Em 1972, ano em que se dissolve o grupo Internacional Situacionista, fundado em 1957, o filósofo italiano Mario Perniola finalizava uma monografia na qual narra e interpreta a história do grupo. Após quase quatro décadas, em 2009, reafirmando a tese fundamental outrora sustentada, segundo a qual a “Internacional Situacionista” representou a última vanguarda histórica do século XX, o livro originário daquela monografia Os situacionistas: o movimento que profetizou a “sociedade do espetáculo” foi publicado aqui no Brasil. Curiosamente, a introdução dessa edição é escrita em uma estadia do autor na ilha de Itamaracá – PE, na qual enseja que a contribuição da crítica à sociedade do espetáculo, de Guy Debord, constitua um instrumento atual de oposição à decadência de notáveis grandezas culturais do Brasil como a música, o carnaval e o artesanato.
Mario Perniola, filósofo de renome internacional e professor de estética da Universidade de Kyoto (Japão) e da Universidade de Roma (Tor Vergata) fez mais do que apresentar a trajetória da Internacional Situacionista (IS): sua proximidade com a IS, evidenciada pelas trocas de correspondência com o líder Guy Debord, em meados dos anos 1960, bem como seu encontro com os situacionistas, comentado logo na introdução do livro, em julho de 1968 em Bruxelas, um mês após os acontecimentos que marcaram Paris, proporcionaram-lhe um respaldo único para a apresentação do “conto da façanha situacionista”.
No livro, Perniola, pressupondo um leitor já familiarizado com a IS, descortina conceitos e teorias situacionistas, para, em seguida, habilidosamente tecer suas críticas. O conceito de subjetividade artística, desenvolvido pelo autor como a alienação característica da auto-consciência artística, é o fio condutor no qual Perniola se apóia por todo o livro, identificando a partir dele contradições e fragilidades no seio da teoria e práxis situacionista. Perniola parte do conceito hegeliano de “superação” da arte, que implica em um duplo aspecto: crítica e realização, negação e alcance de um nível superior, além da ideia de arte atrelada a um determinado estatuto histórico-social de idealidade que diz respeito tanto ao sujeito quanto ao objeto artístico. Nos três capítulos que compõem o livro – “A Superação da arte”, “A Teoria Crítica da Sociedade” e “A realização da teoria” – Perniola retoma estes conceitos para apresentar a “grandeza” e os limites da Internacional Situacionista.
No primeiro capítulo, o autor detém-se nos principais elementos que qualificaram e originaram o projeto situacionista: a ruptura com o establishment artístico, a “atenção à mudança histórica” e a superação da arte. O primeiro advém da necessidade de combater o processo de decomposição cultural, definido pela IS como a cortina ideológica por trás do ecletismo cultural, e o oportunismo do mercado de obras de arte reinante nos ambientes da arte modernista. A “atenção à mudança histórica” diz respeito à “consciência dos novos tempos”, em que Perniola distingue as duas correntes dentro da IS, as “duas almas do hiperfuturismo situacionista”, a técnico-científica e artística representada por Pinot Gallizio e Constant e a social-revolucionária representada por Debord. A ideia de superação da arte, por sua vez, preconizada pelo grupo, identifica na recusa do objeto artístico o principal antídoto para a reificação da arte, eliminando as futuras recuperações das obras de arte pelo mercado e a dissolução da experiência artística na própria vivência cotidiana.
Destacando esses três elementos, Perniola ressalva que entre o surrealismo e a IS há um salto qualitativo, seja devido à ruptura com os ambientes artísticos, seja na relação entre realidade e imaginação que é totalmente revisada com os situacionistas a partir da “consciência dos novos tempos”, que considera a existência do “maravilhoso” na própria realidade.
Em contrapartida, Perniola afirma que a experiência artística implica na inter-relação entre a operação e a obra e aponta a recusa do objeto artístico como um limite da teoria situacionista. Abolir a obra sem submeter a exame a operação revela uma conflitualidade entre sujeito e objeto interna à arte, pois segundo o autor, a experiência vivida do artista e a obra são como “pólos de um mesmo processo no interior do qual se determinam um e outro sobre a base de uma oposição recíproca” (p. 36). Em outras palavras, apenas “a recusa das objetivações da subjetividade criativa” é um tipo de crítica que também permanece no âmbito da alienação artística. Perniola acredita que a crítica radical deve ocorrer sob ambos aspectos nos quais se articulam a arte, ou seja, operação e obra, sob pena da pretensa superação não escapar à auto-consciência artística, aquela de crer-se uma totalidade completa, mas que possui o monopólio do significado somente no campo do ideal.
Se num primeiro momento foi justamente a conciliação entre as “duas almas do hiperfuturismo” que deu vida à IS, a partir dos anos de 1960 o grupo passa por uma revisão em relação a sua posição artística e estrutura organizativa que culmina, em 1962, na expulsão de toda sua ala artística. Deste marco e desta nova posição da I.S, discutidos no capítulo seguinte, Perniola aponta mais um limite na teoria revolucionária situacionista.
A ruptura com a ala artística, por um lado, eliminou o desconforto da ambígua condição dos artistas dentro da I.S que eram solicitados a se juntarem ao mercado da arte e, por outro, evidenciou a necessidade de uma disciplina que impusesse unidade ao grupo. Essa busca por unidade e coerência objetivando o alcance de uma liberdade criativa de todos os homens foi definida por Raoul Vaneigem como “subjetividade radical”. A radicalização da subjetividade implica em todos os indivíduos possuírem uma consciência por uma mesma vontade de “realização autêntica”, logo, a criatividade individual não se distingue da criatividade universal.
Segundo Perniola, a subjetividade radical foi o principal instrumento de sectarismo e absolutização do grupo. A subjetividade transformou-se no reflexo da identidade situacionista, justificando relações e comportamentos particulares, onde eles pretenderam fundar uma situação específica sobre uma medida universal – os que não compartilhassem desta identidade, ou cessassem de compartilhar, estavam imediatamente fora do seu papel revolucionário. A subjetividade radical, portanto, coloca-se na IS como um absoluto, revelando a sua origem na subjetividade artística, como uma totalidade, além de encaminhar a experiência revolucionária para um dogmatismo sectário que se auto-contempla: “O narcisismo individualista do artista se transforma em um narcisismo de grupo, sem abandonar a sua natureza essencial: não é mais o indivíduo, mas a organização a crer-se uma totalidade” (p. 39).
A unidade e a coerência alcançadas a partir da subjetividade radical fizeram com que a IS se reconhecesse como detentora das condições de um virtual poder contrário ao instituído pela burguesia e representante da vontade das massas, desejando a dissolução do poder concentrado e a instauração dos conselhos operários. Com esse espírito, a I.S parte para a “realização da teoria”, discutida no terceiro e último capítulo.
A experiência dos Conselhos Operários era vista pelos situacionistas como a única herança válida para a revolução contemporânea, abolindo os modelos bolchevique, social-democrata e anarquista. Porém a nova apropriação dos conselhos operários deveria ser colocada diante da vida cotidiana, porque para os situacionistas, a causa da revolução social nasce inteiramente na experiência vivida, na dimensão concreta da vida proletária, na constatação e recusa do tédio e da insignificância na qual a maioria das pessoas é constrangida a viver.
A revolução social relacionada inteiramente na experiência vivida, na dimensão da vida concreta proletária, é considerada por Perniola como mais um grande salto dos situacionistas “depois de decênios de humanismo e de iluminismo pseudo-revolucionário” (p. 89). No entanto, apesar de demonstrarem essa “longa visão histórica” e “intuição revolucionária”, os situacionistas não são preservados de um “erro de fundo”, como denominou Perniola. E esta falha o autor irá apontar em dois eventos que marcaram a trajetória da IS, o Escândalo de Estrasburgo em 1966 e o Maio de 1968.
O Escândalo de Estrasburgo foi a primeira manifestação européia da revolta estudantil marcado por um texto situacionista, escrito por Musthapha Khayati, intitulado: Da miséria no ambiente estudantil considerado nos seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e especialmente intelectual, e de alguns meios para remediá-lo, o qual se tornou o texto mais célebre e divulgado da história da IS.
Para Perniola, o texto continha os dois aspectos fundamentais do escândalo, a autodissolução do poder e a apropriação da teoria crítica, entretanto, a falha ficou por conta da IS que, detectando a falta de homogeneidade teórica no movimento estudantil, tomou para si o papel de dirigente, gerando desavenças entre os estudantes e os situacionistas. Esta situação faz emergir o sectarismo e o dogmatismo como um problema insuperável dentro do movimento.
Dois anos depois, o ponto mais alto da experiência situacionista, o Maio francês de 1968, resultou, por um lado, na tentativa frustrada de formação dos Conselhos por parte do proletariado e, por outro, na afirmação de que tinha sido o início de uma época revolucionária da qual os situacionistas representaram a consciência antecipadora.
Diante deste embate, a IS diagnosticou dois problemas de base. O primeiro, o atraso entre a insurreição coletiva e a devida apropriação da consciência teórica e organizativa, característico da formação de conselhos. O segundo, os limites que a passividade econômica e espetacular induzem na ação da subjetividade revolucionária, além do atraso por parte da esquerda que se obstina a reproduzir os erros do passado através dos sindicatos, grupos trotskistas e maoístas.
Entretanto, para o autor, a falha dos situacionistas não foi a constatação dos limites das revoltas, mas a explicação destes, ou seja, que os motivos que levaram a subjetividade proletária se expressar de modo tão radical através da greve e das barricadas, e ao mesmo tempo não se organizar em conselhos, deveu-se à presença de forças psíquicas regressivas que operam contra qualquer tentativa de liberação (p.107). Além disso, o autor aponta a subjetividade artística como limite não superado da crítica situacionista, onde a postura sectária da totalidade ideal impossibilitou a conciliação com a experiência da democracia direta, do projeto de organização dos conselhos, como reconhece o próprio Vaneigem (p. 111).
Por fim, Perniola acrescenta que a incapacidade de ajudar concretamente na formação de uma organização de conselho leva a IS a ponto do qual os situacionistas jamais se moveram, ou seja, “à pura subjetividade artística não superada, à posse sectária e exclusiva da totalidade ideal”, o que os colocou num círculo vicioso que culminou na dissolução do grupo no ano de 1972. Porém, esta constatação não reduz a grandeza da IS que, segundo Perniola, foi o mais excepcional intérprete dos fermentos revolucionários e das condições de alienação do seu tempo, apontando sua trajetória como ponto de referência obrigatório para a perspectiva revolucionária contemporânea.
sobre os autores
Ana Carolina Fróes Ribeiro Lopes, doutoranda em História e Teoria da Arquitetura e Urbanismo, IAU –USP, São Carlos.
Rodrigo Nogueira Lima, mestrando em História e Teoria da Arquitetura e Urbanismo, IAU – USP, São Carlos.