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O conceito de “jardim histórico” proposto pela Carta de Florença define como do interesse da preservação cultural obras que manipulam elementos naturais e artificiais para fins estéticos, utilitários, econômicos e científicos.

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SILVA, Aline de Figueirôa. Jardins históricos brasileiros e mexicanos. Interlocuções sobre historiografia e preservação. Resenhas Online, São Paulo, ano 10, n. 111.01, Vitruvius, mar. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/10.111/3868>.


Jardim Botânico do Rio de Janeiro, início do século 20
Foto divulgação [Acervo do Museu Botânico do Jardim Botânico do RJ]

O conceito de “jardim histórico”, moldado em 1981 no plano internacional pela Carta de Florença, no campo da preservação cultural, refere-se a um razoável conjunto de obras humanas historicamente nascidas da manipulação de elementos naturais e artificiais para fins estéticos, utilitários, econômicos e científicos.

Aproximadamente trinta anos depois, o jardim histórico extrapola o arcabouço da Carta de Florença e, como objeto e campo de investigação, transpõe o domínio profissional de arquitetos e paisagistas. Dilata-se, através de múltiplos interesses e olhares, em um dos temas emergentes da agenda do patrimônio cultural e dos estudos históricos sobre a arquitetura e a cidade.

É o que nos mostram pesquisadores e profissionais brasileiros e mexicanos no livro que as professoras Ana Rita Sá Carneiro (1) e Ramona Pérez Bertruy (2) acabam de trazer a público.

Jardins históricos brasileiros e mexicanos, oficialmente lançado no Recife e na Cidade do México, nasceu do trabalho conjunto das professoras na coordenação do Simpósio de Jardins Históricos Ibero-Americanos, realizado no 52º Congresso de Americanistas (Sevilha, 2006), e ganhou edição bilíngue graças à parceria entre as duas universidades – UFPE e UAM.

Se não trazemos uma narrativa-síntese do livro – o que está muito bem posto pelas organizadoras na introdução aos temas brasileiros e mexicanos, respectivamente – podemos atender ao convite dos autores e passear por diferentes paisagens históricas. Menos pela diversidade de jardins ilustrados e mais pela variedade de aportes que eles encerram.

Os jardins históricos brasileiros compreendem o desaparecido Parque de Friburgo (1637), hortas conventuais coloniais, o Passeio Público do Rio de Janeiro (1779-1883), jardins ou hortos botânicos (séculos XVIII-XIX), passeios, jardins e parques públicos (séculos XIX-XX) e jardins privados dos séculos XIX e XX, além das elaborações do paisagismo moderno moldado por Roberto Burle Marx a partir de 1930.

Por sua longa tradição, os jardins históricos mexicanos assumem uma cronologia mais ampla e compreendem paisagens pré-colombianas, hortas conventuais, alamedas, passeios, jardins botânicos e parques urbanos.

Em comum, os dois conjuntos de artigos contemplam os jardins históricos sob diferentes expressões paisagísticas e situam seu estudo numa cadeia multidisciplinar, avocando conteúdos ou procedimentos metodológicos das ciências humanas, sociais e naturais e da literatura.

O conjunto brasileiro é composto por dez artigos, que tratam da historiografia e de questões ligadas à preservação, com leve predominância do primeiro aporte. Geograficamente, concentram-se nas cidades do Recife (SILVA; SÁ CARNEIRO), Rio de Janeiro (TRINDADE; TERRA; OLIVEIRA, HEYNEMANN & LOUREIRO; MONTEIRO & ANDRADE), Campinas (LIMA), São José dos Campos e São Paulo (MARCONDES; BARTALINI), localizadas em três estados brasileiros – Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

O conjunto mexicano, por sua vez, formado por nove artigos, situa-se essencialmente no campo da historiografia (VELASCO LOZANO; PÉREZ BERTRUY; MORALES FOLGUERA; AGUILAR OCHOA & ALFARO RAMÍREZ; GARCÍA CORZO; MARTÍNEZ SÁNCHEZ & ALCÁNTARA ONOFRE; TRUJILLO HERNÁNDEZ; QUIROZ ÁVILA). A questão da preservação comparece sutilmente, na medida em que os autores indicam o atual estado de conservação de seu objeto de estudo ou narram transformações ocorridas ao longo do tempo, inexistindo relatos de projetos ou obras de restauração. Os artigos mexicanos estão geograficamente mais bem balanceados, pois abrangem a Mesoamérica e as grandes urbes do país, como Cidade do México, Guadalajara, Puebla e Querétaro, o que, evidentemente, justifica-se pela menor extensão territorial do país, comparativamente ao Brasil.

Neste particular aspecto reside nosso mea-culpa. Por outro lado, o desafio – reputado – pelos autores mexicanos consiste na antiguidade de sua produção paisagística, que remonta a épocas pré-hispânicas.

Em ambos os conjuntos prevalecem os jardins públicos, apesar da evolução da noção de “domínio público” ao longo do tempo. Mesmo no caso dos jardins domésticos ou encerrados em palácios, chácaras ou conventos, são discutidos aspectos que extrapolam o domínio privado (SILVA; BARTALINI; VELASCO LOZANO; PÉREZ BERTRUY), desvelando significados ligados à figura de seus idealizadores ou proprietários e reveladores da identidade de um povo, de uma cultura, de um estilo ou de uma época.

O livro é um indicador do desenvolvimento do campo de pesquisa sobre jardins históricos no Brasil desde a elaboração de obras fundadoras e inaugurais: O jardim no Brasil no século XIX: Glaziou revisitado (3), de Carlos Terra (1996), e Ao amor do público: jardins no Brasil (4), de Hugo Segawa (1996).

Os autores brasileiros fornecem contribuições à questão da preservação dos jardins históricos, pois relatam experiências de restauração, ainda escassas no Brasil (TRINDADE; SÁ CARNEIRO; BARTALINI), e ensaios críticos sobre a evolução e as transformações ocorridas em jardins públicos e privados do modernismo (MONTEIRO & ANDRADE; MARCONDES), sugerindo aproximações com as teorias do restauro arquitetônico.

As experiências de restauração, particularmente, tratam de três jardins que apresentam profundas diferenças em relação ao projeto original, à época de construção, superfície, inserção no tecido urbano e mesmo entre as cidades em que se localizam – Rio de Janeiro, Recife e São Paulo. Distintas também eram as transformações ocorridas nos jardins e em seus respectivos entornos ao longo do tempo e a quantidade e a natureza de documentos históricos e dados disponíveis à época da restauração – fontes escritas e iconográficas, literárias, bases cartográficas, anúncios de serviços e venda de imóveis, hipotecas, escrituras, artigos e desenhos de época, relatórios técnicos e oficiais, etc.

No entanto, tomados em conjunto, os artigos ilustram bem a assimilação de algumas diretrizes da Carta de Florença, aplicadas a diferentes realidades históricas e urbanísticas, mediante restrições legais, ambientais e documentais. Em todos os casos, são expressivos: 1) o recurso à analogia (estudo de projetos do mesmo autor e/ou da mesma época); 2) a fundamentação em fontes documentais diversificadas e criteriosa confrontação entre estas e os vestígios materiais; 3) a vegetação tomada como elemento fundamental, cristalizando grande parte das tomadas de decisão em relação à manutenção, remoção ou até transplante de árvores.

Os jardins brasileiros estão filiados à cultura ocidental, graças à presença de estrangeiros no país desde o século XVII, mormente holandeses, franceses e ingleses, e a figuras como Maurício de Nassau, Auguste Glaziou, Francisco de Paula Ramos de Azevedo, José Marianno Filho e Roberto Burle Marx (SILVA; TRINDADE; TERRA; LIMA; OLIVEIRA; SÁ CARNEIRO), por sua atuação administrativa, técnica ou intelectual.

Isto nos dá o alcance da diversidade de “agentes paisagísticos” ligados à criação de vários jardins no Brasil. E, por outro lado, a enorme medida das lacunas relativas a um razoável número de administradores públicos, engenheiros, arquitetos, urbanistas, paisagistas, jardineiros e artesãos que, historicamente, ajudaram a transformar a face de diversas cidades brasileiras. É o que demonstra a paulatina revelação destes senhores, incluindo aqueles já reconhecidos nacional ou internacionalmente, entre tantos outros que ainda repousam no anonimato.

A propósito, Morales Folguera nos mostra, através do estudo de caso da Alameda de Querétaro, projetada pelo agrimensor José Mariano Oruñuela no final do século XVIII, a transposição, para o território hispano-americano, da polêmica travada na Espanha em relação à separação profissional entre engenheiros militares, civis e arquitetos e sua formação acadêmica, de um lado, e artesãos, artífices e mestres de obra, de outro. Revela, ainda, a atuação do poder público na criação de um “jardim barroco” a propósito da aparência da cidade, do recreio da população e do controle institucional dos profissionais ligados ao projeto de edificações, espaços urbanos e obras públicas.

O papel do poder público no desenvolvimento do paisagismo no México oitocentista é a matéria do artigo de Martínez Sánchez e Alcántara Onofre. Os autores se debruçam sobre os conceitos e projetos desenvolvidos pelo arquiduque Maximiliano de Habsburgo durante o Segundo Império (1864-1867), à luz dos princípios urbanísticos praticados nos países europeus como França, Áustria, Inglaterra, Bélgica e Espanha. Praças, passeios e jardins constituíram formas urbanas privilegiadas para alcançar os efeitos do urbanismo haussmanniano, modificando a cidade colonial do México. Por sua ampla formação em ciências humanas e naturais, línguas, filosofia e desenho, até nos esportes e na arte de governar, Maximiliano de Habsburgo exerceu papel ativo nas tomadas de decisão sobre o projeto dos jardins públicos da capital mexicana, inclusive na identificação de sítios e no manejo da vegetação.

De outro modo, se as experiências paisagísticas brasileiras do século XIX têm sido relacionadas à instalação da Corte Portuguesa em 1808, à nossa “francofilia” cultural e seus desdobramentos no campo das artes, das ciências e das letras, o refinado relato de Oliveira, Heynemann e Loureiro religa laços entre os princípios iluministas europeus dos setecentos, as experiências portuguesas de criação de jardins botânicos e um de nossos ilustres exemplares – o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Neste sentido, García Corzo nos mostra a ligação entre os jardins botânicos mexicanos e a tradição pré-hispânica e européia, dos mais remotos (séculos XVI e XVII) aos jardins do século XVIII, de cunho mercantilista, bem como as razões do aparecimento dos exemplares de Guadalajara no século XIX e a relevância que adquiriram ao longo da história.

Os jardins botânicos brasileiros e mexicanos cristalizam-se como uma paisagem-museu, uma paisagem-palimpsesto – espaço de colecionismo de plantas autóctones e exóticas, de ilustração e instrução botânica, assumindo distintas características fisionômicas, sucessão de temporalidades, superposição de usos e funções. Neles, as plantas eram cultivadas segundo diferentes critérios e destinações, prevalecendo o caráter ornamental ou utilitário (medicinal, alimentar, tecnológico – uso na construção civil ou na indústria têxtil) (OLIVEIRA, HEYNEMANN & LOUREIRO; GARCÍA CORZO).

No México, os estudos sobre paisagens históricas encontram-se enriquecidos pelos aportes da literatura e pelos avanços da arqueologia, pois ambos encerram novas possibilidades científicas. Os autores mexicanos nos mostram a fértil relação entre a literatura e a produção de conhecimento sobre os jardins históricos, ilustrada de duas maneiras. De um lado, crônicas escritas por colonizadores espanhóis a respeito das paisagens cerimoniais mesoamericanas e seus vestígios arqueológicos convertem-se em fonte documental de primeira importância. Do outro lado, na narrativa de Quiroz Ávila, a literatura proporciona a elaboração de uma série de representações da cidade, cristalizadas em torno de um decrépito jardim público – local de miséria, loucura, infortúnio e decadência econômica, física e social. Um romance moderno contextualiza, na cidade contemporânea, a inserção urbana de um jardim histórico, seus usos e seu entorno, a dinâmica e a condição social de seus usuários.

Outro aspecto presente nos dois conjuntos de textos é a associação entre ecletismo e paisagismo, relativamente aos jardins oitocentistas e aos jardins do século XX que antecedem o modernismo, nos quais predominavam a concepção romântica e a reprodução de modelos estrangeiros ou historicistas. Esta questão não está enraizada na literatura científica mexicana, segundo Pérez Bertruy, nem na tradição historiográfica brasileira, mas comparece, ainda que sutilmente, em alguns artigos. Por outro lado, os pesquisadores mexicanos frequentemente relacionam marcos cronológicos e estilísticos entre si, com referência aos movimentos artísticos e culturais de matriz européia – renascimento, barroco, neoclassicismo, romantismo, ecletismo, modernismo/funcionalismo.

Esta noção de jardim eclético encontra-se, portanto, delineada como uma classificação simultaneamente cronológica e estilística, mas em fase de elaboração conceitual nos dois países.

Se o livro não nos dá, stricto sensu, o estado da arte das pesquisas e dos casos de restauração de jardins históricos no Brasil e no México, nos oferece, de modo pródigo, a diversidade de conhecimentos e sua raiz disciplinar, a diversificada tipologia de espaços verdes e espaços livres, públicos e privados, pesquisadores e profissionais envolvidos com o tema e a riqueza de aportes que os jardins históricos insinuam. Na acepção primeira da palavra insinuar, ou seja, “fazer entrar no coração”, “introduzir no ânimo”.

O conjunto de jardins históricos que os leitores estão convidados a percorrer engendra, em múltiplos aspectos – projetuais, instrumentais, materiais e simbólicos –, significados artísticos, religiosos, ritualísticos, políticos, estratégico-militares, econômicos, científicos, urbanísticos, museais, botânicos, ecológicos, educativos, sanitários, agrícolas, tecnológicos, sociais e literários. E, enfim, espirituais. Em última – ou em primeira – instância.

E isto, assim posto, é extremamente válido e significativo para a constituição de uma história/historiografia do paisagismo latino-americano e para o planejamento da conservação do nosso patrimônio paisagístico.

notas

NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em maio de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.

1 Ana Rita Sá Carneiro é professora da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Brasil.

2
Ramona Pérez Bertruy é professora da Universidad Autonoma Metropolitana – UAM, Azcapotzalco – México.

3
Inicialmente elaborado como Dissertação de Mestrado em Artes Visuais/UFRJ (1889-1993).

4
Inicialmente elaborado como Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo/USP (1889-1994).

sobre a autora

Aline de Figueirôa Silva é arquiteta e mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE, docente do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP). Pesquisadora do Laboratório da Paisagem/UFPE. Técnica do Iphan-PE. Autora da dissertação de mestrado “O projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife de 1872 a 1937” (menção honrosa nos Prêmios Literários da Cidade do Recife, categoria ensaio, 2008). Foi bolsista do Programa de Especialização em Patrimônio Iphan/Unesco (2005-2007) e atuou no Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados dos monumentos religiosos e museológicos de Olinda-PE (Iphan/BNDES/FGF) (2008-2010). Docente do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI) no Curso de Especialização em Gestão do Patrimônio Cultural integrado ao Planejamento Urbano da América Latina (ITUC/AL) – 2009/2010.

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resenha do livro

Jardins históricos brasileiros e mexicanos

Jardins históricos brasileiros e mexicanos

Ana Rita Sá Carneiro and Ramona Pérez Bertruy (Orgs.)

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