É sempre uma satisfação receber um convite para fazer a apresentação de uma obra que trata de assunto de importância para a história do Rio Grande do Sul. No caso presente, para a história do Brasil. Muito embora as Indústrias Rheingantz estivessem estabelecidas no extremo sul do país, a criação das mesmas ocorreram em fase tão precoce que é impossível ignorá-las devido a seu pioneirismo. Durante a elaboração deste trabalho fui consultado pela autora em mais de uma ocasião e depois tive o prazer de acompanhá-la como examinador em sua banca de pós-graduação, na Unicamp, uma das mais conceituadas do país. Agora sou distinguido com o privilégio de apresentar este trabalho ao grande público!
Rio-grandina de nascimento, a autora, Vivian da Silva Paulitsch, soube escolher um tema muito atual para sua estréia na área da pesquisa que, se não era totalmente inédito, ele traz, em seu bojo, algumas questões de difícil compreensão. O primeiro, como pôde se firmar e prosperar um empreendimento totalmente deslocado dos grandes centro da economia do país? Igualmente misterioso para o entendimento é descobrir as razões de sua falência depois de ter se afirmado como uma das mais pujantes indústrias do extremo sul do país. Cidades como Rio Grande, Pelotas, Bagé e outras desfrutaram de uma fase de grande prosperidade econômica que se materializou num exuberante patrimônio arquitetônico. Em geral, esta fase de euforia é debitada na conta da produção do charque, mas esquece-se que, a par da indiscutível contribuição da pecuária e dos incipientes processos de industrialização da carne através da desidratação feita ao ar livre, a economia da região se desenvolveu com uma série de atividades correlatas como um comércio internacional muito forte e, naturalmente, com o estabelecimento de uma variada industrialização quando a abolição da escravatura atingiu duplamente as instituições charqueadoras: por um lado, lhes podou a mão-de-obra cativa e, por outro, reduziu drasticamente a demanda do produto visto que o charque era um dos alimentos básicos dos escravos. A saída natural da evolução que o país passou a sofrer a partir da reorganização de seu mercado de trabalho, foi a alternativa por via da industrialização, um processo que já começara bem antes, quando a produção do charque ainda estava a pleno vapor. E não foi por acaso que os capitães desta transformação se originaram dentre os imigrantes alemães que haviam sido trazidos para cultivar terras recobertas por manchas florestais nas cercanias de Pelotas e que, portanto, não se “prestavam” à criação do gado. Na maioria, estes imigrantes eram provenientes da Pomerânia que hoje se constitui num enclave étnico entre a Alemanha e a Polônia e que, à época, ainda estava profundamente vinculada a relações sociais feudais.
Porém, estes imigrantes não eram todos originários da atual fronteira teuto-polonesa: um bom contingente veio da região situada entre a França e o Reno, no extremo ocidente daquilo que, mais tarde, viria a ser a Alemanha. Esta região já haviam passado pelas agruras do processo de industrialização que avançava celeremente do ocidente para o oriente, na França para a Alemanha. Como qualquer o processo de transformação social sempre é muito doloroso, foi exatamente o mesmo que se constituiu numa das causas principais da “expulsão” destes imigrantes que, paradoxalmente, acabaram por criar as primeiras indústrias não só no extremo sul do país como em todas as regiões em que eles se estabeleceram. Quiz o acaso que no caso específico de Rio Grande, não fosse apenas um renano que se destacaria neste processo, mas, mais do que isso, até uma pessoa que trazia o Reno (Rhein, em alemão) em seu próprio nome.
Ainda que Pelotas oferecesse maiores recursos financeiros, a cidade de Rio Grande foi escolhida para sediar estas indústrias por ser o único porto marítimo do Estado, pelo qual passava toda a importação e exportação. Seria, portanto, mais lógico que aí se estabelecessem as principais indústrias nascentes que abrangiam os mais diversos ramos de produtos e que iam desde fábricas simples, de sabão e velas, até indústrias mais sofisticadas como a de chapéus e de tecelagem. Especialmente esta requeria maquinaria sofisticada, amplos pavilhões fabris, rígido controle do operariado e uma disciplina férrea que eram contrabalançada com uma assistência direta aos empregados, seja na forma de concessão de residências, de escolas para os filhos dos empregados, na constituição de clubes para os empregados mais graduados. Ou estas “benesses” seriam apenas outros instrumentos de exploração da força de trabalho?
Mas, a tônica da pesquisa desenvolvida por Vivian não tinha por objetivo o processo de industrialização. Ela se direcionava para a arquitetura. E aí surgiram outros pontos controversos. De onde teriam vindo os modelos das casas dos operários, uma nova classe de trabalhadores que estava se formando dentro de uma sociedade em profunda transformação e, por isso mesmo, sujeita a sérias tensões entre interesses contraditórios? Seriam as residências dos operários apenas pequenas espeluncas ou construções avançadas e concebidas sob novos prismas de higiene da habitação, providas de revolucionários sistemas de abastecimento domiciliar de água tratada e esgoto cloacal? Por isso mesmo, como conceituar esta Rio Grande na virada do Império para a República? Seria apenas mais uma vila interiorana com rua sem calçamento na qual qualquer chuva as tornava intransitável ou seria a cidade progressista que acabara de contratar o mais famoso engenheiro sanitarista na pessoa de Saturnino de Brito que estava revolucionando a forma de conceber os conglomerados urbanos tanto no Brasil como na Europa? Eis os problemas com os quais a autora se deparou ao tratar, não apenas de uma indústria local, mas, e muito mais do que isso, com uma sociedade com enorme sede de transformação.
É lugar comum afirmar-se que os empresários pioneiros eram muito sovinas e que perseguiam obstinadamente a premissa da máxima redução dos custos. O que teria levado aos Rheingantz a se colocar exatamente entre aqueles que contratavam os mais renomados arquitetos e construtores do Estado para realizar suas construções e não terem encarregado os construtores locais de realizar suas obras a um preço, certamente, mais baixo? O arquiteto Theo Wiederspahn era aquele que desfrutava da maior fama na capital do Estado e August Landgraf era o mais competente construtor e arquiteto da região da Campanha. A contratação destes profissionais demonstra que os Rheingantz tinham uma percepção cultural muito acima da média dos empresários de seu tempo. E é exatamente isso que torna intrigante a inesperada falência do amplo complexo industrial em que havia se transformada a outrora incipiente fábrica de tecidos. Quais foram as causas deste inesperado desfecho? Incompetência administrativa? Deslocamento dos centros de industrialização? Uma perniciosa política desenvolvimentista destinada a privilegiar novos apadrinhados de outras plagas? Eis algumas questões que têm tirado o sono dos estudiosos de nosso estado e que vem desafiando sucessivas administrações estaduais no sentido de reverter a estagnação econômica que se abateu sobre a região. A instalação de um “superporto” que haveria de alavancar o desenvolvimento regional parece que não trouxe os recursos suficientes para que esta proposta se tornasse uma realidade concreta. Agora se acena com a instalação de uma portentosa indústria naval. Será esta a solução dos problemas? Ultimamente tem-se aventado a alternativa de um intensivo reflorestamento para fins de produção de celulose. Outros alimentam a tese de que a restauração do rico patrimônio arquitetônico poderia fomentar o desenvolvimento turístico interno baseado em estatísticas internacionais que demonstram que este é o setor econômico que mais se vem desenvolvendo nos últimos tempos. E é exatamente aqui que o trabalho de Viviane adquire a sua maior atualidade: o que fazer com o rico patrimônio deixado pelos mais ilustres arquitetos do início do século passado para a cidade de Rio Grande? E esta é uma questão que exige soluções urgentes. Urgentíssimas. Ou se parte para a conservação, a restauração e/ou a reciclagem imediata deste acervo ou corre-se o iminente perigo de perda total. A hora é agora.
De nossa parte, julgamos que uma alternativa não exclui as demais. Como estudioso e apaixonado pelo nosso patrimônio, aposto na última alternativa: São Luiz, Salvador e tantas outras cidades brasileiras que seguiram trilha da restauração demonstraram que este é um dos investimentos que mais traz retornos. Hoje leio nos jornais que, depois de limpar a capital mais violenta e, até a pouco, a mais poluída do país, São Paulo, a prefeitura está iniciando um profundo programa de reciclagem dos centros mais deteriorados da cidade velha, a começar pela “Cracolândia”, hoje o tristemente famoso centro de consumo de drogas e que outrora foi o palco de desfile das elites cafeeiras. Eis um exemplo a ser seguido.
Restaurar ou sucumbir: eis a questão!
[o presente artigo é o texto de apresentação do livro]
sobre o autor
Günter Weimer é arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, em 1963. Doutor em Arquitetura pela FAU-USP, em 1991. Mestre em História da Cultura pela PUCRS, em 1981. Especialista em Desenho Industrial pela Hochschule für Gestaltung de Ulm/Alemanha, em 1967. Professor titular aposentado da FAU-UFRGS, da UNISINOS e da FAU-PUCRS. Professor em cursos de pós-graduação da FAU-UFRGS e da FAU-PUCRS