Um guia prático para o trabalho de pesquisadores em pós-graduação, é assim que se apresenta o livro do Prof. Dr. Geraldo G. Serra (1), Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, editado em 2006 conjuntamente pela Edusp e Mandarim.
Fruto de suas reflexões como arquiteto, pesquisador, orientador e professor da disciplina “Modelos na Tecnologia da Arquitetura” no programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, o livro trata de questões relacionadas ao método e à metodologia no âmbito da configuração e desenvolvimento de pesquisas.
O autor entende que, em sentido estrito, a pós-graduação deve formar docentes para o ensino superior, e esta docência, sem pesquisa, não se realiza a contento. A pesquisa, portanto, caracteriza-se como uma atividade de longa duração, cotidiana e permanente na vida do professor universitário, ultrapassando os momentos pontuais do mestrado e doutorado.
As especificidades desta pesquisa, em uma área de conhecimento que se apóia tanto nas ciências humanas quanto nas ciências físicas, e as questões metodológicas derivadas dessa condição, balizam as considerações do autor que pretendem, de forma concisa, “tornar o caminho menos árduo” para os jovens pesquisadores.
Nos capítulos 1 e 2, o autor apresenta aspectos da teoria do conhecimento (2) e caracteriza as especificidades do conhecimento científico e da pesquisa científica, pontos de partida para adentrar a discussão das interações do universo científico com o campo específico da arquitetura e do urbanismo.
Como guia prático, o autor sugere que “para formular um projeto de pesquisa é necessário pesquisar, o que significa que é no próprio processo de pesquisa que são identificados os problemas” (p. 23). A pesquisa, portanto, começaria antes mesmo da organização do tema de interesse como projeto de pesquisa. Envolveria, em um primeiro momento, a identificação e enunciação de um problema.
As características desse problema – no sentido do termo grego probálllo (3): lançar adiante, avançar, propor – é que impulsionam o processo de pesquisa, definindo seus objetivos, seus procedimentos metodológicos e suas possíveis contribuições científicas para o avanço do conhecimento na área em questão.
Tratando das características dos objetos e dos objetivos da pesquisa em arquitetura e urbanismo, assim como de suas fronteiras com outras áreas de conhecimento, o autor conclui que “a aceitação da amplitude (do campo de investigação da arquitetura e urbanismo) não pode eliminar a especificidade” (p. 43) e esta, de difícil circunscrição, conformar-se-ia na confluência de três “fontes de informação” (p. 40):
- a história (indicando o que ao longo do tempo constituiu-se como campo de atuação e reflexão dos arquitetos);
- “os atuais currículos das escolas de arquitetura e dos programas de pós-graduação na área” (delimitando o “estado-da-arte” das linhas de pesquisa em vigência no Brasil e no exterior);
- “a observação do que fazem os arquitetos atualmente”.
A conformação proposta por Serra assume, portanto, as transformações históricas no entendimento dos limites e sobreposições do campo da arquitetura e do urbanismo e, assim fazendo, preserva a flexibilidade necessária para o entendimento do momento presente e dos desafios futuros.
Nos capítulos seguintes, de 3 a 5, o autor desenvolve de modo bastante didático e pragmático aspectos relacionados à proposição do problema (como declaração de intenção de pesquisa, contextualização e justificativa), à caracterização do objeto e dos objetivos da pesquisa (4), e aos métodos e questões metodológicas (5) daí decorrentes.
Em seguida, no capítulo 6, o autor apóia-se na discussão (ou teoria) dos modelos proposta pelo Prof. Marcial Echenique (6), do Departamento de Arquitetura da Universidade de Cambridge, para enfrentar a questão filosófica do estudo de um “objeto” (evento, fato ou fenômeno) “em si”. Conseguiríamos conhecer o “objeto em si” ou apenas seus modelos?
Os modelos matemáticos, em especial, indispensáveis para o desenvolvimento de enfoques quantitativos são apresentados com maiores detalhes no capítulo 7.
Fazendo valer a intenção de oferecer um guia prático para o trabalho de pesquisa em arquitetura e urbanismo, o autor concentra-se nos capítulos de 8 a 13 em orientar os pesquisadores na formulação de um plano ou projeto de pesquisa, sugerindo passos e conteúdos, e detalhando aspectos como:
- os “produtos da pesquisa” (capítulo 9);
- os recursos físicos-financeiros, as restrições éticas e legais, e o gerenciamento do tempo de trabalho (capítulo 10);
- a lida com as referências bibliográficas e a fundamentação teórica (capítulo 11);
- a lida com as fontes primárias e secundárias (capítulo 12);
- os critérios de avaliação de procedimentos, resultados e propostas (capítulo 13).
Após tais considerações, o autor abre um parêntesis e, no capítulo 14, faz considerações sobre a avaliação de desempenho – um dos métodos mais comuns nas pesquisas recentes em tecnologia da arquitetura – e, para exemplificar, apresenta um caso conduzido sob sua coordenação, pelo Nutau (Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) para a ABCP (Associação Brasileira de Cimento Portland).
Os dois últimos capítulos 15 e 16, retomam a sequência expositiva anterior, e fazem considerações, respectivamente, sobre a formulação de conclusões da pesquisa, e sobre a linguagem acadêmica e científica do texto. O autor apresenta, então, como referência, um “roteiro típico para um trabalho científico” (p. 244) que pode ser bastante útil aos pesquisadores na composição ou na revisão de seus projetos de pesquisa.
Certamente por sua trajetória como professor e pesquisador ligado aos temas da Tecnologia da arquitetura e do urbanismo, o autor prioriza exemplos e enfoques nesta área de pesquisa, mais próxima das ciências físicas. Outros exemplos, talvez mais “problemáticos” por situarem-se nas fronteiras das ciências humanas, no campo das artes, por exemplo, poderiam enriquecer o enfoque proposto pelo autor. O estudo das imagens da arquitetura, que pode ser ampliado ao estudo da história do projeto, dos processos projetuais e de suas representações (p. 40), e que pode derivar para o estudo do imaginário da arquitetura e do urbanismo, constitui uma dessas frentes a avançar sobre os próprios limites das humanas, mais habituadas à lida com o texto do que com imagens. O universo patrimonial, o restauro e as intervenções em edifícios e áreas urbanas de valor histórico/arquitetônico, por sua vez, constituem outra frente de pesquisa a dialogar com o campo das artes, mas também com as ciências físicas. Nestas margens, as contribuições metodológicas de áreas como a arqueologia, a iconografia, a antropologia, a psicologia e a sociologia também mereceriam considerações mais minuciosas, ampliando o entendimento das relações entre a história e os conhecimentos dos vários “fazeres” envolvidos no trabalho coletivo da construção/preservação de objetos, edifícios e cidades, como tecnologia, ou seja, como teoria sobre a técnica. Já que uma teoria – entendida como observação e reflexão especulativa sobre algo – não pode prescindir de uma dimensão temporal.
Quanto à posição do método na pesquisa, mesmo que ele seja tomado a priori (p. 88), como sugere o autor (7), é importante que prevaleça sobre a noção estrita de método, uma postura metodológica do pesquisador garantindo assim um instância crítica de reflexão permanente sobre seus próprios procedimentos, organizada como discurso (lógos), o que confereria maior consistência à pesquisa, estimularia reposicionamentos, e permitiria projetar a experiência particular do pesquisador ao nível de teoria. Neste sentido, o autor poderia enfatizar ainda mais que a dúvida, a (auto)crítica, os conflitos, incertezas e alterações de rota são comuns nas pesquisas, o que humaniza a trajetória de investigação, e desmistifica um suposto caminho retilíneo a ser tranquilamente trilhado pelo pesquisador sem maiores dramas e paixões.
Frente à necessidade contemporânea de uma revisão epistemológica para a explicitação do entendimento acerca de termos fundamentais adotados nas pesquisas em arquitetura e urbanismo – evidente nos debates e comunicações em eventos científicos recentes como o Projetar 2009 –, a crítica do autor a pesquisas que se dedicam à definição de conceitos tidos como básicos e supostamente consensuais como “espaço” (p.133), por exemplo, pode ser revista e contemporizada. Além de espaço, termos como representação, projeto, desenho e criação, para citar alguns, tem sido freqüentemente usados de modo subjetivo, impreciso e flexível, dificultando sobremaneira a comunicação, o entendimento, a crítica e o debate indispensáveis para a construção e o avanço do conhecimento como conquista pública acessível, avessa a dogmatismos, hermetismos e divagações retóricas.
Sendo a pesquisa e a construção do conhecimento científico um amplo processo cultural histórico e coletivo, o trabalho do Prof. Serra vem somar-se às iniciativas anteriores da Comissão de Pesquisa da FAU USP, de 1990 (8), e dos professores Celso Lamparelli, de 1996 (9) e Julio Katinsky, de 2005 (10), contribuindo à consolidação e ao desenvolvimento do conhecimento científico e da pesquisa em pós-graduação em arquitetura e urbanismo no Brasil. Sua leitura, portanto, é de grande valia como referência básica para todos os que se dedicam ou pretendem se dedicar à pesquisa nos programas de mestrado e doutorado em nossa área.
notas
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em abril de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
1
O Prof. Dr. Geraldo Gomes Serra é aposentado desde 1999, e foi Coordenador Científico do NUTAU – Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo da USP até 2008. Por 30 anos atuou como professor no Departamento de Tecnologia da FAUUSP junto às disciplinas de Tecnologia da Construção, na graduação, e como responsável pela disciplina “Modelos na Tecnologia da Arquitetura”, na pós-graduação, desde 1987. Orientou diversas pesquisas de mestrado e doutorado junto a pós-graduação da FAU USP entre 1988 e 2006. A Profª Drª Denise Duarte, docente junto ao Departamento de Tecnologia da FAU USP, publicou a primeira resenha sobre o livro: DUARTE, Denise. Pesquisa em arquitetura e urbanismo. Guia prático para o trabalho de pesquisadores em pós-graduação. Pós, São Paulo, n. 21, Programa de pós-graduação da FAU USP, jun. 2007, p. 246-247.
2
No seu curso na pós-graduação da FAUUSP o Prof. Serra costumava sugerir a leitura do seguinte livro como leitura introdutória ao tema: HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Coimbra, Armenio Amado Editor, 1968.
3
BAILLY, M. A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris, Hachette, 1901.
4
A principal referência teórica do autor para tratar a questão do objeto de pesquisa é a conceituação de objeto-concreto, objeto-modelo e objeto proposta pelo físico e filósofo argentino Bunge: BUNGE, Mario Augusto. Teoria e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1974.
5
Estes livros são as principais referências do autor no enfoque do método científico: KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1987; POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica São Paulo, Cultrix/Edusp, 1996.
6
ECHENIQUE, Marcial. Modelos: una discusión. Barcelona, Gustavo Gili, 1975.
7
Uma indicação inicial da discussão sobre a definição a priori ou a posteriori do método pode ser encontrada em LALANDE, André. Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie Paris, PUF, 1960.
8
Anais do Seminário Natureza e Prioridades de pesquIsa em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, FAU USP, 1990.
9
LAMPARELLI, Celso. Metodologia de pesquisa aplicada à arquitetura e ao urbanismo. São Paulo, FAU USP, 1996.
10
KATINSKY, Julio. Pesquisa acadêmica na FAU USP. São Paulo, FAU USP, 2005.
sobre o autor
Artur Rozestraten, arquiteto e urbanista (FAUUSP, 1995), Mestre e Doutor junto ao Depto. de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAUUSP, 2003 e 2007). Professor junto ao Depto. de Tecnologia da FAUUSP, São Paulo (2008).