Lina Bo Bardi sempre teve o que dizer.
Escreveu a seu modo, desenhou de seu jeito, projetou o que quis, como quis, crendo no que fazia. Atos existenciais, contudo em profunda conexão com seu tempo, cujo olhar contemplou agudamente. Arquiteta que atravessou o século XX e deixou impressas suas marcas: em textos, em coisas, em cidades. Fundou lugares e tramou utopias que seriam plenamente realizáveis.
Seus projetos tinham a capacidade de dinamizar com clareza e intensidade a potência máxima de seu sítio e torná-la manifesta, locus que para ela abrangia a geografia, a cultura material e as gentes - ativação completa do genius loci novamente tendo sentido e substância. O bairro da Pompéia, a av. Paulista, o Trianon, a cidade de Salvador jamais serão os mesmos após suas intervenções e paradoxalmente revelaram mais de si a partir delas. Quiçá poderia ser outra a cidade do Parque D. Pedro ou do vale do Anhangabaú incluindo toda fantasia. Quem sabe pudéramos reinventar uma civilização através dos artefatos do cotidiano se o Brasil pudesse realmente ser um mundo novo, particular dentro da universalidade dos processos que ela apregoava como equivalentes – aqueles do Movimento Moderno em seus princípios fundantes comparáveis ao esforço vital de dignidade da subsistência mais prosaica e imediata, pleno de poesia dura, concreta “indigesta, difícil de engolir”, vislumbrada nas formas populares do homem do Nordeste.
O projeto vinha no mais das vezes acompanhado por textos elucidados com desenhos e os desenhos esclarecidos por anotações que formaram um conjunto coerente ao longo de sua vida – registros e iconografia riquíssima a serem desvelados com cuidado e delicadeza. Não fora isto suficiente, há ainda uma coleção de escritos que amplia a possibilidade de compreensão de sua visão de mundo – verdadeira cosmologia – e de sua ação no mundo, ato que poderia ser arquitetura de edifícios, de coisas, de tudo, ou pensamento como ato – crítico, reflexivo, pedagógico, civilizatório, no mundo dos homens e para os homens no mundo.
Muito bem vinda a iniciativa da coletânea organizada por Silvana Rubino e Marina Grinover, publicada pela Cosac Naify e Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Seleção e organização primorosas, arrematadas por projeto gráfico acertado (1), cujos delicados detalhes de acentuação vermelha, capa de “papel de embrulho de pão da mercearia”, seleção de fotos, notas e índice com imagens das capas originais das publicações não deixam nada a dever aos procedimentos da própria Lina e, principalmente, nos compelem a ler além de ver, atingindo um público maior do que os especialistas. Mas também é para eles.
Silvana Rubino se debruçou durante anos sobre este material bruto, o que entre outras coisas gerou sua tese de doutorado. Ela e outros pesquisadores, a partir do qual elaboraram-se dissertações e teses, com visões particulares e complementares (2). De fato, como comenta Silvana, muitos arquitetos escrevem. Mas nem todos os pesquisadores têm o cuidado e a paciência de ampliar a visibilidade do material sobre o qual se detiveram, como ela o fez. A produção de uma vida se perde, em grande medida, e as leituras de segunda ou terceira mão vão tirando a força contida nos textos originais.
A introdução de Silvana apresenta um posicionamento firme e esclarecedor. Seu olhar antropológico sugere laços, contatos e um capital social que possibilitaria forjar uma posição de Lina Bo Bardi no campo da arquitetura no Brasil a partir de sua vinda da Itália, o que se constituía como uma atitude relativamente recorrente para muitos artistas e intelectuais como Segall, Warchavchic, Heep, Pillon ou também para outros na América do Norte como Gropius, Mies ou outros ainda mais além na África ou União Soviética caracterizando uma certa diáspora que relativizou ou confirmou a centralidade européia a partir das tensões pré e pós pequenas e grandes guerras atestando as vibrações e trincas sob o território estendido dos impérios colonialistas. Jangadas cúbicas de pedra, concreto, aço e vidro se lançaram ao mar com vários nomes. Uma delas se chamava Almirante Jaceguay. Silvana também traz à tona outra tensão, aquela dos compromissos dos intelectuais italianos com o fascismo ou com a resistência, fato que segundo creio, traz uma diferença substancial entre Pietro Maria Bardi e Lina.
O projeto civilizatório a ser construído neste novo mundo vai se tornando, especificamente para Lina, cada vez mais algo que se realiza ao avesso do compromisso cultural eurocêntrico, pois que o novo mundo passa a informar este projeto e se torna protagonista – a nova civilização estaria já aqui em germe na cultura material do homem comum, como um dado de origem; e isto não está em contradição com a ordem moderna, pelo contrário, são procedimentos análogos em rigor e racionalidade. A cabana primitiva já se desenhara aqui, com a mesma força seminal e genuína.
Esta visão de mundo não se faz do nada. Sólida cultura arquitetônica, um certo autodidatismo, origem difusa de referências, com opinião. Fatores decisivos da formação de Lina Bo Bardi, como o imbricamento da graduação na tradicional Universidade de Roma com a posterior atividade em Milão, a influência do pai engenheiro e pintor, a inserção no debate pós-guerra na Itália para a reconstrução incontinenti desde o zero, desde o “A” (3) e a prioridade incisiva na habitação, a atuação em revistas, o contato com várias personalidades do universo arquitetônico como Giò Ponti, são devidamente comentados por Silvana Rubino que salienta a questão de gênero (4) - a posição de Lina como mulher em um universo predominantemente masculino, o que nos faz pensar sobre sua contribuição significativa para a construção do papel e imagem da mulher do século XX, Lina esta que se dizia anti-feminista, o que não é nada, nada contraditório.
Os contextos italianos e sua posição nesses contextos, no campo no Rio e em São Paulo, no trato com as “escolas” carioca e paulista, a atuação de Lina como parte de uma segunda geração de vanguarda após os pioneiros modernos, defendendo sua continuidade crítica, circunscrevem o que Silvana Rubino apresenta como as atuais querèlles, debates que se fazem entre projetos e entre textos produzidos pelos arquitetos – como não perceber o Modulor quase como um tratado, ou a sistematização de Gropius ou o manifesto inaugural de Warchavchic com uma definição do que é (ou não é) arquitetura? Além da inserção profissional e social dos próprios arquitetos, historiadores ou representantes de determinadas visões como Gideon, Pevsner, Kopp ou Benévolo construíram a trama e urdidura do Movimento Moderno, por vezes histórias oficiais e depois a revisão crítica desta história efetuada por Frampton, Tafuri e outros. A história da História da Arquitetura Moderna ainda está a se fazer e pensar. Lina Bo Bardi, situada por Silvana Rubino no que denominou segunda revolução simbólica moderna, coetânea à crítica dos últimos CIAMs e a Venturi ou Rossi, sempre manteve os mesmos princípios de racionalidade, na teorização e na práxis e na poética não arbitrária.
Isto se revela nesta coletânea, para quem quiser ver. Alguns textos menos conhecidos são germinais. Pode-se perceber neles as teses confirmadas desde o início: coerência e permanência das preocupações. Curiosamente as escadas da casa de Luigi Piccinato, discutidas em “Casa a nuclei abitativi in Roma”, reportagem publicada em Lo Stile, de julho de 1943, nos remetem às passarelas do Sesc Pompéia; “Architettura e natura: la casa nel paesaggio” (Domus, novembro de 1943) já contém o pressuposto do popular, primitivo, rural em correspondência com o Moderno; “Sistemazione degli interni” (Domus, junho de 1944) apregoa a aderência entre forma e vida e trabalha com projetos exemplares que se assemelham à solução estrutural e de aberturas da Casa de Vidro.
Outros textos são já clássicos: Na Europa a Casa do Homem Ruiu, Bela Criança, Nordeste, Na América do Sul, após Le Corbusier, o que está acontecendo?, Cinco Anos entre os Brancos, Planejamento Ambiental: “Desenho” no Impasse. Ou aulas magistrais como “Uma Aula de Arquitetura” (1990) ou a Conferência no XIII Congresso Brasileiro de Arquitetos (1991). Neles se apresenta completa a sistematização de seu raciocínio sobre o Brasil, sobre o mundo moderno, polêmicas contra o formalismo, esbarrando por vezes inclusive na arquitetura de Oscar Niemeyer, a definição de monumento como representatividade, a arquitetura como atitude ética, a defesa da civilização brasileira a partir dos artefatos do homem do sertão, as propostas didáticas e museológicas em consonância, a identificação entre filosofia e história, o zeitgeist implacavelmente técnico mas vital, na produção em ato da cultura material pela razão e pela necessidade onde humanismo técnico, presente histórico, paisagem, nacional, grossura, são termos utilizados com rigor.
E tudo isso flui como num diário, como um livre pensar e confissões de crenças, amores, desagrados, sonhos e obstinações. Pessoas que escrevem sem aparente pretensão mas que muito pretendem com seus escritos são admiráveis. Mario de Andrade, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Lucio Costa. Dentre elas – estruturadoras do mais alto pensamento sobre o Brasil, modificaram eixos, pontos de vista, vocabulários – certamente se encontra Lina Bo Bardi.
notas
1
Projeto gráfico de Maria Carolina Sampaio.
2
As autoras têm o cuidado de apresentar na Bibliografia um conjunto de teses e dissertações sobre Lina Bo Bardi ainda não publicadas o que pode facilitar os pesquisadores no aprofundamento desses estudos já realizados.
3
Menciono aqui a Revista A – Cultura della Vita, Milão, fevereiro a junho de 1946.
4
Silvana Rubino tem contribuído recorrentemente com abordagens que enfrentam a questão de gênero enriquecendo nossa visão perante o campo da arquitetura.
aobre o autor
Vera Santana Luz é formada pela FAU Mackenzie, Doutora pelo Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Paulo, professora da FAU PUC-Campinas desde 1986 realizando projetos e obras de arquitetura em escritório próprio em sociedade com o arquiteto Fernando Vianna Peres na Casa de Projetos.