No ensaio intitulado A tradição anti-moderna de Latino-américa, escrito em 1983, o célebre poeta e escritor mexicano Octavio Paz (1914/1998) explica com notável lucidez alguns dos temas que historicamente condicionaram a consciência cultural do continente e que perduram até os dias de hoje. Nele, compara os processos de conquista e colonização da América do Norte e da América Latina. O primeiro, colonizado por ingleses, holandeses e franceses, significou a transferência para o novo mundo das idéias derivadas dos acontecimentos que inauguraram o mundo moderno, como a Reforma, o Renascimento e a Ilustração. A conquista e colonização do que hoje é América Latina, pelo contrário, significou a transferência da antimodernidade, encarnada nas idéias da Contra-reforma e da Neo-escolástica por portugueses e espanhóis, que estenderam ao novo mundo o conceito de cruzada que, naquele momento, permitiu a expulsão de judeus e a recuperação da península Ibérica do domínio Islâmico, sob uma ideologia que misturava política e religião.
As realizações arquitetônicas e urbanas na América Latina foram fantásticas: a mistura das culturas cristã, judaica e muçulmana, integradas nas circunstâncias do novo mundo, produziram obras que hoje constituem o riquíssimo patrimônio arquitetônico e urbano colonial, bem diferente das modestas e simplórias construções que iniciaram o processo de colonização na América do Norte. Como bem descreve Octavio Paz, o que no Norte era nascimento, em América Latina era crepúsculo. No Norte, a colonização chegou para trabalhar e fundar uma nova nação; na América Latina, chegou para tomar posse e transferir antigos privilégios numa nova organização social. No Norte, existia uma idéia implícita de centro, de forjar um novo destino; na América Latina, a idéia era a de periferia, de translado das estruturas de domínio das metrópoles impregnadas de anti-modernidade.
Quando aconteceram as revoluções e a formação das nações latino-americanas, no fim do Século XIX, as burguesias ilustradas locais pretenderam superar séculos de antimodernidade com a importação das imagens de modernidade dos países mais avançados. A França era o modelo cultural, a Inglaterra, o econômico, a Alemanha, o militar, e o Estados Unidos, o político. Iniciou se um processo de cultura das imagens, ou cultura das aparências, que perdura até hoje e que restringe, particularmente no campo da arquitetura, o desenvolvimento de processos culturais autênticos e diferenciados. Existe, numa ampla porção dos profissionais locais da arquitetura, um complexo de periferia, que valoriza mais as imagens que chegam do chamado “primeiro mundo” do que a procura por autênticas expressões das culturas locais, atitude que perdura a circunstância histórica periférica de América Latina. A esta condição histórica, agrega-se uma consciência de submissão latino-americana: em todos os âmbitos da cultura e da vida social denota-se uma persistente tendência a consagrar os valores da civilização ocidental, ainda ao custo de sacrificar autênticas expressões locais, que passam a atuar como manifestações de resistência.
A consciência de arquitetos latino-americanos que persistem em copiar modelos europeus e americanos sem perceber as peculiaridades e riquezas do nosso contexto perdura a condição periférica das nossas sociedades. Superar o complexo de periferia é um ponto de partida substancial para a produção de arquitetura com sentido de transcendência e significado cultural. Transferir a noção de centro para nós mesmos, aprender da nossa cultura, adaptar os conceitos universais à nossa realidade, saber ver e valorizar o que temos nas mãos é o caminho a seguir para obter uma produção singular, autêntica e diferenciada, independente das contaminações externas. Talvez este seja o maior desafio da arquitetura brasileira e latino-americana para fazer uma produção com sentido cultural. As artes plásticas, a literatura, o cinema, a música são, entre outras, manifestações que souberam ganhar seu espaço como representantes genuínas do Ser latino-americano, expressões que transmitem os problemas e valores do Homem universal com uma visão local. Cabe à arquitetura ganhar sua porção de representatividade dos valores sociais locais, conciliando seu caráter comercial com o cultural, transformando o cotidiano em expressões autenticas das nossas cidades e da nossa gente, como souberam expressar nossos antepassados nas estruturas das cidades históricas.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do Escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife PE.