Renato Anelli é o autor desse instigante painel da arquitetura feita no Brasil nos últimos 50 anos e que integra coleção da editora Motta Architettura com volumes dedicados a diversos países. Um breve texto traça o percurso das principais idéias que cercaram a arquitetura nacional nesses anos (1957-2007) e introduz a uma seleção de 60 obras dispostas em ordem cronológica de projeto. Cada uma dessas obras é apresentada por um desenho, um texto e por uma foto de página inteira. Essas fotos formam uma seqüência ininterrupta nas páginas ímpares (p. 19 a 137) compondo um álbum de apelo irresistível.
É sobre a seleção de obras que recai a responsabilidade desse painel brasileiro, um painel que põe em xeque as visões mais estereotipadas da arquitetura nacional. Essa idéia talvez se torne mais clara num percurso década a década. O conjunto de obras cujos projetos datam dos anos de 1950 inicia-se com as conhecidas obras de Brasília, a Catedral e o Congresso Nacional, mas, na seqüência, deparamo-nos com o menos lembrado Pavilhão de Exposições de São Cristóvão, com sua planta elíptica e cobertura de dupla curvatura de telhas leves, estruturada por cabos de aço. Aparecendo na seqüência, o conhecido Ginásio do Paulistano dá testemunho da precocidade com que uma nova geração de arquitetos ganhou importância na arquitetura paulista na segunda metade dos anos 1950. O Masp e a Galeria Metrópole dão magistrais exemplos de inserção urbana: por um lado, o gesto urbano radical, que deixou livre a esplanada no espigão da Paulista e, por outro, a implantação cuidadosa que favorece percursos na área central junto à Praça João Mendes. Em ambos, pilares de seção retangular constante marcam as faces exteriores, testemunhando a exposição crescente da estrutura. A sofisticação do detalhamento aparece na perfeita continuidade entre living e jardim na casa Castor Delgado Perez – vigas invertidas, luminárias embutidas – e também na recuperação do Solar do Unhão, com a magnífica escada inspirada na essencialidade do desenho popular.
Na seleção das obras projetadas entre 1960 a 1969 também há interessantes contrapontos às imagens totalizantes e simplificadoras da produção nacional, como é o caso de três edifícios em regiões mais periféricas do país. O edifício Santo Antônio em Recife, com seu pórtico sombreado sob uma fachada de elementos vazados, é um bloco longitudinal com salas comerciais abrindo em ambos os lados de um corredor central. É esse corredor, fadado à baixa qualidade, que Borsói enriquece por meio de iluminação natural difusa e uma suave ondulação das paredes. O pequeno edifício FAM em Porto Alegre surpreende pela radical abstração fornecida pelos planos móveis de venezianas e os topos de viga que afloram soltos na elevação frontal. Por fim, o edifício Barão do Rio Branco, cuja solução à lá Mies, com planta quadrada e pilares externos marcando as quatro elevações, é visualmente desfeito por planos saltados, revestidos em tons fortes. A duas obras escolares que figuram nestes anos sintetizam visões curiosamente opostas: por um lado, o espaço acabado, centralizado e introspectivo da FAU-USP, por outro, a concepção aberta do ICC na UnB com sua seqüência de pórticos pré-fabricados que virtualmente poderiam ser repetidos indefinidamente. Nessa seleção convivem a inovadora estrutura espacial de tubos de alumínio do Palácio das Exposições do Anhembi, as abóbadas de cerâmica armada de Eládio Dieste na Ceasa de Porto Alegre e o onipresente concreto armado das primeiras estações do metrô de São Paulo.
As obras concebidas entre 1970 a 1979 contribuem para a percepção de uma maior diversidade formal e material. Começa a aparecer com relativa preeminência a solução formal que se justifica em nome das pré-existências ambientais, são vários os exemplos: o Sesc Tijuca com o programa dividido em módulos que formam patamares na encosta coroada por casarão do século XIX, o discreto prisma de vidro escuro do BNDE cuidadosamente implantado junto ao Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro, o Centro Cultural São Paulo que se amolda ao talude margeando a Av. 23 de Maio, o complexo embasamento do Conjunto Itaú Conceição que reconstitui a encosta mesclando-se ao espaço público e, naturalmente, o antológico Sesc Fábrica da Pompéia.
A seleção de Anelli para os anos de 1980 oferece soluções antípodas como a residência dos Padres Claretianos, estritamente regida pelas possibilidades da tecnologia do tijolo de barro estrutural, e a Rainha da Sucata, cuja forma é acintosamente independente da lógica estrutural construtiva. Ou ainda, o Memorial da América Latina, cuja solução parece destituir o concreto de materialidade valorizando a autonomia da forma, em contraposição ao MUBE, entranhado no terreno com um uso do concreto que lembra a pedra, destacando texturas e apoios. E mesmo a contraposição entre o aço industrial da prefeitura de Lelé e a manufatura das esteiras revestindo os pilares da Casa do Benin, ambos no centro histórico de Salvador. Mas não deixa de haver soluções que revelam pesquisas assemelhadas como as do Sesc Nova Iguaçu e do Centro de Lançamentos de Alcântara. Ou a busca de novas tipologias urbanas nos conjuntos habitacionais da Unicamp e da Vila Mara.
Na pequena seleção de obras projetadas nos anos de 1990 há continuidades em relação ao final da década anterior e, de forma um tanto intangível, a inauguração de uma nova fase. Anelli nos aponta a superação da polarização entre uma defesa incondicional da arquitetura moderna e a busca frenética por alternativas a ela. Um uso mais aberto e menos exclusivo dos materiais aliado a uma maior consideração pela paisagem. Natural ou construída, a paisagem começa a se impor como elemento a ser preservado ou recuperado, mas, de qualquer forma, incorporado na solução.
E assim chegamos ao final, anos 2000 a 2007, na contemporaneidade de obras como o Museu de Microbiologia da USP, a Casa Fatia, o Fórum de Cuiabá, a casa de praia R.R. ou o Museu do Pão. A alta qualidade arquitetônica dessas obras, porém, não leva Anelli a adotar um tom ufanista, apontando três grandes desafios para que a arquitetura contemporânea no Brasil venha a alcançar uma atuação mais efetiva para o conjunto da sociedade: a dimensão metropolitana, o meio ambiente e o aspecto cultural. De fácil leitura, embora nunca redutor, o texto é rico de referências, locais e internacionais, e, provavelmente, irá estimular muitas outras ilações além das presentes nessa resenha.
nota
NE 1
A publicação em Vitruvius aconteceu em maio de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
NE 2
Resenha publicada originalmente na revista Pós, São Paulo, n. 27, jun. 2010, p. 270-272. ISSN: 1518-9554.
sobre a autora
Maria Alice Junqueira Bastos é arquiteta, doutora pela FAU-USP (2005), autora dos livros Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira (Perspectiva/Fapesp, 2003); Königsberger Vannuchi: Duo Alto de Pinheiros (Editora C4, 2009) e Brasil: Arquiteturas após 1950, em co-autoria com Ruth Verde Zein (Perspectiva, 2010).