O livro de Silvana Olivieri é fruto de um trabalho apaixonado que se torna rapidamente apaixonante para o leitor, em particular para os amantes da cidade e do cinema. A paixão e a intuição aguçada que guiaram este trabalho, de complexa e original articulação entre ideias de diferentes campos, tecidas a partir do conceito guattari-deleuziano de cristal, traz várias contribuições importantes para a problematização do campo do urbanismo. Algumas dessas contribuições merecem ser explicitadas, a começar pela própria abertura crítica, defendida pela autora, do campo da arquitetura e, sobretudo do urbanismo, ao diálogo com outros campos que também lidam com a questão urbana, como a antropologia, a etnografia, o cinema, o vídeo e a filosofia. Este diálogo, chamado recentemente por Silvana Olivieri de “campo transbordado” a partir do campo das artes visuais (1), não seria uma mera ampliação de um campo em si, mas sim um transbordamento deste nos outros e dos outros neste, abrindo-se assim, entre eles, outras possibilidades de pensamento e de ação em comum. Esta é a principal aposta da autora, ao convidar arquitetos urbanistas não somente ao cinema, mas a fazer cinema e, também, a fazer um outro tipo de urbanismo ao fazer cinema. “Quando o cinema vira urbanismo”,mostra, por meio dos documentários urbanos, um outro pensamento crítico sobre a cidade, que segue em paralelo, como um caminho alternativo, um desvio criativo do campo do urbanismo propriamente dito, mas que pode – e deve, segundo a autora – ser determinante em sua própria atualização enquanto campo de conhecimento.
Outra contribuição que emerge do trabalho é o tensionamento proposto, mesmo de forma implícita,mas que funciona como um fio condutor, daquilo que era seu tema inicial de estudo: a noção de participação dos habitantes nos processos urbanos. Foi exatamente o esgotamento contemporâneo desta noção – tão repetida hoje em todo e qualquer projeto urbano de qualquer tendência econômica, política ou urbanística – que levou a autora a buscar o diálogo com outros campos de conhecimento e, assim, se debruçar sobre o trabalho de outro autor apaixonado cujo trabalho também se deu na interseção entre campos: o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos, que se dizia um “antropoteto”, mas poderia ser chamado também de “etnurbanista”, e teve papel fundamental tanto nos projetos participativos de urbanização de favelas, quanto na aproximação metodológica, teórica e empírica, entre antropologia, etnografia, urbanismo e documentário urbano no país. Carlos Nelson Ferreira dos Santos, talvez por sua personalidade polêmica e singular, apesar de ter deixado discípulos e seguidores, ainda não foi suficientemente estudado e não teve sua importância devidamente ressaltada na historiografia do urbanismo nacional. O presente livro, portanto, ao retomar suas ideias, também contribui neste sentido.
A partir desta pesquisa, que faz Carlos Nelson Ferreira dos Santos dialogar com Lucien Kroll,ou ainda com Jean Rouch, entre outros, Silvana Olivieri propõe uma outra postura para os arquitetos urbanistas, que poderia ser chamada de “postura antropológica” (2), ou seja, uma inversão na prática atual, onde os “especialistas” da cidade ditam as normas e valores a partir de uma visão distanciada do cotidiano urbano na perspectiva do usuário, do morador. Trata-se de uma proposta de troca de lentes: a valorização das alteridades, das diferenças e suas singularidades urbanas, por meio de uma infiltração, ou travelling, no campo (ou melhor, na cidade), de uma aproximação, ou zoom, no foco. Ou seja, trata-se de uma busca de compreensão do Outro, de seus processos heterogêneos, seus gestos mais cotidianos, seus usos e práticas mais prosaicos. Este Outro não está mais distante, em sociedades ditas primitivas ou exóticas, como nos estudos etnográficos tradicionais que fundamentaram a etnologia e a antropologia clássica, mas está bem próximo, ele mora ao lado, divide, se apropria ou ocupa, por vezes de forma bastante conflituosa, os espaços públicos urbanos. A radicalidade deste Outro urbano se torna explícita sobretudo naqueles que habitam as zonas opacas das cidades, aqueles que Milton Santos chamou de “homens lentos”: favelados, moradores de rua, ambulantes, camelôs, catadores, prostitutas, entre outros, que inventam várias táticas e astúcias urbanas em seu cotidiano. Aqueles que a maioria dos urbanistas prefere não ver, não saber, teima em ignorar e que, não por acaso, são os primeiros alvos da assepsia promovida pela maioria dos atuais projetos urbanos pacificadores, ditos revitalizadores. Entretanto, o que ainda garante a vitalidade resistente nos espaços públicos é exatamente a presença dissensual desta alteridade radical na cidade e seu tipo de apropriação que contraria, desvia ou subverte as imposições autoritárias dos projetos urbanísticos. E é, precisamente, esse tipo de participação urbana pela vivência cotidiana, opaca, “microscópica”, que os documentários urbanos pesquisados pela autora insistem em focar, tornar visível. Esta simples inversão no regime de visibilidade na cidade já é uma contundente crítica destes cineastas e artistas à postura hegemônica atual de distanciamento dos arquitetos e urbanistas, o que, sem dúvida alguma, constitui uma potente ferramenta de ação urbana.
Por fim, este livro não é um discurso isolado da autora, mas um diálogo com sua atuação militante no sentido desta inversão de visibilidade através do audiovisual ao divulgar sistematicamente, em particular dentro do próprio campo do urbanismo, os filmes citados e comentados neste livro, a partir da organização e da curadoria de várias mostras de documentários urbanos realizadas em diferentes cidades brasileiras, especialmente em eventos da área, a começar pelo XI Encontro Nacional da ANPUR,em Salvador,em 2005,até a seleção de vídeos no III SILACC,em São Carlos,em 2010, passando pelo encontro Corpocidade 1,em Salvador,em 2008, com a excelente mostra A cidade e suas paisagens intraordinárias (3). Ao atuar como um discurso paralelo, que ganha força a cada nova edição, as mostras contaminam, através das ideias filmadas, os demais debates sobre a cidade e funcionam como uma infiltração subterrânea que insurge em pequenas brechas. Assim, a organizadora alimenta escapes, “linhas de fuga”, novas possibilidades, um tipo de contra-produção de subjetividades que embaralha algumas certezas, preconceitos e estereótipos do pensamento urbanístico ou sobre a cidade. O desvio do urbanismo pelo cinema, pelos documentários urbanos, pela antropologia visual, opera como um poderoso desestabilizador das partilhas hegemônicas do sensível e das configurações enrijecidas dos desejos. Silvana Olivieri, de forma apaixonada e apaixonante, nos faz um sedutor convite a este desvio cinematográfico.
notas
NE
O presente texto é o prefácio do livro.
1
Oficina As artes visuais como um campo transbordado: diálogos com a filosofia, a antropologia e o urbanismo (proposta por Silvana Olivieri), setembro a dezembro de 2010 no MAM-Bahia.
2
Termo bastante utilizado por Alessia de Biase, que estudou com Giancarlo de Carlo e Marc Augé, para denominar uma postura comum aos pesquisadores do Laboratoire Architecture Anthropologie (LAA) – em Paris. Este termo também pode ser encontrado em Michel Agier, Esquises d’une anthropologie de la ville, lieux, situations, mouvements, Louvain, Bruyant-Academia, 2010.
3
Ver detalhes da mostra e entrevista com a sua organizadora no livro: Corpocidade, debates, ações e articulações, Salvador, Edufba, 2010. Outras mostras interessantes foram realizadas pela autora: na Cinelândia, no Rio de Janeiro, dentro do evento “A rua é nossa”, e em São Paulo, no CCSP e no CINUSP.
sobre a autora
Paola Berenstein Jacques é professora do PPG-AU/FAUFBA e pesquisadora CNPq.