Nesta primeira década do século XXI, com a grave crise econômica que atinge os Estados Unidos e Europa, visões esperançosas estão voltadas para dois gigantes em desenvolvimento: a China e o Brasil. O Brasil tem o apelo de fazer parte da América Latina, região historicamente subdesenvolvida e de se destacar neste contexto por um crescimento que permaneceu estável nestes últimos anos. A sua originalidade é o resultado do retorno institucional a um regime democrático depois de uma longa ditadura militar, que permitiu o almejado equilíbrio econômico alcançado ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que o sucederam em três períodos com governos ditos progressistas, mantiveram os fundamentos econômicos que permitiram melhorias nas condições de vida das camadas mais pobres, sem afetar a situação do grande capital.
É esse apelo que estimula o interesse pelo tema dos assentamentos precários, que se iniciaram no Rio de Janeiro em 1897, e que hoje, no século XXI, é um dos maiores problemas das estruturas urbanas dos países em vias de desenvolvimento. Pode ser que o vaticínio de Mike Davis, que profetizou um futuro apocalíptico para a Humanidade, não esteja longe.
No Brasil, Rio de Janeiro é a cidade ícone do país, o símbolo da brasilidade. Nos interstícios de sua paisagem original e única que combina mar, montanha e floresta, irrompe uma cidade que ocupa superfícies planas irregulares, em uma sucessão de “estilos” que, ao longo da história, definem diferentes períodos. É a imagem bucólica da “Cidade Maravilhosa”, procurada pelo turismo internacional. Ao lado de uma cidade “solar” circunscrita às classes de melhor padrão, se desenvolve uma extensa cidade noir nos bairros periféricos classe média baixa, e nas inúmeras favelas localizadas nos morros centrais e em distantes terrenos inóspitos. Ao abordar o tema da favela, sobrevém o paradoxo de identificá-la com o sonho romântico do “bom selvagem” e ao mesmo tempo representa-la no drama da miséria, da violência, e do comércio de drogas.
Nos anos vinte, o escritor futurista italiano Tommaso Marinetti, visitou a favela do Morro da Conceição; nos anos trinta, Le Corbusier com Josephine Baker, foi ao Morro de Santo Antônio entusiasmado com a “casa mínima” na qual identificava seu ideal de uma célula habitacional que pudesse ser reproduzida larga escala. A visão intelectual utópica e idílica da favela culminou com o filme “Orfeu Negro” de Marcel Camus (1959); no entanto, na mudança de milênio, a crua realidade emerge representada nos filmes “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles e “Tropa de Elite” de José Padilha. Este diálogo entre utopia e realidade não cessa: uma imagem estetizada da “favela” ocupou as estações do Metrô de Paris; foi exposta na Bienal de Veneza; e aparece no restaurante “Favela Cubana” em Nova York. Os designers Humberto e Fernando Campana e o arquiteto Isay Weinfeld, criaram móveis e decorações inspiradas na informalidade das favelas tematizando-as para luxuosas lojas de grife. Os turistas estrangeiros percorrem a Rocinha como em um “safári”, para conferir se é de fato real a existência dos “pobres felizes”, e mais recentemente passeiam no teleférico do Complexo de Alemão. Um tipo de comportamento que não condiz com o drama ainda presente no Rio de Janeiro nas mil favelas que abrigam aproximadamente dois milhões de moradores; um problema que talvez seja atenuado através de ações concretas e imediatas com a perspectiva da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016.
Esta mistura entre utopia e realidade, entre beleza e feiúra, entre pobreza e riqueza, são os ingredientes que atraem o interesse mundial pelas favelas do Rio de Janeiro, características que não despontam nas ocupações das populações carentes de Mumbai, Jakarta, Lagos ou Lima. Daí a proliferação de estudos e pesquisas desenvolvidos sobre o tema: a autora cita a existência de 2.5 milhões de entradas na internet na palavra “favelas”; a produção entre 1980 e 2000 de 668 livros, e a presença no Google Scholar de 12 mil artigos. Com esta avalanche acadêmica se poderia pensar que este livro é mais um entre os já publicados, mas evidentemente, não é assim. O primeiro destaque da sua importância é o prólogo do ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso — que já havia apresentado o primeiro livro da Perlman, The Myth of Marginality. Urban Poverty and Politics in Rio de Janeiro (1976) —, onde ressalta a significação para o Brasil desta longa pesquisa desenvolvida no Rio de Janeiro, ao longo de quase meio século.
A jovem Perlman, estudante de antropologia nos Estados Unidos, chegou ao Brasil em 1962, nas delegações que Kennedy enviava na América Latina, nos programas da Aliança para o Progresso, para deter a influência de Cuba na região, e fortalecer o relacionamento com os Estados Unidos. Perlman, sensível aos graves problemas sociais verificados na América Latina e entusiasmando-se com o Brasil, decidiu aprofundar o estudo das condições de vida dos camponeses e pescadores nordestinos, tema pesquisado entre 1963 e 1965. Convidada a ministrar cursos em Belo Horizonte (1966) e em Brasília (1968); visitou também o Rio de Janeiro neste ano, interessou-se no estudo das favelas, e começou a realizar uma pesquisa antropológica em três exemplos de assentamentos diferenciados: a favela da Catacumba, na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas na zona sul da cidade; em Nova Brasília, localizada entre Ramos e Bonsucesso na zona norte; e na Vila Operária em Duque de Caxias na Baixada Fluminense. Não foi um trabalho acadêmico tradicional: decidiu morar nas favelas integrando-se à vida dos habitantes. Em 1969, os militares proibiram pesquisas feitas por estrangeiros e a autora teve que regressar aos EUA. Por ter morado em favelas acreditava-se que ela fosse uma agente subversiva. Conseguiu voltar novamente ao Brasil em 1973, e com o retorno da democracia, continuou visitando Rio de Janeiro em várias ocasiões. Nestes quarenta anos de estudos, entrevistou 2500 pessoas; e o maior valor da pesquisa foi a possibilidade de reencontrar-se com as mesmas pessoas vinte ou trinta anos depois da primeira entrevista, verificando as mudanças ocorridas neste período para essas pessoas e identificando melhorias ou dificuldades surgidas ao longo de suas vidas: tanto quando permaneciam nas favela, como quando se integravam na cidade formal.
Perlman descobriu a falsidade do “mito da marginalidade”, visão pela qual os moradores das favelas eram “demonizados”, considerados como criaturas estranhas ao cotidiano da cidade formal; e das teses que perduraram até os anos oitenta, sobre a necessidade da erradicação das favelas nas áreas centrais da cidade. Viveu de perto o drama da supressão de favelas próximas aos bairros nobres do Rio de Janeiro, durante os anos sessenta e setenta, tanto no governo de Carlos Lacerda — em parte devido às grandes chuvas que provocaram alagamentos e deslizamentos nos morros, com nefastas conseqüências para os moradores das favelas —; quanto pela ação invasiva da ditadura militar que relocou cerca de 150 mil pessoas para conjuntos habitacionais construídos na periferia urbana da cidade, sem infraestrutura ou serviços públicos. Os dez mil moradores da favela da Catacumba, estudada por Perlman — e também da Praia do Pinto no Leblon, arrasada por um incêndio e transformada na urbanização conhecida atualmente como “Selva da Pedra” —, tiveram que sair das suas casas em 1970 sendo então alojados em áreas como Quitungo, Guaropé, Cidade de Deus e Vila Kennedy, os mais pobres, nas inóspitas casas no bairro da Paciência. Com a intervenção da Igreja Católica – Pastoral das Favelas (1979) –, e com a luta desenvolvida pelo arquiteto Carlos Nelson F. dos Santos na paradigmática favela de Brás de Pina, no final dos anos setenta, a política de erradicação foi paralisada, e as grandes favelas como Vidigal e Rocinha, situadas próximas a bairros ocupados em grande parte por edificações de padrão elevado sobreviveram.
O principal atrativo do livro é o seu conteúdo humano, a vivência de dezenas de moradores das favelas, que expressam com autenticidade e sinceridade os seus problemas, expectativas, aspirações, que ao longo destas décadas definiram as suas vidas na luta para superar a pobreza e procurar sair do contexto onde moraram. Não é um livro de pesquisa acadêmica frio, cheio de tabelas e estatísticas; ao contrário, o desejo da autora é o de evidenciar que habitantes das favelas não são “marginais”, mas estão inseridos na dinâmica social e econômica da cidade formal, onde basicamente trabalham e participam da vida política e cultural, em alguns casos. E ao entrevistar os moradores no “antes e depois”, conseguiu descobrir, não somente as condições da vida material de cada um deles, mas o relacionamento entre os velhos e jovens, as mudanças geracionais que ocorreram entre pais e filhos especialmente quando, na esperança de sair dos limites fechados pela pobreza, buscavam a educação que permitisse uma melhor remuneração, e possibilitasse residir melhor na cidade formal. Também documentou o desespero dos habitantes da favela da Catacumba, obrigados a se dispersar — perdendo os vínculos comunitários — em blocos de apartamentos na periferia da cidade, distante dos lugares de trabalho, cuja qualidade ambiental rapidamente se deteriorou por conta do descaso do Estado. E por último, nos assentamentos mais pobres da Baixada Fluminense, relatando o desespero daquelas comunidades que não conseguiram ultrapassar a insegurança do cotidiano.
O livro não se limita a registrar depoimentos individuais, nem recorrer ao apelo da emoção. Nos capítulos dedicados à análise social, econômica e política, demonstra as contradições existentes no sistema político brasileiro; apontando que por longo tempo a municipalidade evadiu-se da sua responsabilidade como agente do poder público de criar as condições mínimas de vida e de introduzir no espaço das favelas as infraestruturas de apoio social indispensáveis. Antítese que se manifestaria com as iniciativas desenvolvidas nos anos noventa no Programa Favela-Bairro, dos governos dos prefeitos César Maia e Luiz Paulo Conde. Ao mesmo tempo revela a expansão da presença de traficantes de drogas e de pessoas fortemente armadas nas favelas e as suas violentas consequências. Atualmente, as ocupações realizadas pelo exército e pela polícia têm como objetivo erradicar o narcotráfico e dar segurança aos moradores das maiores favelas da cidade. A autora mantém um tom equilibrado, sem cair nem num otimismo ilusório. Por um lado ela argumenta que a existência da favela é uma conseqüência do sistema capitalista, agora radicalizado pela globalização e pela crise econômica mundial. Ainda assim, no Brasil, que até o momento tem conseguido controlar a crise, a taxa de construções espontâneas nas áreas periféricas das grandes metrópoles continua alta. Por outro, demonstra que as experiências ocorridas no Rio de Janeiro para melhorar as condições de vida dos moradores das favelas — e não somente na capital carioca, mas também em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre —, constituem exemplos de renovação urbanística nos assentamentos.
A crítica que poderia ser feita a autora é a sua visão cética sobre a eficácia das mudanças urbanísticas e arquitetônicas no contexto das favelas. É quase como uma presença subliminar a tentativa de reduzir o significado deste marco físico na vida dos moradores: o equívoco — talvez um “ato falho” inconsciente — que se evidencia nas fotos da página 279, onde se apresenta o “antes” e o “depois”, da intervenção na favela Parque Royal. De fato, as duas imagens são do “antes”. É verdade que o Programa Favela-Bairro foi limitado, como ela demonstra, ao abranger 168 comunidades, das mais quase mil existentes. No entanto, são iniciativas, que em certos casos resultaram em alguns sucessos, como evidenciam os textos de Fernando Lara, Roberto Segre, Jorge Fiori, Zeca Brandão e Jorge Mario Jáuregui no livro de Felipe Hernández, Peter Kellett e Lea K. Allen, Rethinking the Informal City. Critical Perspectives from Latin América. Berghahn Books, Oxford, 2010. A validade destas propostas derivava do objetivo de dissolver o “insulamento” das favelas, e integra-las à cidade formal. Poder-se-ia argumentar, que a idéia de Massimo Cacciari, que procurou estabelecer uma original diferença entre a polis grega e a civitas romana, seria ali aplicada. A circunscrição da favela poderia ser identificada com a polis; o seu oposto seria a união dessa população ao universo metropolitano, que os identificaria como que integrados à dinâmica da civitas. E esta experiência positiva se concretizou nas favelas Fernão Cardim, Rio das Pedras, Vidigal e Fubá-Campinho, projetadas pela equipe dirigida por Jorge Mario Jáuregui, que em 2000, obteve o Sixth Veronica Rudge Green Prize in Urban Design, na Harvard University. Graduate School of Design. Sucesso que também ocorreu em outras intervenções.
N0 início da segunda década do século XXI, as transformações que vão progressivamente ocorrendo na infraestrutura, nos serviços sociais e nos espaços públicos, estão gradualmente introduzindo a presença de novos modelos habitacionais cuja intenção é a de estabelecer um diálogo entre casas individuais construídas pelos próprios moradores e os projetos criativos de blocos de apartamentos idealizados pelos arquitetos. São projetos mais abrangentes e ambiciosos, desenvolvidos com o apoio do governo federal, cuja transformação territorial é acompanhada pela imperiosa eliminação dos traficantes nas favelas com uma nova estratégia de ação policial, menos agressiva, com a presença de unidades da chamada Polícia Pacificadora, dedicada a manter a segurança das comunidades, e possibilitar um ambiente que se espera em uma cidade “regular”. No Rio de Janeiro já está ocorrendo uma intensa aproximação cultural entre moradores da cidade formal e habitantes das favelas. Sem dúvida, a presença da Orquestra Sinfônica Brasileira no Complexo do Alemão, no dia 10 de dezembro de 2011, interpretando a “Nona Sinfonia” de Beethoven tem uma significação simbólica. Nesta articulação entre política, economia, ação social, cultura, urbanismo e arquitetura, é que se poderá chegar a um equilíbrio mais justo nas cidades brasileiras.
sobre os autores
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do PROURB FAU UFRJ.
José Barki, arquiteto (FAU/UFRJ), doutor (PROURB), professor da FAU/UFRJ e do PROURB. Chefe do Departamento de Análise e Representação da Forma, pesquisador do PROURB FAU UFRJ.