O livro “A casa nossa de cada dia”, organizado por Luiz Amorim e Lúcia Leitão, reúne as conferências proferidas durante o seminário homônimo, ocorrido em Recife, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano – MDU, da UFPE, em 2006. O conjunto de textos ai reunidos, de autoria de estudiosos de diversos campos disciplinares, com enfoque nos aspectos subjetivos da relação com o ambiente construído, representa um belo exemplo da tentativa de trazer para o universo teórico da arquitetura o conhecimento de outras áreas, tendo, como veículo, o tema da casa.
Não se espere encontrar uma discussão sobre a casa na acepção primeira que nos vem à mente – aquela do lugar próprio do indivíduo, que lhe garante privacidade e isolamento do mundo exterior. As conferências reunidas traduzem, em última instância, discursos sobre espaço (a casa) e tempo (o dia). Espaço é a uma das chaves para o tracejado que une todos os textos. Espaço, aqui, seja por metáfora, seja por metonímia ou sinonímia, é o espaço da intimidade, o que constitui a essência de nossa experiência. Assim, casa-espaço, no conjunto das conferências, é mãe, é família, é cidade, é sonho, é afeto; é vista livremente, sem que nenhum conceito prévio seja estabelecido, com o amparo de uma vasta gama de autores, da literatura à filosofia, da sociologia à psicanálise, ou mesmo a partir da experiência de cada um – lembranças de vivências da infância, da vida familiar, das idas e vindas de cada um.
É nas idas e vindas de cada um que o tempo se revela no discurso dos autores. E é um tempo passado, que evoca vivências desejadas, perdidas, reconstituídas. Por vezes este tempo descreve a experiência do movimento – o entrar, o voltar, o percorrer. Por vezes é o tempo do pertencimento, a experiência de pertencer exigindo tempo para que se consubstancie, fundindo espaço e tempo. Ou o tempo sem tempo determinado.
Questões epistemológicas são tratadas pelo filósofo José Anchieta Corrêa, que recorrendo a autores da filosofia, propõe uma mudança de paradigma no tratamento da “nossa-casa, nossa-cidade”, de modo a conceber espaços como co-participes da atividade às quais se destina, tal como, “um hospital onde o próprio espaço participasse e propiciasse o processo de cura do paciente [...] uma escola para satisfazer o desejo e a necessidade do saber” (1). Ora, o autor trata ai de expectativas que sempre foram aquelas do arquiteto... Arquitetos se vêm a si mesmos como demiurgos, criadores de mundos. A questão do determinismo é tema de longa convivência dos arquitetos; em arquitetura o tema gravita em torno da crença de que a aderência a uma prescrição garantirá o alcance de uma forma correta, conforme afirma Ficher (2). E esta tem, ainda, força didática, ou seja, tem a capacidade de ensinar às pessoas como viver melhor, indicando maneiras de usar o espaço e um certo comportamento (3). Mas o problema reside exatamente no traslado entre expectativa e padrão espacial. Que tradução espacial elas engendrariam? Para Corrêa, o caminho estaria em lidar com as interfaces de conhecimentos parcelares com o objetivo de trabalhar a realidade comum. De certo modo, os últimos desenvolvimentos da teoria arquitetônica, ainda que de forma talvez restrita, vêm perseguindo este objetivo. Quem viver, verá...
Uma visão autobiográfica é adotada pelo diplomata Paulo Sérgio Rouanet ( “Aspectos subjetivos da cidade”, p. 11-22). É através da visão do flaneur que Rouanet conta sua experiência com a casa, que, por ser homem do mundo, é sinônimo de cidade: a expressão ‘voltar para casa’, para quem vive vida de meteco, significa, sem dúvida, voltar à minha cidade. A casa nossa de Rouanet, é, pois, a casa de muitos – e ele tem três casas: Recife, Rio, e Paris, as quais ele considera essenciais. Essenciais na acepção, segundo ele, dada por Lúcia Leitão – pelo seu papel estruturante. Em seus movimentos desejantes, parafraseando novamente Leitão, o texto de Rouanet se desenvolve, à la psicanálise, em torno de reflexões avulsas, sendo que a primeira reflete sobre a identificação como forma de apropriação da cidade. A segunda se volta para a projeção, mecanismo pelo qual o sujeito “expulsa de si e localiza no exterior suas próprias qualidades, sentimentos e desejos”. Já a terceira entende a cidade como um ‘superego externalizado’. Por fim, a última trata da cidade e do sonho, ou melhor, da tensão entre a cidade real, a cidade utópica e a cidade mítica: “a cidade como objeto interiorizado, como coisa a ser conhecida, como instância normativa e prescritiva, que impõe visões do mundo, e como sonho do coletivo” (4).
Ainda tendo como veículo uma visão autobiográfica, a psicóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira (“A casa e os devaneios do pertencimento”, p. 71-84) trata do conceito de pertencimento, no âmbito da Casa, onde laços se estreitam. O cenário é a casa da Tia Angélica, falecida. Após sua morte, se transmudou em Casa Onírica (5). A casa que Nogueira descreve é, segundo ela, típica do sertão nordestino do século XVIII. Em nada difere da casa patriarcal colonial em sua organização espacial – na sala da frente, a exposição dos melhores móveis e símbolos da família – as fotografias familiares, o rádio, a espreguiçadeira do patrono. O local próprio para receber as visitas. Nos fundos, os espaços das atividades cotidianas e de reunião da família, em torno da mesa de refeição, contígua à cozinha. Por meio da morte este cenário evocou sentimento de pertencimento, de família e valores tais como compaixão, solidariedade, confiança, justiça e respeito. O texto nos faz lembrar novamente da questão do determinismo arquitetônico – é a casa ou Tia Angélica a responsável pela sensação de inclusão que parece ser tratada no texto?
A arquiteta Lúcia Leitão (“Entra na tua casa: anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade”, p. 47-70) tem como veio central a metáfora do entrar para simbolizar a vivência de experiências subjetivas, e, em última instância, a própria vivência da arquitetura. Entrar é promessa de vida e superação da morte. Está também associado à idéia de distinção, assim como condição para o conhecimento. Assume, ainda, o sentido da tolerância e do perdão. Para Leitão, do ponto de vista arquitetônico, entrar se traduz na experiência da cavidade. Para desenvolver seu argumento, toma por base duas linhas: aquela que se funda nos textos bíblicos e, uma referenciada em Bruno Zevi (6), ainda que ela cometa a licença, quase poética, de atribuir termos à fala de Zevi, uma vez que nas citações utilizadas, Zevi não tenha se utilizado do verbo entrar. Na verdade, Leitão faz referência à importância que Zevi atribui ao espaço interior na conceituação de arquitetura. Segundo Leitão, a contribuição teórica de Zevi permitiu que se trilhasse o caminho da investigação da dimensão subjetiva da arquitetura, compreendendo-a não apenas na sua materialidade, mas como uma experiência subjetiva, que vai além da “simples utilização das estruturas ambientais fisicamente definidas” (“Entra na tua casa: anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade”, p. 64).
O arquiteto Luiz Amorim trata da relação espaço x eventos, ou, melhor, trata do arranjo e relações de elementos constituintes da forma arquitetônica e dos arranjos e relações entre sujeitos e atos, discutindo, por esta via, a natureza da sociabilidade suportada pela configuração espacial. E o faz a partir de narrativas que “tomam a casa como ambiência e seus moradores como personagens de fatos cotidianos ou excepcionais”. No texto há menos subjetividade como foco central, apesar do argumento ser desenvolvido recorrendo a narrativas literárias. Mas o que Amorim nos apresenta é uma outra concepção de arquitetura, simbolizada na casa, entendida como possibilidades da relação sujeito e coisa. Não determinismo, ou supremacia de um sobre o outro, mas sincronicidade. Aqui não é o simples entrar que interessa, mas o ficar, o usar, o se relacionar – o espaço da socialização. Espaço como matéria, espaço como construto. Como afirma Amorim, “a casa, ao estruturar a relação entre espaços... constitui campos perceptivos... promotores de... interações sociais... variáveis no tempo, de acordo com os desejos...” (“Casa: espaços e narrativas”, respectivamente, p. 92, 110).
Sobre desejos fala o arquiteto Leonardo Bittencourt. Ou melhor, o texto trata da tensão entre a visão profissional, demiúrgica, e o desejo do cliente, que deve ser interpretado pelo primeiro, para satisfazer plenamente o sonho de morar, a casa ideal, do segundo. Bittencourt apóia suas reflexões num conceito de arquitetura fundado na diferença entre o que chama uma simples construção e o artefato arquitetônico. Este último ‘deveria’ produzir, necessariamente, sensações “que seriam tanto mais adequadas quanto mais aproximadas fossem do caráter e da identidade relacionados à finalidade do edifício” (“Meu, dele ou de outros? Especulações sobre o desejo no projeto arquitetônico”, p. 160. Destaque nosso). Novamente o tema do determinismo. Para tratar da tensão entre expectativa do profissional x expectativa do cliente, Bittencourt se vale da narrativa de fatos quase lendários no mundo profissional/acadêmico. Na verdade, o que os fatos narrados, lendas ou não, exemplificam é a dificuldade de negociação entre duas intenções, uma vez que o projeto não passa de uma intenção de um objeto que não ainda existe – um objeto futuro (sendo, portanto, uma projeção de um devir), tanto para o profissional quanto para o cliente. Segundo Boutinet, trata-se ai da oposição entre o modus operandi e o opus operatum (7).
De certo modo, a dificuldade de negociação e diálogo, seja entre cliente x profissional, seja entre campos disciplinares é tratada pelo psiquiatra João Alberto de Carvalho. O texto tem um quê de didatismo – algo que psiquiatras, que cuidam da subjetividade, têm a ensinar a arquitetos que lidam com materialidades, mas que devem expressar a subjetividade de cada um – o projeto de cada um. A fórmula é “escutar a demanda e ajudar [ensinar] o solicitante a ver e olhar o espaço que ocupa” (“Espaço e ideais: o que pode um psicanalista falar para arquitetos”, p.148).
Um caminho quase literário é trilhado pelo historiador Antonio Paulo Rezende (“Acasanossadecadadia: metáforas e histórias da pós-modernidade”, p. 113-134), que, por meio de metáforas, trata de dimensões concretas e subjetivas da casa. Neste caminho, a casa é a personagem central da história e da cultura, numa narrativa não-linear, como quer o autor.
Por fim, um outro viés das questões mais próprias do campo disciplinar da arquitetura é apresentado pela urbanista Bárbara Freitag. A fala não é propriamente sobre a casa; a personagem é a cidade, e as reflexões da autora buscam apresentar “uma perspectiva diversificada dos [...] conceitos e [...] teorias da cidade” (“Itinerâncias pelas teorias da cidade”, p. 179). Organizado em “Escolas” (sic), a autora discorre sobre um conjunto de teóricos da questão urbana, da escola alemã, à escola brasileira, passando pela escola francesa, americana, inglesa, latino-americana. Trata-se de breve resenha de capítulos do livro da própria autora, um tanto afastado do tema focal do seminário.
Em que pese a episteme de cada autor, todos falam de arquitetura, pois tempo e espaço são, essencialmente, dimensões arquitetônicas, como já nos ensinou Bruno Zevi, ao afirmar que “nenhuma obra arquitetônica pode ser experienciada e entendida sem a quarta dimensão, sem o tempo necessário para o nosso andar de descoberta” (8). Zevi ai se refere à contribuição do cubismo na concepção do espaço, ao introduzir o tempo, como quarta dimensão, que se soma às três da tradição (altura, largura, profundidade), e que se realiza com o deslocamento do ângulo de visão. Neste mesmo sentido, podemos dizer que os textos reunidos no livro conferem ao conjunto um quê de cubismo. Cada um dos conferencistas traz para a discussão a sua visão, estendendo o campo do conhecimento da relação entre o tempo e o espaço do morar, num constante deslocamento no tempo.
Apesar do espírito transdisciplinar, a linguagem em cada texto é própria de cada campo do conhecimento e, a princípio, nem sempre os conceitos oriundos de cada um destes campos converge para um mesmo ponto. Aparentemente este seria um paradoxo, no entanto, da leitura dos diversos caminhos e mesmo descaminhos que a casa nossa adquire nesta trajetória é possível escutar o outro. E também formar a noção de que, para a realização da transdisciplinaridade, faz-se necessário despir-se de pré-conceitos e preconceitos de forma que o diálogo se estabeleça, ou seja, faz-se necessário construir uma episteme própria. A questão não é nova. Vitruvius já nos indicou, no livro I, capítulo I, os saberes necessários à formação do arquiteto: além de educado, hábil com o lápis e instruído em geometria, o arquiteto deveria saber de história, acompanhar os filósofos com atenção, ter algum conhecimento de medicina, conhecer a opinião de juristas, além de estar familiarizado com astronomia e com a teoria dos céus (9).
notas1
CORRÊA, José D. Anchieta. Em torno da dinâmica espaço-tempo. Respectivamente, p. 25, 40-41. O autor inverte a posição do pronome do título do seminário sob o argumento de que, desta forma, é possível formar um novo conceito, no qual a “afetação subjetiva (nossa) e a afetação objetiva (casa) se encontrem imbricados de modo a evidenciar a dinâmica espaço-tempo...”.
2
FICHER, Sylvia. “O ensino da construção no domínio da arquitetura”. Projeto, n. 112, São Paulo, jun. 1988, p. 129-130.
3
LOUREIRO, Claudia. Classe, controle, encontro: o espaço escolar. Tese de doutorado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2000.
4
LEITÃO, Lúcia. Os movimentos desejantes da cidade: uma investigação sobre processos inconscientes na arquitetura da cidade. Recife, Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1998. p. 18, 22.
5
Destaque como no texto.
6
ZEVI, Bruno. Saber ver la arquitectura: ensayo sobre la interpretación de la arquitectura. Buenos Aires, Editorial Poseidon, 1971.
7
BOUTINET, Jean Pierre. Antropologia do projeto. Porto Alegre, Artmed, 2002.
8
ZEVI, Bruno. Architecture and space: how to look at architecture. New York, Da Capo Press, 1993, p. 27.
9
VITRUVIUS. The ten books on architecture. New York, Dover Publications, 1960
sobre o autor Claudia Loureiro, arquiteta, doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco