Inicialmente proposta como dissertação de mestrado, Arquitetura metropolitana, de Denise Xavier, ganha agora formato de livro, tornando-se acessível a um número maior de leitores e não apenas aos que já se encontraram com seu conteúdo nos exemplares bastante manuseados de nossas bibliotecas, a indicar o interesse dessas páginas.
A apresentação, feita pelo professor Carlos Martins, é passagem imperdível, pois esclarece a dimensão acadêmica do trabalho e, ao mesmo tempo, sugere desdobramentos de leitura. E essa leitura tem como eixo a análise de quatro edifícios da São Paulo de 1950. Eles constituem o mote da narrativa e o texto fluente da autora nos oferece a possibilidade de refletir, por essa via, sobre o papel da arquitetura na ordenação dos centros urbanos e na vida coletiva, que é a forma de sociabilidade das cidades.
A autora analisa com rigor os quatro edifícios escolhidos como principal objeto de estudo: o edifício do jornal O Estado de S. Paulo, os edifícios Itália e Copan e o Conjunto Nacional são apresentados como os protagonistas da cidade que se faz metrópole, para tanto exigindo novos equipamentos e estimulando mudanças no modo de vida e nas relações sociais dos habitantes.
Embora analisados separadamente, os quatro projetos estabelecem vínculos entre si. Todos se caracterizam pelo uso misto e dialogam com a situação metropolitana, propondo espaços voltados para a vida coletiva. Dois deles nascem do traço de um mesmo arquiteto, dois são obra de um único empreendedor, outros dois se situam em esquinas, três são planejados para uso também hoteleiro – ainda que apenas um deles alcance esse objetivo – e, por fim, todos aspiram a ter seu nível térreo compartilhado pela cidade e seus habitantes, desejo concretizado com êxito.
A proposta de observar o objeto arquitetônico integrado ao contexto urbano é explorada pela autora a partir de diversos vetores, que buscam dar conta da complexidade da trama urbana. O mais evidente, estabelece a relação entre os edifícios e o plano de avenidas projetado por Prestes Maia que, com seus traçados e anéis concêntricos, busca imprimir direções de expansão à cidade, na tentativa de ordenar seu crescimento. A arquitetura margeia esses traçados e se resolve em altura, com arranha-céus que exibem a modernidade da nova década à medida que concretizam a verticalização da área central da cidade.
Mas a análise não se detém na grande angular. Denise Xavier nos convida a acionar a lente de aproximação ao permitir que observemos como os edifícios se comportam até mesmo diante de um cruzamento de ruas de trânsito intenso. Permite também observar a materialidade dos elementos construtivos e das novas técnicas que empregam para exprimir a feição metropolitana, esmiuçar a vida que abrigam, em programas que evocam a pluralidade de funções urbanas, contendo em escala reduzida o que é próprio da metrópole, e ainda examinar atentamente os espaços públicos do nível térreo, que se abrem aos fluxos e aos ritmos da cidade. Estas são formas que a autora encontra de analisar a “arquitetura metropolitana” em sua especificidade, sem descuidar-se da vida coletiva que aí se desenvolve, insuflada pelo crescimento.
A abordagem do edifício do jornal O Estado de S. Paulo é um bom exemplo do procedimento. O estudo indica que o projeto do arquiteto Franz Heep ganha sua solução formal na confluência das ruas que o margeiam, abrigando um jornal, uma rádio e um hotel, funções assinaladas na superfície contínua de seus brise soleil , que constituem, a um só tempo, as feições de uma arquitetura e de uma cidade. O jornal, núcleo atuante da então nascente cultura de massa, ganha espaço cada vez maior na metrópole e é secundado pelo rádio, que difunde informação e lazer. No térreo, a transparência do vidro desvenda os mecanismos da fatura do jornal, calcada em eficiente tecnologia e na produção em série, técnica que espelha a da própria construção, característica dos tempos modernos. Além do mais, sua solução de ângulo funciona como fecho da Avenida São Luís, uma das mais importantes na São Paulo dos anos 1950.
No extremo oposto da mesma avenida, a autora focaliza a imponente torre do Círculo Italiano, também projetada por Franz Heep, que se coloca como emblema da presença dos italianos em São Paulo, assinalando a mescla de culturas da metrópole. O edifício desvenda, com sua forma elíptica, as várias direções em que a cidade se espraia, visualidade que se abre no mirante da cobertura, de onde se pode observar a nova paisagem urbana. Ocupado por escritórios, não por acaso chega ao térreo em área que também é da cidade.
A análise do Copan e do Conjunto Nacional, realizada a partir de acurada documentação gráfica, permite que a autora empreenda uma leitura detalhada dos projetos, e apresente os novos modos de morar na metrópole. O Copan, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, contém em seu volume sinuoso diversos tipos de apartamentos, que propõem a convivência de diferentes estratos sociais. No nível térreo serpenteia pelo tecido urbano, indicando atalhos ao caminhante da cidade de fluxos intensos e ritmo acelerado. Também o Conjunto Nacional, projetado por David Libeskind, realiza sua límpida lâmina vertical com diferentes tipos de apartamentos, depois reduzidos a um único bloco, sendo a área restante destinada a escritórios. No térreo, o volume ocupa o perímetro de toda a quadra, possibilitando ligações entre as ruas que a definem e criando permeabilidades e variáveis de percurso, além de sugerir uma ocupação arejada da Avenida Paulista, abastecida por equipamentos culturais e de serviço.
É curioso observar que, a princípio, os dois projetos pretendiam ser também hotéis, considerados indispensáveis às comemorações do IV Centenário de São Paulo. Naqueles anos de discurso ufanista, como ainda hoje, a cidade se colocava como pólo de atração para as outras regiões do país, além de aspirar a uma posição de destaque no plano internacional. Contudo, por motivos diversos, nenhum dos dois projetos logrou atingir a meta inicial. No Copan, devido a problemas ocorridos na construção, o local projetado para hotelaria foi destinado a uma agência bancária. Já no Conjunto Nacional, o impedimento partiu da legislação do período, que não permitia a instalação de hotéis na Avenida Paulista.
Uma sede de jornal, um prédio destinado a estrangeiros, uma habitação coletiva, uma torre vertical para uma grande avenida. Por meio da leitura que Denise Xavier empreende dos quatro edifícios, vai se configurando a transformação sofrida pela cidade de São Paulo em sua passagem para metrópole. Além disso, a autora também consegue nos apresentar uma cidade ocupada, pois trabalha com uma arquitetura povoada pelo sujeito metropolitano, objeto constante de sua atenção. As vicissitudes e as mudanças sofridas pelo habitante da metrópole são analisadas a partir de Zimmel, que reflete sobre as novas sensibilidades e as mudanças de percepção sofridas pelo homem, na tentativa de conviver com os estímulos gerados por uma situação urbana marcada pela velocidade e por relações impessoais, características do anonimato dos grandes centros.
A análise dos edifícios concretiza a intenção nuclear da autora, que é de articular a arquitetura e a cidade, esclarecendo o papel da primeira na constituição do tecido urbano e revelando a proposta de cidade que a ela subjaz. O sabor do estudo nos faz mergulhar na São Paulo da década de 1950, recuperando o espírito e os desejos daquele momento e iluminando uma proposta arquitetônica que inclui o espaço público e funciona como mediadora dos fluxos do quotidiano.
O trabalho se conclui em texto orquestrado a quatro mãos por Denise Xavier e Kazuo Nakano, que direciona a reflexão dos anos 1950 para São Paulo atual, assinalando as transformações sofridas pela cidade nos últimos cinqüenta anos. As regiões anteriormente estudadas são revisitadas com a sensibilidade do habitante imerso em sua cidade funcionando como instrumento de observação e sondagem da cidade contemporânea. O resultado assim obtido vai além de indicar o estado atual dos edifícios, pois os localiza na multidão que se desloca por calçadas esburacadas, permitindo que a cidade ganhe densidade, odores, vitalidade e possa emergir do estudo na inteireza de seus problemas quotidianos. A condição urbana contemporânea fica assim colocada como objeto para futuras reflexões, fazendo ecoar a pergunta de como a arquitetura pode participar da vida das cidades.
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"Arquiteturas e dinâmicas urbanas na interpretação sobre a construção metropolitana", de Rodrigo Faria sobre o livro de Denise Xavier
sobre o autor Fernanda Fernandes é professora doutora do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAUUSP.