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CAVALCANTI, Ana Rosa Chagas. A arte diária da urbe inventada. Resenhas Online, São Paulo, ano 07, n. 084.01, Vitruvius, dez. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/07.084/3053>.


A argumentação de Giulio Carlo Argan acerca do debate inteligível entre cidade real e cidade ideal, se posiciona na defesa da compreensão de cidades que já não podem mais ser entendidas como mero invólucro de obras de arte, mas ser em sua constituição física e fenomenológica, uma obra de arte resultante de ações coletivas e humanas, complexamente emaranhadas. A cidade como resultado da criação coletiva, do tecer diário estético humano.

Nada mais exemplar da cidade como obra de arte para o autor do que o jogo cênico dos habitantes nos espaços públicos e propriedades privadas, além dos signos e imaginários aflorados no transeunte ao percorrer ruas, becos, praças e casas... Signos que se fazem presentes no perceber de jogos de sombras, perspectivas e gentes das cidades, e que se infiltram no imaginário daquele que a percorre e vivencia. Ideário cuja postura faz remeter ao postulado do filósofo Gaston Bachelard na obra A poética do espaço (1), que a partir de bases na fenomenologia e no psiquismo, aborda questões que estão atreladas ao vivenciar e observar do espaço.

Argan ainda explora a esfera de tramitações contidas na história concernentes a períodos passados onde os conceitos de arte e cidade se encontraram. O livro cita as discussões do período renascentista acerca da possibilidade de criação de uma cidade intrinsecamente artística. Na época levantava-se a possibilidade da existência de uma cidade ideal, nascida como produto artístico de um único artista que por ora lhe imprimiria uma verve no desenho e projeto, fazendo com que a mesma nascesse e existisse como obra de arte. Vestígio da evidencia do humanismo em voga (que tanto auferia valor ao humano que criava arte e/ou ciência) e sua articulação no pensamento entre arte e cidade.

A tentativa da época em construir cidades ideais, a exemplo de Pienza, Sermoneta e Palmanova (construídas a partir de um desenho artístico de um artista criador) gerou um espaço de convivência que beirava o sacralizado, que não podia a priori ser modificado por outrem que senão o artista que a inventou inicialmente.

Essa forma de enxergar o projeto de uma cidade não previra a posterior ação individual dos habitantes na construção do traçado da mesma, com suas pequenas vivências, suas “astúcias de percorrer e construir espaço”, como sustenta o estudioso Michel de Certeau, cuja reflexão acerca do espaço edificado aborda os passos, ações individuais, as práticas e astúcias do espaço como o viver e apropriar-se no mesmo, moldando-o paulatinamente: “Supõe-se que as práticas do espaço correspondam, elas também, a manipulações de base em uma ordem construída” (2).

Indício de que a cidade real, com sua constituição interna dinâmica e imprevisível, posiciona dificuldades do fazer arte em seu traçado e em sua organização, o que não impediu que o conceito fosse norteador de outros projetos urbanos, em períodos históricos ulteriores, como no modernismo (3) com seus traçados de intenção ordenadora, imbuídos pela escolástica da Bauhaus:

“A idéia de cidade ideal está profundamente arraigada em todos os períodos históricos, sendo inerente ao caráter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica e celeste e cidade terrena ou humana” (p. 73-74).

Argan defende que o caráter artístico da cidade, porém, não está no projeto do desenho de uma cidade pensado enquanto obra de arte, mas sim na vicinal desordem de eventos que refletidos e espacializados na urbe expressam ao habitante a historicidade e a essência de sua cidade, a herança urbana do passado e do acaso tramitando no presente. A hipótese da cidade ideal, da cidade/objeto artístico implica em justificativas que a consideram como representativa de valores e conceitos diversos, não somente de ordem social, mas também de razão metafísica. O texto Infância em Berlim, de Walter Benjamin, pode ser lido como registro de um habitante da cidade que transforma os elementos edificados da cidade em uma experiência confessional fomentadora de significantes e significados. “Pois então, em meu modo de pensar, aquela rua não devia seu nome a Steglitz. Era sim o pássaro que lhe doara seu nome...” (4)

Compreendido conceito primeiro do que seria a cidade ideal de Argan, aprende-se que não é somente arte da cidade o que é dito patrimônio histórico cultural e monumentos da cidade, mas também os cenários do interior da residência, o jogo teatral dos cidadãos das cidades grandes ou pequenas, os percursos de seus habitantes que se justapostos poderiam prover uma pintura de Pollock (5) em essência e representação de acaso. O autor, então, articula sua ideação acerca do ulterior e correto tratamento que poderia ser destinado àquilo que ele compreende por arte da cidade. Para ele, não se trataria de conservar todo e qualquer elemento urbano edificado de forma a representar a história e os movimentos da cidade, tornando-a um grande museu aberto que pode não ser passível a ser decifrado e a produzir signos em transeuntes que dispersos e apressados pululam nas cidades reais.

Trata-se para ele, da importância da compreensão da cidade enquanto produção artística. Do fruir das cidades por coletividades com interesses diversos, do reconhecimento da cidade do imaginário do morador, como símbolo e parte da sua história, do sentimento de pertencer aquele determinado aglomerado de símbolos. Um exemplo de intervenção artística bem sucedida e conseqüentemente fomentadora de signos e imaginários nos cidadãos na história das cidades data de muitos anos atrás: a cúpula de Santa Maria Del Fiori em Florença. Argan cita Vasari para corroborar esta idéia: Vendo ela enlevar-se em tamanha altura, que os montes ao redor de Florença parecem semelhantes a ela [...] parece que o céu dela tenha inveja, pois sem cessar os raios todos os dias a procuram”.

A cúpula construída por Brunelleschi nas primeiras décadas do quatrocento, inspirou e sensibilizou vários poetas e habitantes da cidade. O significado da cúpula já não poderia ser entendido como parte da igreja, mas sim da cidade. Como objeto arquitetônico a cúpula era mais uma cúpula. Mas seu porte, localização e beleza formam um espaço objetivado no universo simbólico dos moradores, é signo criado. Uma cúpula que segundo relatos antigos, parece cobrir todos os povos da Toscana com sua sombra que se rotaciona sobre vários pontos da cidade, oferecendo austera proteção.

Infelizmente a tecnicidade pós-industrial vem se sobrepondo à historicidade e às questões próprias do sensório e estético humano (6). A cidade é vista como ambiente de técnicas, enquanto a importância da historicidade, do existencial e do individual subjetivo vem se esmaecendo.

Tudo que é humano vira coisa a ser contemplado raras vezes é instrumento capaz de revelar questionamentos e engendrar criações; é a era do técnico, do fugidio. Existiria um reconhecimento consolidado por parte da maior parte dos habitantes da cidade real sobre a historicidade e sua importância estética na cidade?

Argan finaliza seu livro questionando: qual destino quer aos significados existentes em nossas cidades? O entregar-se a ações e articulações tecnicistas desmedidas ou o enlevar da cultura genuína de percorrê-la, desvendá-la em signos para gerar identificações e críticas à mesma, coisa que ainda persiste na cidade, estabelecendo no espaço público diálogos de naturezas diversas através da arte?

notas1
BACHELARD, Gaston. A poética dos espaços. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

2
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1, artes de fazer. São Paulo, Editora Vozes, 2002, p. 180.

3
CORBUSIER, Le. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

4
BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim. In Obras Escolhidas II – Rua de mão única. São Paulo, Editora Brasiliense, 2000, p. 86.

5
WOLFE, Tom. A palavra pintada. São Paulo, L&PM, 1987. Jackson Pollock, artista expressionista abstrato americano. O crítico Greemberg batizou sua arte de action painting, pela casual disposição da tinta na tela, resultante de seus movimentos corpóreos.

6
CAROS AMIGOS. n. 37, São Paulo, nov. 2007. Número dedicado ao tema “Pós-humano, o desconcertante mundo novo”.

sobre o autor Ana Rosa Chagas Cavalcanti é aluna do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFAL. Foi monitora da disciplina de História da Arquitetura II em 2006 e bolsista de projeto de extensão em artes na Pinacoteca da referente universidade em 2007. É membro da pesquisa “Estudos da Paisagem” e do escritório modelo de seu curso

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