É mais que comum os alunos de cursos de arquitetura e urbanismo simplesmente de-tes-ta-rem aulas de infraestrutura urbana. Também pudera: muitas vezes elas possuem como foco um sem-número de fórmulas gigantescas, coeficientes e bitolas, resquícios de uma engenharia civil anacrônica – hoje, nada construtiva – que são desprovidos completamente de contexto em relação ao real exercício profissional que estes alunos irão enfrentar. Aulas que, ainda por cima, despertam o total desinteresse, senão revolta, e que possuem significativo índice de reprovação. Os alunos, a meu ver, têm razão de sobra para reclamar...
Não há a menor dúvida de que arquitetura, urbanismo e engenharia são disciplinas correlatas. É nossa filiação à engenharia que dá um necessário choque de realidade ao arquiteto-urbanista, retirando-o parcialmente de sua outra filiação, irrestritamente criativa, das artes plásticas. É nossa herança da engenharia que nos lembra a todo instante que arquitetura e urbanismo são, em última análise, serviços que devem ser prestados à sociedade, o que de fato é extremamente importante. Mas em um mundo em que os recursos naturais estão cada vez mais escassos, o aquecimento global e os procedimentos de compra e venda de créditos de carbono estão nas páginas de quaisquer jornais e que o discurso da sustentabilidade (infelizmente) até virou lugar-comum em anúncios de televisão, ser a matemática a base de entendimento da provisão de infraestrutura e saneamento básico é, não só algo deficiente, como completamente negligente em relação às necessidades do alunado.
Seja em um campo de pensamento crítico, como o acadêmico, ou em esferas mais pragmáticas, como as do mercado, a engenharia que deveria, a meu ver, ser buscada, abraçada e valorizada como inspiração é a engenharia ambiental. O que nos leva a pensar que as faculdades de arquitetura e o urbanismo, ao ainda proferirem um discurso dos engenheiros civis higienistas do passado, estão se tornando mais anacrônicas que estes mesmos engenheiros: a engenharia ambiental ganha cada vez mais espaço acadêmico e nos mercados basicamente por ter buscado aproximações com a geografia, disciplina que de longa data faz relacionar o trinômio “sociedade, natureza e tecnologias” que é o grande assunto deste século – e que caso queiram dar um nome, que seja o já esgotado termo “desenvolvimento sustentável”. Arquitetos-urbanistas estão perdendo o bonde...
Por outro lado, a publicação da nova Lei de Saneamento Básico (Lei 11.445, de 5 de Janeiro de 2007), além de claramente inspirada em pressupostos geográficos – como, por exemplo, a adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento do saneamento básico –, relaciona o tema a leis de planejamento e gestão democráticos da cidade anteriores, sobretudo o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001) –, que, evidentemente, também não deixou de ter seus pressupostos ambientais. Nesse sentido, é preciso se abandonar o entendimento das infraestruturas urbanas como algo “tecnológico” e “matemático” completamente isolado das demais disciplinas e dinâmicas da cidade e do exercício profissional do arquiteto-urbanista. Urge um entendimento holístico da cidade, suas infraestruturas, seus edifícios, seus habitantes e seus impactos, ou seja, um conhecimento interdisciplinar. Urge entender tais elementos, portanto, dentro da esfera do planejamento urbano e ambiental, em que direito e geografia também se tornam úteis na abordagem, e na qual os conhecimentos não precisam nem devem ser separados de forma arbitrária e cartesiana.
Diante desta necessidade, é extremamente animadora a publicação de uma série de volumes da chamada “Coleção Ambiental”, pela Editora Manole, em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da USP, mais especificamente o Núcleo de Informações em Saneamento Ambiental. O mais importante destes para o tema aqui em pauta é, por certo, o segundo volume, Saneamento, saúde e ambiente: fundamentos para um desenvolvimento sustentável, cujo editor é o engenheiro civil, sanitarista e de segurança do trabalho Arlindo Philippi Jr. Com vinte e três artigos escritos por vinte e dois profissionais – em sua esmagadora maioria engenheiros, mas também profissionais de arquitetura e urbanismo, direito, enfermagem, sociologia, educação e biologia –, o livro de mais de oitocentas páginas chama a atenção por não possuir em nenhuma delas procedimentos de cálculo e diemensionamento: nenhuma fórmula gigantesca, símbolo matemático incompreensível, gráfico complexo ou quaisquer clichês do gênero que assombram o estudante de arquitetura e urbanismo. Ao invés do recorte simplista e tecnocrático comumente aplicado às disciplinas de infraestruturas e saneamento a que estamos infelizmente acostumados, apresenta-se uma visão holística e integrada, em que se analisa tanto o todo quanto as partes.
Além disso, os artigos inserem suas discussões na temática ambiental, tanto no que diz respeito à eficiência tecnológica, à qualidade do meio ambiente e à eqüidade do mesmo, isto é, seu caráter de direito difuso que, por isso, deve ser acessado por todos os setores e classes da sociedade. Philippi Jr. esclarece, na apresentação do livro, que o mesmo foi pensado “para um público-alvo relacionado com as áreas de saneamento, saúde e ambiente, urbanismo, planejamento e educação” – temas que de fato se entrelaçam na publicação – “dos setores público e privado, destacando-se os formuladores de políticas públicas, assim como pessoas relacionadas com a promoção do desenvolvimento sustentável” (p. XIV).
Talvez o artigo em que esta visão multiescalar e interdisciplinar fique mais evidente seja o de Carlos Eduardo Morelli Tucci: Águas urbanas: interfaces no gerenciamento (p. 375-411). O engenheiro civil, cuja especialidade é a hidrologia, defende uma gestão da água municipal em que captação e controle da contaminação de mananciais, abastecimento de água, esgotamento sanitário, gerenciamento integrado de resíduos sólidos, legislação e fiscalização do uso do solo (incluindo as ocupações irregulares de faixas marginais de rios, que contribuem para as inundações), provisão do déficit habitacional e adoção de tecnologias limpas e soluções eficientes nas construções e nos lotes urbanos estão indissociáveis.
Na mesma linha que ele, o também engenheiro Mario Thadeu Leme de Barros, em seu artigo Drenagem urbana: bases conceituais e planejamento, diferencia os conceitos de “medidas estruturais” e “medidas não-estruturais” no planejamento da drenagem. Em uma abordagem transescalar, explica que as primeiras englobam: o sistema de coleta de águas dentro do lote; o sistema de microdrenagem (bocas de lobo, sarjetas, rede de galerias etc.); o sistema de macrodrenagem (a rede de canais e rios que recebem a água coletada pela microdrenagem); os reservatórios ou bacias de detenção (sejam on line ou off line); a drenagem forçada em áreas baixas (através de diques e bombeamento); e, por fim, a correta e sistemática manutenção de todos estes elementos. Já as medidas não-estruturais, tão importantes quanto as estruturais, seriam, dentre outras: a outorga para controle das cheias; a formulação de leis de uso e ocupação do solo que relacionem adequadamente crescimento urbano à infraestruturas existentes (o correto dimensionamento de coeficientes de aproveitamento de terreno, por exemplo) e que visem à minimização dos impactos da impermeabilização do solo (taxa de ocupação e, sobretudo, taxa de permeabilidade), à proteção das faixas marginais que compõem o leito maior dos rios e córregos e das áreas sujeitas à erosão acelerada e geradora de sedimentos; fixação de critérios técnicos para execução de obras de drenagem e de obras de infraestrutura, como a malha viária e as pontes e passarelas, que possam interferir no desempenho da drenagem urbana; e, por fim o emprego de pavimentação permeável e a execução de parques e jardins o tanto quanto possível nas cidades, permitindo maior percolação das águas no solo.
Artigos como estes ampliam o foco da abordagem infraestrutural, livrando-se da incômoda, parcial e ineficiente escala operacional dos dimensionamentos para uma abordagem acadêmica que flerta com temas emergentes como os das infraestruturas verdes e da gestão dos recursos hídricos. Mais ainda, lança olhar sobre múltiplos fenômenos, que estão interligados, e que por isso mesmo devem ser ensinados e entendidos a partir deste pressuposto. Além disso, pensando-se na esfera do mercado de trabalho, trata-se de abordagem bastante pragmática, por fornecer conhecimentos absolutamente necessários às demandas com “pegada ambiental” que serão cada vez mais freqüentemente exigidas ao profissional de arquitetura e urbanismo, sejam em empresas, ONGs ou instituições formuladoras ou executoras de políticas públicas.
Complementam o livro, valiosos artigos – todos extremamente didáticos, de facílima compreensão através de exemplos e imagens e, por isso, ideais para o ambiente da graduação. Dentre outros assuntos, destacam-se: abastecimento de água (Águas de abastecimento, de Arlindo Philippi Jr. e Getúlio Martins, p. 117-180); esgotamento sanitário (Águas residuárias: visão de saúde pública e ambiental, de Arlindo Philippi Jr. e Tadeu Fabrício Malheiros, p. 181-219); gerenciamento de resíduos (Resíduos sólidos: características e gerenciamento, de Arlindo Philippi Jr. e Alexandre de Oliveira Aguiar, p. 267-321; Gerenciamento de resíduos de serviços de saúde, de Angela Maria Magosso Takayanagui, p. 323-374); e legislação e controle ambiental (Avaliação de impacto ambiental: diretrizes e métodos, de Arlindo Philippi Jr. e Ivan Carlos Maglio, p.689-732); Legislação ambiental aplicada, de Daniel Roberto Fink, p. 733-759).
Mas se a proposta do livro parece possuir, então, mérito e validade óbvios, não seria exagero dizer que, provavelmente, não encontra eco na maioria dos cursos de arquitetura e urbanismo do país, em que se pese a análise das ementas e conteúdos das disciplinas sobre o tema das infraestruturas urbanas. Isto é ainda mais lamentável ao se perceber que abordagens como as de Saneamento, saúde e ambiente, além de serem mais pragmáticas e antenadas com a realidade (e, portanto, agradáveis para o alunado), são absolutamente complementares a trabalhos desenvolvidos em disciplinas consagradas nas grades dos cursos, como projeto urbano, projeto de paisagismo e planejamento urbano e regional. Por isso, o livro deve ser utilizado em sala de aula e servir de estímulo para transformações no ensino do tema nas faculdades, contribuindo para que se formem profissionais mais preparados e, portanto, melhores no enfrentamento do desafio ambiental que se apresenta ao século XXI.
Os cálculos, deixemos aos softwares computacionais e para alguém com paciência – além de habilitação e, portanto, legitimidade de exercício profissional – para revisá-los. Abandonemos as bitolas antes que fiquemos bitolados!
sobre o autor
Leo Name é arquiteto-urbanista, formado pela FAU-UFRJ, Mestre e Doutor em Geografia pelo Instituto de Geociências da UFRJ. É professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio desde 2008. Nos dois semestres letivos de 2009, foi professor substituto no Departamento de Ensino de Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF.