O contexto do período temporal que compreende a transição da Idade Média para a Idade Moderna, trouxe consigo uma série de movimentos que influenciaram e reforçaram a tendência que levaria mentes como a de Lutero a pensar a Reforma – como fora acusado Erasmo, nosso personagem em questão, pela Igreja Católica no ano de 1542 seis anos após a sua morte – além de abrir caminho em meio à soberania cristã já enfraquecida em relação à passada “Idade das Trevas”, para o pensamento humanista, que consiste em basicamente, valorizar o antro ao invés do teocentrismo.
Como sugere o título, a obra trata de um auto-elogio onde Erasmo assume a voz da loucura e passa a “desfazer” a sociedade de modo que consegue explicar os mecanismos onde o desvairar ou a folie (1) se faz presente e como esse sentimento está vinculado em qualquer ocasião/atitude/profissão de uma forma geral.
Desidério Erasmo ou Erasmo de Rotterdan, é filho bastardo de um padre com a filha de um médico. Formado teólogo, se mostrou com uma clara “rebeldia” logo após abandonar a formação clerical e adotar a razão e, como já foi dito, o humanismo como guia em seus escritos. Sua ligação à Igreja serviu para conduzir suas críticas de forma a acusar as contradições que os costumes e procedimentos católicos levavam consigo através de seus dogmas.
Em meio aos grandes empreendimentos marítimos que o Velho Mundo empregava, sobretudo na África, e na data da composição dessa obra, ano de 1501, em que os europeus já sentiam o gosto do descobrimento sob uma luz do conhecimento de rotas pelo Atlântico e etc., o autor discorre sobre uma classe que não prova do acesso aos estudos e vive na “loucura” – tratada neste Elogio como a felicidade – como neste exemplo citado do poeta Sófocles: “A vida mais agradável é a que transcorre sem nenhuma espécie de sabedoria” (2), dando margem à sua clara intenção de rebaixar e criticar o estoicismo, a teologia, seu doutores e etc. Aqui trata-se de uma formulação da realidade contraditória que Erasmo expõe com a intenção de marginalizar a pequena classe de sábios presentes na sociedade renascentista. Esta classificação é afirmada pela pequena parcela que em nome da fé e da Igreja, estipula os preceitos filosóficos do “certo” e do “errado”, herdados do imaginário medieval. Não quer dizer, necessariamente, que Erasmo quis pintar uma “sociedade feliz” sob a voz da loucura para mostrar como a ignorância é pura e simplesmente benquista no aspecto do pensamento popular. Pelo contrário, o impacto que a “falta de sabedoria” causa na sociedade é bem tratado pelo autor na sua reflexão das desordens entre as pessoas, o desdém pela realidade, a crença pessoal nas suas atividades como se fossem de maior destaque e como essa crença se move no sentido da ilusão.
Pode-se destacar com convicção a forma como Erasmo decifra a organização social. Trazendo aqui mais uma vez a tona o título (folie), o autor aponta na estrutura funcionalista desta sociedade onde as garras da loucura traça o seu império, de que maneira se estabelece o padrão, e como este dita o seu ritmo. A incompreensão cultural é um exemplo do que Erasmo aponta como deficiente na sociedade: “pois, quanto mais uma coisa é contrária ao bom senso, mais ela atrai admiradores” (3). Aqui neste caso, ele se refere aos autores das belas-artes.
O grande ponto da obra revela-se na segunda metade do Elogio. Erasmo assume sua crítica direcionada aos grandes poderes vigentes na sociedade renascentista, tais como o papado, os bispos, o principado e os monges. Destaque para o eruditismo eclesiástico do autor que busca na Bíblia os fundamentos e passagens que lhe convém para sua descrição crítica. Mas não se trata aqui de uma crítica desenfreada, Erasmo tem a minúcia de respeitar os preceitos da Santidade, atingindo somente e, principalmente, seus agentes. Como no exemplo em que fala na obra sobre uma suposta prestação de contas dos monges para Jesus “Mas Jesus Cristo [...] dirá: ‘Que nova espécie de judeus é essa? [...] Não foi a hábitos, orações, abstinências, dietas contínuas que prometi outrora o reino de meu Pai, mas ao exercício de todos os deveres da caridade [...]. Não reconheço essa gente que se gaba de suas boas obras e quer parecer mais santa que eu. Que vão procurar outro paraíso diferente do meu, que o peçam àqueles cujas vãs tradições preferiram seguir em vez de minha lei!’ Quando ouvirem essa sentença e virem que são preteridos por marujos e carroceiros, com que cara imaginais que se olharão uns aos outros? Mas até lá eles continuam gozando da felicidade proporcionada pelas doces esperanças que lhes inspiro” (4). Aqui se nota como a religião está no seu devido patamar e o que é barrado na tolerância do autor é o clero, acusado de reinventar os conceitos da santidade e ser propício ao mal da corrupção. Além disso, os contrapontos observados pelo humanista holandês se estendem não só às pessoas devotas, mas às pessoas mundanas também que tem seus princípios fincados no corpo e no materialismo, acusando os fiéis de loucos. Estes, mais preocupados na elevação da alma, por sua vez, acusam o mundano na demência. Ou seja, baseado nos pequenos fatos corriqueiros da rotina, Erasmo fundou sua crítica partindo de uma ideia central e incomum para sua época, que é o elogio da loucura – inclusive, dedicado e escrito na residência de seu amigo Thomas Morus.
O que Erasmo produz nesse elogio, é mais do que jogar com esse assunto novo ou simplesmente brindar o leitor com a exaltação da loucura. O ponto crucial nesta obra imortalizada é como o autor classifica o sistema social, fator determinante para que se decifre um mundo em transformação com a decadência do feudo e a ascensão da burguesia. Falando em atualidade, está presente entre nós este “testemunho” direto de um pensador no florescer da renascença, deixando para nós e para futuras gerações de historiadores e filósofos um recurso indispensável para a compreensão do Mundo Moderno.
notas
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em abril de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
1
Do título original em francês Éloge de la folie. Folie = Folia.
2
ERASMO, Desidério. Elogio da loucura (1501). Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre, L&PM, 2005, p. 20.
3
Idem, ibidem, p. 67. Mozart no século XVIII concordaria com esta afirmação de Erasmo, após ter uma de suas óperas criticada pelo imperador da Áustria porque seus arranjos musicais contavam com “notas demais”.
4
ERASMO, Desidério. Op. cit., p. 95-96.
sobre o autor
Gustavo Henrique de Siqueira, estudante do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atualmente com 22 anos e cursando a terceira fase da graduação.