, capazes de afirmar a existência do edifício a partir da percepção de sua dimensão materialmente tangível e da dimensão integrada pelo subjetivo inerente a sua vivência e apreciação.
Como movido por uma racional vontade de desvelar os mistérios da realidade, este artesão minucioso insta a usar o material alquimicamente, explorando a infinidade potencial que pode extrair-se de toda matéria: “Pega uma pedra: manipula-a. Cada vez devirá algo diferente. Os materiais reagem entre si e têm seu próprio resplendor, então da composição material emerge algo único”. A consciente experiência da realidade se produz através da integração das reações dos sentidos, estimulados e inspirados por um contato com a matéria que adquiriu uma distinta essência depois desse tratamento de aprofundamento para descobrir uma distinta beleza latente. A memória, como preservadora de lembranças das atmosferas dos lugares que recordamos como belos, é para Zumthor ferramenta indispensável nesse labor de sentir e reformular a matéria.
Ser um colecionador de lembranças de atmosferas, reais e inventadas, povoadas de sensações sutis e elegantes aproxima Zumthor de ser um sublimador da realidade que, conseqüentemente, concebe uma visão idealizada da arquitetura e, por extensão da própria essência da vida: “Para mim, os edifícios possuem um belo silêncio que associo com atributos como compostura, durabilidade, presença e integridade, também com a calidez e a sensualidade. É belo estar fazendo um edifício e imaginá-lo em total serenidade”. Poderia-se afirmar que a Zumthor lhe agrada pensar que sua arquitetura é cenário perfeito para vidas dedicadas à contemplação, à procura de uma culminação do humano.
Peter Zumthor proclama nestes escritos uma forma de fazer que além de cumprir com os interesses materiais e ser um produto adequadamente formal – fazendo ressoar de novo as teorias platônicas sobre a beleza - satisfazer o prazer espiritual, sem necessidade de contrapor ou separar estas idéias. O corpo e a alma como um feito único e indiferenciado.
Desinteressado pela arquitetura recente, encontra suas afinidades na obra de indivíduos contemporâneos alheios ao âmbito desta. Fazer arquitetura equivalente a um filme de Aki Kaurismaki; desenhar como John Cage cria música. Sugerindo assim a idéia de uma consciência de percepção e imaginação da realidade da qual nasce um espírito e atitude estética que transcende o concreto meio de expressão.
Seu pensamento indaga sobre o reconhecimento da essência trans-temporal da arquitetura para descobrir nela o que é e como se define o humano. Zumthor não sugere que através de seu trabalho e sua reflexão pretenda evitar para nossa época um esquecimento do sentimento do belo; no entanto esta arquitetura, onde a noção da beleza e da poesia da natureza e a alma do homem pulsam para introduzir-se na substância vital, se corporiza – usando palavras da filósofa María Zambrano - como uma versão nova do eterno.
[tradução de Ivana B. Garcia]
sobre os autores
Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste, titulares do escritório ¿btbW, são autores do livro “Enric Miralles: Metamorfosi do paesaggio”, editora Testo & Immagine, 2004