Com este novo livro, Antonio Risério, que já brindara seus leitores com obras inquietantes e inspiradas como Avant-garde na Bahia, atinge plena maturidade como escritor, cientista social e urbanista. Como pensador do Brasil. Tratando da problemática atual da cidade brasileira, lastreado em sólida e inteligente perspectiva histórica, Risério joga nova luz no tema que considero o de maior atualidade e gravidade: a cidade no Brasil. Que fenômeno é esse que, nesta região do planeta, desde a virada do milênio, vem descarrilhando para as pirambas da barbárie, e nos obriga a considerar um novo conceito, o de anticidade, como mais adequado para pensarmos nossa complexa vida social? Ah! O Brasil, “um monumento à irresponsabilidade social”, anotou o historiador Eric J. Hobsbawm, em A Era dos Extremos...
A questão urbana ganha, com esta interpretação, algo que vem faltando em estudos que focalizam tópicos ou problemas específicos, como habitação, saneamento, direito urbano, poluição, planejamento, o bendito “desenvolvimento sustentável”, verticalização, e assim por diante. Nestes ensaios bem articulados, o escritor baiano retoma, em abordagem multi e transdisciplinar efetiva, vale grifar, a questão dos padrões civilizatórios que foram (ou não) adotados ao longo da formação do país, lendo os resultados nos tipos de urbanismo — e portanto de sociedade — que deram no que aí está. Ou seja, em nossas rudes anticidades.
O voo de Risério é ambicioso. Ao enfrentar a complexidade do processo de formação urbana, social e cultural brasileiro, aborda desde a implantação da cidade ibérica na América e formas de exploração e colonização (distinguindo as cidades do ouro das cidade da Amazônia), até a presença africana examinada sob novas luzes, as interconexões cidade/sertão e as migrações. O livro termina com dois ensaios que despertam nossa adormecida imaginação histórico-sociológica e reavivam utopias, de que andamos tão carentes para a construção do tal futuro que não veio: “Vanguarda, memória e utopia” e “Aspecto de agora”. A leitura de um oportuno e substancioso anexo sobre “A cidade numa nova configuração amazônica” trará ao leitor pontos de partida para a compreensão da urbanização e da reespacialização (ir)responsável nestes “tristes trópicos”. Passeando seu olhar pelo mundo (Ásia, Europa, África, América do Norte, América Latina), o ponto de chegada de Risério é sempre o Brasil, pensado porém em suas projeções no futuro.
No esquadrinhamento da questão urbana em suas dimensões espacial, temporal e social, Risério estabelece debates inteligentes com intelectuais, pesquisadores e militantes que já se debruçaram sobre nossas realidades, como os saudosos Aloísio Magalhães (“o Brasil não deveria se tornar uma nação rica, mas sem caráter”), Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Florestan, Bento Prado Jr., Rino Levi, e também com Alberto da Costa e Silva, Carlos A. L. Brandão (“o futuro da cidade pode ser a não-cidade”), Hugo Segawa, Joaquim Falcão, a inquieta Françoise Choay, Marcelo Ferraz (“as nossas periferias são uma causa perdida?”), Vilém Flusser, Candido Malta Campos, Mota Menezes, Marcelo Lopes de Souza (o autor de Fobópole) etc. E com clássicos, de José Luis Romero e Richard Morse a Nestor Goulart Reis e Ramón Gutiérrez, faltando todavia nesse megadiálogo alguns estudiosos essenciais, que ele bem conhece, como Milton Santos, Jorge Hardoy, Aziz Ab’Sáber, Márcio Souza...
O autor carrega experiência profissional que transcende o campo teórico, visto ter trabalhado em governos, administrações públicas e em campanhas políticas municipais. O treinamento como historiador e antropólogo, mais a densa convivência com os arquitetos Lina Bo Bardi e João Filgueiras Lima (Lelé), aos quais o livro é dedicado, bem como com Marcelo Ferraz, Marcelo Suzuki e outros e outras, como Maria Elisa Costa, se revela nesta interpretação inovadora que, por certo, irá inspirar novas teses e projetos que poderão fugir do mainstream por vezes batido da historiografia da arquitetura, do urbanismo e do design. Um novo “intérprete do Brasil” se afirma nestas páginas, na escrita de ensaísta vigiante que vem reafirmar ser impossível dimensionar a questão urbana neste país sem uma bem fundamentada Teoria da História e da Cultura no Brasil.
Por fim, registre-se que a aguda visão histórico-crítica de cidade no Brasil adquirida por Risério não se deve apenas às atividades mencionadas, mas também à sua participação ativa, na década de 1990, na equipe coordenada por Lelé e João Santana para implantação das novas unidades hospitalares da rede Sarah Kubitschek (projetadas por Lelé) em Brasília, São Luís do Maranhão e Salvador.
A obra de Antonio Risério, intelectual e ensaísta crítico em movimento, nos desperta da modorra nacional, neste país sem sociedade civil que se respeite, pois nem sabe o que fazer com seu Ministérios das... Cidades ou da... Cultura. Dentre outros.
nota
NE
Este texto foi publicado na orelha do livro.
sobre o autor
Carlos Guilherme Mota é historiador e professor da pós-graduação da FAU Mackenzie.