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DERNTL, Maria Fernanda. A cidade colonial e o paradigma da ordem. Resenhas Online, São Paulo, ano 10, n. 109.03, Vitruvius, abr. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/10.109/3852>.


Pátio do Colégio, óleo 100x66 cm. José Wasth Rodrigues, 1918 [Acervo do Museu Paulista]

Ainda pairam sobre São Paulo do período colonial imagens de decadência, vazio e isolamento, em contraste com visões pujantes da metrópole em que a cidade se transformou depois. Nessa obra de Amílcar Torrão Filho, a revisão da historiografia sobre a cidade colonial brasileira e a crítica a visões tradicionais sobre São Paulo são a base para uma análise que ressalta a função civilizadora atribuída ao espaço urbano na administração do Morgado de Mateus (1765-1775).

O livro tem origem na dissertação de mestrado orientada pela professora Maria Stella Bresciani e compartilha o interesse de um grupo de historiadores da Unicamp por explorar o modo como certos lugares-comuns e imagens sobre a cidade se constroem e acabam condicionando interpretações. Nessa perspectiva, o trabalho de Amílcar Torrão Filho retoma o debate sobre a cidade colonial para mostrar que uma determinada noção de ordem ou racionalidade urbanística foi adotada como premissa nos textos pioneiros sobre o tema e seguiu determinando caminhos interpretativos. A opção metodológica por São Paulo justifica-se pela tendência da historiografia em considerá-la desordenada e vazia, tornando-a, para fins dessa análise, um paradigma de certa visão da cidade colonial.

O trabalho inicia-se tratando do conhecido texto de Sérgio Buarque de Holanda, “O Semeador e o Ladrilhador”, publicado originalmente no livro Raízes do Brasil de 1936 e depois transformado em capítulo à parte na edição de 1947. Demonstra-se como, a partir das imagens do semeador e do ladrilhador, fixaram-se cânones de interpretação opondo, de um lado, a cidade portuguesa, associada à desordem e ao crescimento orgânico e, de outro lado, a cidade hispânica, associada à ordem e ao planejamento.

Os textos envolvidos no debate sobre a cidade colonial de matriz portuguesa já foram objeto de vários balanços e reflexões abrangentes, ainda assim, o livro de Amílcar Torrão Filho traz uma contribuição nova ao distinguir seis teses, ou seis perspectivas de análise, com base na ênfase em diferentes aspectos, como, por exemplo, o pragmatismo das ordenações urbanas, a lógica medieval de implantação, a linguagem espacial de caráter barroco ou a função de ordenamento civil e eclesiástico. A divisão em teses não é estanque, já que, como reconhece o autor, diferentes aspectos se entrelaçam em algumas interpretações. O recurso a essa classificação é útil para apontar linhas interpretativas de alguma forma tributárias ao texto de Sérgio Buarque, mesmo quando se pretendeu refutá-lo.

Na revisão da historiografia sobre a cidade colonial, uma das preocupações do livro é mostrar que interpretações pautadas pela noção de “urbanismo” remeteriam a critérios e padrões alheios àquele período. O alerta em relação ao risco de anacronismo é pertinente, mas também se deve considerar que, embora o urbanismo só tenha se constituído como disciplina científica no século 19, muito antes já se apresentava como proposição prática sobre a cidade.

O livro apresenta também uma revisão da historiografia específica sobre São Paulo, procurando discutir imagens de vazio, pobreza, isolamento e desordem perpetuadas por uma certa tradição interpretativa. Embora o autor esteja mais preocupado com as facetas urbanas dessas imagens, pôde contar com textos que já desenvolveram perspectivas semelhantes, como, por exemplo, o clássico trabalho de Ilana Blaj (1) sobre o processo de mercantilização de São Paulo. Em contraposição a visões tradicionais, Amílcar Torrão Filho destaca diferentes modos pelos quais a cidade atuou na obra da colonização, detendo-se em temas da maior atualidade nos debates historiográficos, como, por exemplo, a ação das Câmaras municipais, o papel das elites coloniais  e os nexos entre urbano e rural.

Um desafio do livro é abordar a cidade de São Paulo no período de 1765 a 1775 sem perder de vista a problemática sugerida pela análise da historiografia e, ao mesmo tempo, sem recair nos paradigmas usuais. Para isso, a ampla ação urbanizadora promovida pelo governador Morgado de Mateus na capitania de São Paulo é relacionada a medidas reformistas implementadas em diferentes âmbitos da administração. A tese central é que a vila nascida no século 16 como espaço de conversão em moldes jesuíticos passou a ser encarada, no século 18, como espaço de conversão à civilidade e de submissão à autoridade da Coroa e da Igreja. O foco do trabalho não são as morfologias urbanas – como é a tônica na história do urbanismo – mas a visão de cidade veiculada pelas políticas ilustradas do governo pombalino. Ainda assim, elementos da arquitetura e dos traçados urbanos são importantes para destacar diferentes modos de representação e imposição do poder monárquico.

No estágio atual de trabalhos sobre a cidade colonial, podem-se considerar superadas as abordagens baseadas na dicotomia entre ordem e desordem dos traçados urbanos. Não quer dizer, porém, que as proposições de Sérgio Buarque de Holanda estejam ultrapassadas. Conforme adverte Amílcar Torrão Filho, as metáforas do semeador e do ladrilhador, desenvolvidas num texto de cunho ensaístico e tom programático, não pretendiam mesmo apresentar conclusões fechadas, mas traziam tipos ideais que só  seriam encontrados em sua forma pura no mundo das idéias. Nesse sentido, como se vê nesse livro, são imagens que permanecem sugerindo polêmicas e ainda podem vir inspirar novas interpretações sobre o fato urbano.

notas

NE 1
Publicação original: DERNTL, Maria Fernanda. A cidade colonial e o paradigma da ordem. Pós, São Paulo, n. 26, FAU USP, dez. 2009, p. 274-275.

NE 2
A publicação em Vitruvius aconteceu em abril de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.

1
BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo, Humanitas FFLCH-USP/Fapesp, 2002.

sobre a autora

Maria Fernanda Derntl, arquiteta, mestre e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP, professora adjunta da FAU-UNB.

legenda

Pátio do Colégio, óleo 100x66 cm. José Wasth Rodrigues, 1918
Acervo do Museu Paulista

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