tradução ivana barossi garcia
A angústia do indivíduo, a perturbação absoluta que pode subsistir ou emergir dentre as aparências estáveis do cotidiano, o ataque às seguranças baseadas na concepção plenamente racional da realidade são a matéria da obra hitchcockiana. Imaginar e construir uma narração situada em alguns lugares visualizados segundo uma concepção espacial não determinada por alguns parâmetros estilísticos, e sim pela substância da compreensão que todo edifício e espaço possui, uma dimensão psicológica e simbólica, é um ato arquitetônico. Construindo realidades diegéticas, onde o significado da arquitetura, do espaço, das organizações e atmosferas dos lugares habitados, que, em sua apresentação visual possuem uma ênfase expressiva, uma fenomenologia própria e bem diferenciada, Alfred Hitchcock se transforma em arquiteto; indiscutivelmente, da mesma forma em que Piranesi, com o desenho, ou E. Hoffmann, na literatura, o são. Hitchcock é o construtor de uma poética tétrica e claustrofóbica do espaço.
Marco de significado
O cineasta compreendia a arquitetura como “o grande e eternamente provisório marco do significado humano”. Sua sensibilidade quase obsessiva por ela como cenário da vida dá a entender as razões da profunda e complexa transcendência que adquirem os cenários e locações em seus filmes -às vezes, subordinando os atores ao protagonismo e intensidade visual destes-. As impecáveis construções visuais de espaços interiores e a relação com o entorno urbano dos personagens em seus filmes estão imbuídos de uma dimensão psicológica que, mesmo que concebidas como um prolongamento simbólico do personagem que ocupa ou percebe tal espaço, possuem valor como expressão visual de estados psíquicos humanos.
Partindo da compreensão que esta sensibilidade e capacidade visual para indagar e revelar aspectos sobre a complexidade das dimensões conceituais da experiência arquitetônica faz de Hitchcock um arquiteto, o historiador da arte Steve Jacobs corrobora através de seu ensaio The Wrong House (010 Publishers) a Hitchcock como um intérprete visual da concepção moderna do espaço arquitetônico.
Clímax urbano
Jacobs realiza conscienciosas análises dos aspectos dialéticos contidos pelas arquiteturas que intervêm em cada um de seus filmes, incluindo os planos das habitações onde transcorrem seus diferentes filmes -algumas tão icônicas como a Mansão Bates de Psicose-, analisando como traço distintivo de seu estilo o situar cenas de grande clímax em edifícios ou locações urbanas emblemáticas. Indica mesmo assim que algumas das mais cruciais fitas do diretor transcorrem em um único cenário e que sua construção a partir de recursos fílmicos deve ser igualmente entendida como evidência de sua capacidade magistral para imbuir de uma fenomenologia arquitetônica à imagem cinematográfica.
Hitchcock debutou no cinema como diretor artístico e, ainda que posteriormente não fosse ele o criador direto das arquiteturas e atmosferas interiores de seus filmes, e sim os diferentes diretores artísticos que colaboraram com ele, enfatizou persistentemente a importância crucial de sua tarefa: “Um diretor artístico deve ter um conhecimento e compreensão amplos da arquitetura. Deve ser capaz de distinguir entre o que caracteriza um tipo de alojamento e o que individualiza aos habitantes de tal alojamento”, escreveria a respeito.
Jacobs destaca a decisiva importância que para Hitchcock constituiu sua experiência profissional como diretor artístico em filmes mudos alemães dos anos 20, onde assimilaria os conceitos do caligarismo e do Kammerspielfilm. Do primeiro adotaria as sombras, espelhos e paisagens escuras para colocar em cena um mundo físico escuro, angustiante e violento, reflexo de um estado psíquico enfermo; do segundo, a meticulosa atenção ao detalhe com que se retratava a vida de indivíduos comuns em ambientes cotidianos opressivos. Ambos influiriam em sua concepção de cenário cinematográfico como um espaço objetivo e realista imbuído da dimensão subjetiva dos personagens.
O potencial da imagem
De igual modo, ainda que este seja um aspecto no qual Jacobs não se adentra em sua análise, é possível que tenham sido influentes sobre Hitchcock nesse mesmo período as teorias que argumentavam euforicamente o potencial da imagem cinematográfica como novo território onde concretizar visões arquitetônicas radicais, poderosas impressões visuais que provocassem uma experiência emocional claramente diferenciada, por sua intensidade, das da “realidade”.
A imagem hitchcockniana cria um espaço que deliberadamente se distancia da realidade, não só do espectador, e sim inclusive com freqüência dos indivíduos que ocupam tal espaço: a essência potente da imagem e a narração fílmica como leitos da experiência arquitetônica criada. O cenário nos filmes de Hitchcock é um labirinto no qual todos -personagens, diretor e público- se extraviam e se encontram consigo mesmos na intensidade de suas emoções, escreve o crítico Pascal Bonitze, citado por Jacobs.
A Historia da Arquitetura não deve abarcar unicamente a História dos edifícios construídos, nem a dos não construídos projetados por proeminentes arquitetos. Incorporar a Alfred Hitchcock a esta História, algo que se torna possível através de ensaios como The Wrong House, se torna indispensável para desliteralizar a imaginação dos arquitetos, submergidos hoje na contemplação e assimilação de imagens vãs de arquitetura e na auto-referência dentro da disciplina. Alfred Hitchcock logrou a construção de imagens arquitetônicas arraigadas no arquetípico. Como indivíduo dotado de uma específica forma de sensibilidade arquitetônica, refletiu sobre a natureza essencial do arquitetônico, que é dada pela construção e experiência do espaço. Não somente o espaço material, mas também a essência filosófica do termo “espaço” em contato com a psique humana.
Ênfase do objeto
Sua contribuição resulta fundamental além da cinefilia, já que permite abrir uma reflexão sobre o significado da arquitetura, um termo que se encontra roçando um processo de objeção provocado pela ênfase no objeto. A reflexão sobre essa dimensão essencial e imaterial do poder do espaço à que nos conduzem os fotogramas dos filmes de Alfred Hitchcock talvez nos situa ante uma definição que sublima autêntica complexidade e beleza da arquitetura, expondo a necessidade de um vínculo profundo entre ela e o indivíduo. Uma visão arquitetônica que foi construída na mente de um não-arquiteto.[texto publicado originalmente em ABCD las Artes y las letras, 05 abr. 2008, nº 844.]
sobre o autorFredy Massad e Alicia Guerrero Yeste estabeleceram a ¿btbW/Architecture em 1996, dedicando seu trabalho conjunto à pesquisa crítica sobre a arquitetura contemporânea