No ano de 2010, uma emissora de rádio da cidade de São Paulo resolveu levar ao ar pequenas biografias sobre os personagens que cederam seus nomes às ruas da capital. Com isso, dentro de um quadro de curiosidades, cujo objetivo era apenas o de informar os motoristas da frota de 7 milhões de automóveis de São Paulo, foram evocados Prestes Maia, Cincinato Braga, Ramos de Azevedo, dentre vários outros que nomeiam logradouros públicos paulistanos. Obviamente, as informações tinham caráter jornalístico, e, raramente escapavam dos chavões obtidos por meio da Internet.
Na mesma época era lançado, há vários quilômetros de distância de São Paulo, nos Estados Unidos, um livro que veio ajudar a aprofundar os conhecimentos sobre essa cidade que é uma das mais interessantes quando o assunto é o processo de urbanização: São Paulo. O livro em questão, nomeado Urban Space and National Identity in Early Twentieth Century São Paulo, Brazil: crafting modernity [“Espaço urbano e identidade nacional na São Paulo do início do século XX: moldando a modernidade”], de autoria da arquiteta e historiadora Cristina Peixoto Mehrtens é uma contribuição importante ao campo da história urbana.
Devotado a elucidar três importantes dinâmicas do processo de urbanização - a emergência da classe média como consumidora e requisitante de um espaço urbano típico dos tempos modernos; a ação da iniciativa privada no setor da construção civil que prestou seus serviços à classe média; e, ainda, o poder público, oficial e juridicamente aparelhado para o papel de mediador dos interesses dos outros dois agentes, a publicação revela as interações e as negociações pelo território e pela construção da metrópole paulistana.
Esta tríade é rigorosamente escrutinada por Cristina Mehrtens, que se debruçou sobre fontes primárias, secundárias, literárias e orais para analisar o caminho de estruturação do planejamento urbano paulistano, focando, para tanto, a organização dos serviços públicos municipais e, na complementaridade dessa investigação, os arranjos que os profissionais do espaço construído produziram para uma emergente classe média paulistana. Escolhendo três organizações diversas, mas entrelaçadas por ações e personagens, a autora analisou como o Escritório Técnico de Ramos de Azevedo e sua versão pós-1928, o Escritório Severo e Villares; o Departamento de Obras Públicas da Prefeitura Municipal de São Paulo e a empresa anglo-brasileira Cia City atuaram na cidade nas décadas de 1920, 1930 e 1940.
Mehrtens, arquiteta e urbanista formada pela FAU USP, e mestre em Antropologia pela UNICAMP, traz consigo uma visão multidisciplinar que foi enriquecida por um doutorado em História na University of Miami, nos Estados Unidos, instituição à qual apresentou a tese que nucleou este livro. Radicada nos Estados Unidos há duas décadas, Cristina Mehrtens, que trabalhou no Condephaat, no IPT, na CDHU, e na PUC-Campinas na década de 1980, hoje, ocupa o posto de Associate Professor no Departamento de História da Universidade de Massachusetts em Dartmouth, nos Estados Unidos. Esta autora faz parte de um grupo que diligentemente tem procurado afrouxar as fronteiras entre as áreas de conhecimento e, assim, avançar nas pesquisas e considerações acerca daquilo que ela mesma nomeou como uma “gramática da identidade” (p. 2) que não apenas definiu a cidade de São Paulo geograficamente, mas, também, culturalmente.
Esse enfrentamento do território pelo viés da história social, dá ao livro de Mehrtens uma saborosa liberdade que se manifesta em 5 capítulos, que conduzem o leitor por um percurso iniciado ainda nos século XIX e que chega à década de 1940. Este recorte temporal é explicado pela busca dos laços do poder público com a iniciativa privada na constituição do processo urbanizador/modernizador paulistano.
Muito embora a autora retroceda ao século XIX para dar conta de explicar o século XX, sobretudo a década que mais lhe interessa, a de 1930, torna-se importante notar que o livro não incorre na costumeira atitude de tomar o século XIX como o “simples tempo das origens do século XX”, algo que tem sido recorrente na historiografia urbana brasileira. A obra inova ao colocar, no tempo e no espaço, atores sociais que, muito embora nascidos no século XIX, foram homens de seus tempos.
Pode-se ler, ainda no primeiro capítulo de “Urban Space and National Identity in Early Twentieth Century São Paulo, Brazil: crafting modernity”, outra importante e inovadora atitude de Cristina Mehrtens: a de investigar as redes que faziam a construção identitária tanto da cidade quanto de seus agentes. Desse modo, instituições americanas de ensino superior são conectadas a filhos de imigrantes europeus radicados em São Paulo, a referências espaciais britânicas bem como a profissionais forjados profissionalmente na América Hispânica. Ou seja, o livro de Mehrtens revela algo que vem sendo lentamente incorporado aos estudos de Arquitetura e Urbanismo no Brasil: a percepção do dado não-geográfico do conhecimento e a interpretada circulação de ideias entre Estados Unidos, Brasil, América e Europa.
O segundo capítulo da obra, denominado “The Dynamics of Paulista Urban Institutions in the 1930s” foca a trajetória de profissionais do urbano, sobretudo advogados, assistentes sociais, planejadores e, em especial, engenheiros, que envolvidos pelo “paulicentrismo” típico daqueles anos, desenvolveram atividades profissionais que transformaram o território da nascente metrópole. Torna-se interessante, neste capítulo, apontar para a investigação dedicada de Mehrtens sobre as atividades de Arnaldo Dumont Villares (1888 – 1965), diplomado em 1908, em Engenharia Civil e Elétrica pela London Crystal Palace Engineering School, e ex-empregado da Siemens & Schukert, na Alemanha ainda em seus primeiros anos de formado. Personagem central para as políticas de desenho do território paulistano em pelo menos três décadas, este ator social pode ser invocado pela metáfora da aglutinação: nasceu como descendente de duas das mais influentes famílias da época - os Dumont e os Villares -, inseriu-se por casamento e trabalho em mais um proeminente clã do período: a família Ramos de Azevedo - casou-se com Laura, filha de Ramos de Azevedo em 1912 -, tornou-se colaborador de um dos mais renomados conglomerados empresariais de São Paulo, o Escritório Técnico F.P. Ramos de Azevedo – onde também atuava seu tio Ricardo Severo – e manteve laços de amizade e de negócios com inúmeros funcionários do primeiro escalão do poder municipal. Mehrtens revela como Arnaldo Dumont Villares veio a comandar os negócios de Ramos de Azevedo após sua morte, em 1928, até 1965, elencando as tomadas de decisões e os impactos das negociações entre as empresas que comandou com o poder público e com a Cia City, da qual foi membro do Conselho Diretor. Especificamente, Mehrtens explora, baseada nos arquivos da Cia City, as relações que Arnaldo Dumont Villares manteve com a elite paulistana nas atividades imobiliárias, mas, também, com o poder público, enfatizando relações que revelam intercâmbios inimagináveis entre negócios e desenho do território, ainda nas primeiras décadas do século XX.
Nesta investigação, a autora analisa elegantemente o episódio de construção do Edifício Ouro para o Bem de São Paulo, erigido pela Santa Casa de Misericórdia da capital com o excedente das doações feitas pelos paulistas para a manutenção do “exército” da Revolução Constitucionalista de 1932. O edifício, que ainda ocupa pouco espaço na historiografia da verticalização de São Paulo, ostenta uma estilização da bandeira do Estado em sua fachada, reforçando a argumentação acerca da identidade paulistana, perscrutada por Cristina Mehrtens na investigação de Cincinato Braga (1864-1953), autor da controversa teoria de “Sãopaulização” do Brasil (p. 75). Braga, formado em Direito pela Academia do Largo São Francisco, em 1886, exerceu, como aponta Mehrtens, a atividade de economista e foi deputado estadual e federal pelo PRP. No livro, Mehrtens mostra quão importante foi o papel de Cincinato Braga para o sucesso dos empreendimentos da Cia City, sobretudo quando aponta que, para Braga, a desconcentração industrial era onerosa, gerando, assim, justificativa para a explosão de loteamentos pelas, outrora, franjas da capital paulista (p. 75).
Esta explosão imobiliária pelas áreas até então pouco ocupadas do território paulistano é capaz de ser entendido no capítulo 3 da obra, que se detém no making of da classe média formada por empregados em serviços urbanos, na década de 1930. Este capítulo, um dos mais longos e, incontestavelmente, um dos mais expressivos da obra, traz à discussão algo que ainda é pouco presente em nossas estantes: as dinâmicas do interior do serviço público, sobretudo nos departamentos devotados ao trabalho técnico com a cidade. Investigando o Departamento de Obras Públicas da Prefeitura da capital paulista, a autora revela, mais uma vez a porosidade do poder público, especialmente quando se fala das demandas sociais e daquelas provenientes de grupos associativos em emergência naqueles anos: como as universidades (USP e Escola de Sociologia e Política), diversos sindicatos, o Crea, as instituições dos bancários, etc. Este capítulo revela, por outra mão, os fundamentos sociais do processo de urbanização paulista dos anos 1930: construir uma metrópole moderna e que levasse em conta uma procurada liderança econômica nacional, obtida e propalada pelos atores sociais tratados no livro dentro de um controverso “espírito de investimento” capaz de negociar a cidade valendo-se da moeda típica dos anos em tela: a especulação imobiliária dos loteamentos e dos arranha-céus.
É exatamente essa situação de celebração da cidade como moldada pela força do capital particular que Mehrtens explora no quarto capítulo de sua obra, batizado de “The Symbolic Construction of a Paulista Urban Identity”. Neste capítulo, a autora revela a força que a arquitetura assume dentro das negociações simbólicas do quadro político. As tensões entre o poder central, calcado na figura de Getúlio Vargas, e os “humilhados paulistas” da década de 1930, permitem a Cristina Mehrtens pinçar de documentos diversos, elementos que comprovam uma ação que, se pode ser vista como não homogênea em sua origem, teve resultados parecidos: a celebração do paulista. Dessa forma, a autora passa a limpo a importância de Alfredo Ellis e de sua tentativa de disseminar pelo renomear das ruas da capital as datas importantes atreladas à Revolução de 1932 (p.125). Em complementaridade, Mehrtens investiga, ainda os trabalhos de pesquisa dos professores das jovens universidades paulistas sobre a cidade, e culmina na importância do Estádio do Pacaembu, visto como uma arquitetura que simboliza o período varguista em São Paulo por acomodar desfiles cívicos e grandes atividades típicas do Estado Novo, como os grandes concertos orfeônicos de Villa Lobos.
O Estádio do Pacaembu, desde 1927 estimulado pela Cia City para ser construído, despertou grande polêmica na São Paulo dos anos 1930. Os exorbitantes custos da obra levaram a imprensa a proclamar se não era preferível que bairros operários, densamente povoados, recebessem os recursos empenhados na construção, para erigirem escolas e demais equipamentos de caráter social (p. 132). O zelo da Cia City pelo Estádio em um dos bairros por ela planejado e comercializado levantou suspeita de certa “porosidade” nas intenções, ou seja, assim como desconfiou Paulo Duarte, a Cia City tinha outros interesses na construção (p. 132), e, dentre elas, a de uso como Club, por uma parcela da elite, de um estádio público.
O quinto e último capítulo de Urban Space and National Identity in Early Twentieth Century São Paulo, Brazil: crafting modernity se detém, exatamente, na construção do Estádio do Pacaembu. Como a própria autora expõe: “o estudo de caso do Estádio do Pacaembu é uma janela privilegiada para diferentes grupos técnicos e profissionais, sobre suas percepções e sobre seus legados em políticas públicas e particulares” (p. 139). Isso se manifesta, ao longo do capítulo, num exaustivo detalhamento das relações travadas entre diversos atores sociais e os três níveis de poder (Federal, Estadual e Municipal), mostrando atividades escusas, arrojos administrativos, frustrações técnicas e, sobretudo, a constituição de modus operandi que, hoje, 80 anos depois, se mostra, infelizmente, ainda como prática corrente nas atividades do setor da construção civil, em diversas partes do país.
A obra que os leitores de língua inglesa têm a chance de ter em mãos desde outubro de 2010, merece uma tradução cuidada e uma edição ao alcance do grande público de língua portuguesa. Entre vários méritos apontados nesta resenha, talvez o maior deles seja o de tratar a história urbana com cuidado metodológico, fazendo a escrita de uma história calcada em fontes e com força de abordagem a qual revela que, muito embora a cidade de São Paulo tenha se impermeabilizado intensamente ao longo do século XX, abrindo vias e investindo no rodoviarismo, ela moldou, paralelamente, por meio de muitos de seus pensadores, administradores e gestores uma malha invisível, extremamente porosa, capaz de permitir escambos entre as esferas públicas e particulares que nos legou grande parte da cidade que hoje (ainda) conhecemos.
nota
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em maio de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
sobre o autor
Fernando Atique é arquiteto e urbanista (EESC), mestre (EESC) e doutor (FAU) em História da Arquitetura pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros Arquitetando a ‘boa vizinhança’: arquitetura, cidade e cultura nas relações Brasil-Estados Unidos,1876-1945 (Pontes/Fapesp, 2010) e Memória moderna: a trajetória do edifício Esther (RiMa/Fapesp, 2004). É docente e pesquisador no Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, na área de Espaço e Patrimônio Edificado.