A tese e a narrativa
Mas o que pôde representar para Freud [...] a leitura dos ensaios de Morelli? É o próprio Freud a indicá-lo: a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, “baixos”, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano (1).
Carlo Ginzburg
Qual é a tese deste trabalho de Jacopo Crivelli Visconti? Quando finalizei a introdução, me deparei com esta questão essencial. Uma tese de doutorado pressupõe a existência de uma hipótese central, que em regra se apresenta na introdução e que deverá posteriormente ser comprovada ao longo dos capítulos. Mas ela não estava lá, ao menos não exposta de forma clara e objetiva. O que o autor nos oferece nas primeiras páginas são dois elementos estruturadores: a pauta por onde se montará sua narrativa – a deriva, proposta por Guy Debord dentro do escopo intelectual da Internacional Situacionista e suas variações ocorridas ao longo das décadas; e o estofo ético que acomodará seu desenvolvimento: “a aspiração a uma arte não comercializável” (p. 17).
Ambos os elementos – um modus operandi (o ato de andar) e um valor (o não vendável) – nos colocam diretamente em contato com o famoso flanêur que Walter Benjamin vai buscar em Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, E.T.A. Hoffmann e outros escritores românticos. Na interpretação benjaminiana, trata-se de um personagem que usa o ato de andar como resistência às transformações urbanas e sociais impostas pelo avanço do Capital:
“havia também o flanêur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão de trabalho que transforma as pessoas em especialistas. Protesta igualmente contra sua industriosidade” (2).
Sua deambulação preguiçosa em meio à multidão apressada é uma forma de confronto, de resistência moral, de intransigente recusa em aceitar o solapamento de sua individualidade aristocrática. Em certo sentido, trata-se de uma luta inglória, fadada à derrota, diante das forças avassaladoras do novo modo de produção. Qual seria – perguntei eu logo nas páginas iniciais –a relação entre o artista que adota o mecanismo da deriva debordiana e o flanêur benjaminiano?
A expectativa que se estabeleceriam relações entre arte e sociedade, entre a prática deambulatória e uma demanda social, se confirma no avanço dos parágrafos. Ao se referir às “novas derivas”, práticas contemporâneas das mais relevantes e instigantes, Jacopo Crivelli Visconti, o autor, traz à cena Nicolas Bourriauld, que aponta a “função social” da obra de diversos artistas. O balanço provisório de Jacopo não deixa dúvidas: “essas obras contribuem para o nascimento e fortalecimento de uma nova sociedade, criando instrumentos para novas possibilidades de convivência” (p. 19).
A tese continua não se apresentando, mas se revelam dois outros elementos discursivos interrelacionados: o artista e a sociedade. Com estas intromissões, as obras em si não seriam o objeto único ou exclusivo do escrutínio, pois elas (as obras) seriam “uma necessidade íntima da sociedade, da qual os artistas são frequentemente porta-vozes” (p. 19-20). Confesso que no momento exato da leitura desta frase me acometeu o temor de estar sendo referida aqui a crença vã de Ezra Pound em um artista iluminado, a “antena da raça”, que tantas frustrações provocou. Mas esta evocação involuntária não se confirmaria à frente; ao contrário, o papel do artista se deslocou para uma discussão mais interessante e contemporânea.
Ainda nestas apresentações iniciais, Jacopo comentará rapidamente certa ambiguidade entre a internacionalização da discussão artística (onde a nacionalidade do artista deixa de ser essencial) e a presença ostensiva do lugar onde a ação é praticada, cujas forças telúricas e culturais (geografia e história) se apresentam renovadas e operativas.
No final da apresentação não temos nenhuma tese apresentada, mas nos damos conta que já temos uma semântica que confere sentido e significado para as conexões estabelecidas pelo autor: as derivas como modalidades estéticas constantes e relevantes nos últimos quarenta anos, as práticas do andar como jornadas pessoais e abertas aos desvios, o artista como andarilho voluntário no território geográfico antrópico ou natural, o caráter nômade da experiência e a multiplicidade de interpretações das culturas que a abrigam...
Creio que foi ao final da leitura da introdução que capitulei, que aceitei que a narrativa se enredava no objeto que buscava dar sentido, que o próprio texto era uma deriva, ou – para mencionar o próprio autor – uma “viagem crítica” ou “viagem do crítico” (p. 23). Aceitei que a tese deveria estar em algum lugar, mas que provavelmente só a acharia por acaso.
No início do primeiro capítulo, “O espaço do relato”, a apresentação de algumas experiências de deriva sugere o quanto elas são próximas do universo literário, o quanto elas são dependentes de uma narrativa. A constante efemeridade e solidão constitutivas do andar estético são dependentes do “ato de contar histórias” (p. 32), pois somente através do registro é que sua memória será preservada. Esta constatação provisória permite ao autor uma aproximação com o conceito de “narrativização das práticas”, proposta por Michel de Certeau no âmbito da história do homem comum, onde o rotineiro desprovido de valor elevado só se revela a partir das narrativas cotidianas que lhe dão substância.
Este duplo desvio – tão sutil que um leitor apressado não se dará conta – aproxima as práticas estéticas do andar às narrativas literária e cotidiana, e o artista andarilho sem destino e sem objetivos grandiosos ao literato e ao homem comum. Se é em Michel de Certeau que Jacopo se agarra para introduzir o novo elemento do homem comum, em minha memória suas considerações fazem vibrar uma frase de Calo Ginzburg, que ao tratar da relevância da micro-história, comenta que “alguns indícios mínimos eram assumidos como elementos reveladores de fenômenos mais gerais: a visão de mundo de uma classe social, de um escritor ou de toda uma sociedade” (3). Ou seja, este debruçar-se sobre as vidas anônimas de pessoas comuns contempla objetivo maior de compreensão do fenômeno histórico, atribuindo ao conjunto de pequenos atos, vontades, sonhos etc. o poder de transformação do destino coletivo. Um sorriso involuntário me acometeu neste instante onde descobri que estava sendo contrabandeado para dentro da narrativa um elemento-chave da tese que deveria estar em algum lugar. Mas é apenas uma intuição. Neste momento da leitura não sabemos para que servem estes elementos, eles não passam de fios soltos de uma trama em aberto.
O corpo, a vida e a morte
Meu avô costumava dizer: 'A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que – totalmente descontados os incidentes desditosos – até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa' (4).
Franz Kafka
Uma frase Tomás Eloy Martínez, citada por Jacopo no final da Apresentação, me chamou muita a atenção por sua singela beleza: “Quando você volta ao lar do qual partiu, pensa que fechou o círculo, mas percebe que sua viagem foi só de ida. Do exílio ninguém regressa” (p. 22). A ideia da impossibilidade do retorno à casa paterna me fez recordar o pequeno texto de Kafka citado acima, aproximação que pareceu ainda menos arbitrária quando me deparei com as duas histórias encadeadas por Jacopo: a de Richard Long, constatando o quanto sua estratégia artística de andar era tributária das caminhadas que fazia anualmente com seu pai quando era criança; e a do próprio Jacopo que, diante do nascimento do seu filho, compreendeu a fundo o que “significa sentir saudade de uma cidade (Nápole), de um país (Itália) e de um período (a juventude) aos quais (...) nunca regressarei” (p. 22-23).
É em uma passagem de um magnífico texto de Jorge Luis Borges que encontro as palavras para melhor descrever a relação ali pressuposta entre o deambular artístico a impossibilidade de se retornar à casa paterna: “em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas opta por uma e elimina as outras” (5). E, em cada decisão, opta-se por um caminho que nos torna outra pessoa, irremediavelmente exilada do lar original.
Mas aonde tal percepção nos leva? Todas as narrativas precisam prosseguir: a de Jacopo, a de Borges, a minha... A de Jacopo, em dado momento, parece que não nos levará a lugar algum:
“o único caminho possível numa discussão teórica seja talvez limitar-se a refletir sobre como as obras e os mitos se perseguem, tangenciando-se até em seus aspectos mais prosaicos, percorrer os lugares onde os caminhos se cruzam, os fios se emaranham e se embaralham, tudo parece remeter a outra coisa, e fica evidente que a meta é o próprio caminho” (p. 41).
Ainda bem que a frase contém um “talvez”. Se não pudermos chegar a lugar algum, a tese inexiste e a razão soçobrará diante da impossibilidade explicativa. Neste jogo de mostra e esconde, nada é o que parece.
Eis que do nada aparece o Nada! No capítulo “A criação do nada”, Jacopo nos apresenta a deriva sob outro ponto de vista: “a repetição infinita de ações que nunca atingirão seus objetivos” (p. 47). Os eventos dos artistas caminhantes são fugazes, efêmeros, mas são também atos carregados de banalidade e monotonia, destituídos de grandeza. Eles revelam um aspecto fundamental da arte contemporânea: “a aspiração ao nada, à dissolução, ao vazio” (p. 48). Elas não sobrevivem no tempo a não ser como memória. Quando pensamos que chegamos a um quarto quente e aconchegante onde está resguardada a narrativa preservadora desta memória, Jacopo abre a porta e deixa entrar o frio, demonstrando de forma simples como o apelo aos textos e imagens explicativos é um recurso que retira o vetor político radical da experiência estética.
O que estaria na raiz revolucionária do projeto estético de Debord e colegas da Internacional Situacionista é que as derivas são concebidas com a “função de libertar o sujeito de sua condição de mero expectador, isto é, de súcubo da sociedade do espetáculo, que abre a mão de viver a vida, conformando-se com observá-la” (p. 52). A alforria frente à submissão se encontra não no âmbito reintegrador da narrativa, mas no controle da experimentação tátil e intelectual do próprio corpo. Separo-me aqui da sequência argumentativa do autor e pulo para o final, onde vamos encontrar a expressão clara do que está sendo dito: “mas se a deriva é um ato exclusivamente físico e pessoal, o único registro que pode ser legítimo é o da memória de quem cumpre a ação: memória, isto é, tanto mental como física, mas sempre circunscrita ao âmbito do próprio corpo” (p. 102).
Ganha assim clareza as predileções de Jacopo. Se a land art e a deriva compartilham o objetivo político de fugir do circuito mercadológico da arte, elas se separam quando a primeira aposta na postura arrogante de intervenções brutais na natureza enquanto a segunda opera em modificações efêmeras e delicadas feitas com o próprio corpo. Se a performance e a deriva compartilham diversos pontos programáticos – em especial a ausência de objetivos imediatos –, elas se separam de forma flagrante quando a primeira tem na teatralidade uma necessidade vital de comunicação com o público e a segunda opera no silêncio, de forma íntima, voltada para uma experiência particular. Nesse sentido, mantém-se na performance a clássica divisão entre o artista e seu público, enquanto “o artista caminhante está muito mais próxima da sociedade”, pois “ele cumpre uma ação solitária e pessoal, como qualquer outro poderia” (p. 104). Este fazer que poderia ser feito por qualquer um é, por assim dizer, o “último ou único elemento de resistência” (p. 104) à sociedade do espetáculo que converte a todos em expectadores passivos.
O círculo hermenêutico se fecha e o resultado é a tese que se explicita: a arte produzida pelo artista caminhante é a transformação do próprio do corpo em refúgio último da liberdade, seja ela entendida como deriva real do artista, seja ela a deriva virtual do homem comum, afinal, “todas as vertentes analisadas (...) visam em primeiro lugar a estimular a participação do observador, ao passo que enfatizam a possibilidade de criar uma obra de arte cujo valor não seja econômico, mas, por assim dizer, filosófico ou social” (p. 97).
Esta última afirmação – que parece estar em desacordo com a aposta de Jacopo na falta de objetivos como valor último da deriva – merece um escrutínio especial. Em certo momento, e acredito que com correção, o autor afirma que o “mito romântico do homem em contato com a imensidade do mundo, seja na natureza ou na cidade, decorre grande parte do fascínio das obras dos artistas caminhantes” (p. 57). No embate com as forças cósmicas da natureza, os atos corporais dos artistas em movimento – roçando levemente a grama, levando série de pedras, mudando seixos de lugar – tendem à inexorável desaparição.
Na opção preferencial do artista errante pelo baixo impacto – que pode ser considerada, como de resto o faz Jacopo, uma postura ecológica – é possível vislumbrar a consciência do tempo irrecorrível, onde a caminhada solitária se dá na fração temporal que decorre entre o “eu não existo ainda” e o “eu não existo mais”. Estamos diante da impossibilidade do retorno ao lar original da infância, presentes na fábula de Kafka, no depoimento de Tomás Eloy Martínez, na constatação nostálgica de Jacopo. O fundamental desta experiência estética é o confronto com o vazio, o nada, o nulo. Confronto com o que não está dito, mas está ali para quem quiser ver: a extinção, a morte.
A narrativa de Jacopo sobre o tema romântico do embate entre homem e natureza se apoia, ao que tudo indica, na obra de Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação. Mas prefiro especular um pouco sobre a “tentativa sisífica de escalar a colina” (p. 55), uma discreta (e talvez envergonhada) referência a Albert Camus. Penso que as considerações do filósofo francês sobre o absurdo de uma existência humana sem sentido nos permitem atualizar a discussão novecentista para o ambiente intelectual do segundo pós-guerra. A interpretação de Camus para a condenação de Sísifo – empurrar colina acima uma pesada pedra que inevitavelmente rolará colina abaixo – como uma alegoria da condição humana é surpreendentemente adequada para ilustrar as descrições feitas por Jacopo para as diversas e diversificadas experimentações dos artistas andarilhos.
Diante do absurdo da vida e da inevitabilidade da morte, Camus escolhe a convivência com o absurdo que ele resume como “a minha revolta, a minha liberdade e a minha paixão. Pelo jogo da consciência, transformo em regra da vida o que era convite à morte – e recuso o suicídio” (6). O mito de Sísifo na leitura feita por Albert Camus aponta para uma opção existencial e filosófica que se oferece ao homem em geral e ao artista em especial: dar sentido, com o movimento do próprio corpo e do próprio espírito, ao absurdo.
Chegamos então ao artista porta-voz da sociedade. Ele não se assemelha ao grandiloquente modelo de Pound, mas ao humano demasiadamente humano sugerido por Franz Kafka:
“o artista está postado na fila indiana da qual participam todos os homens. A única diferença é que ele foi motivado, por algum movimento do seu espírito, a se erguer sobre a ponta dos pés” (7).
O jardim dos caminhos que se bifurcam: Jacopo e Paola; eu e Jacopo
Todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede, sucede a mim... (8)
Jorge Luis Borges
Ao longo da tese – creio que agora podemos chamá-la assim – Jacopo pratica a deambulação argumentativa, errando por prática alheias e argumentos diversos, inclusive os próprios. O autor fará, ao longo do texto “dois aparentes desvios – a deriva imóvel e o movimento invisível”, que é exatamente como se intitula um dos capítulos intermediários. Aqui, comentando práticas que não são deambulatórias, encontrará dois argumentos que serão fundamentais para a estruturação e abrangência de sua hipótese central: o quanto a arte contemporânea, apesar da internacionalização institucional e discursivo por qual ela passa, expressa demandas culturais e políticas locais. O Ethos de um povo ou as vicissitudes políticas pelas quais ele passa são detectáveis nas obras de arte diversas que tem como ponto em comum esta contaminação coletiva na obra individual. Na avaliação de Jacopo, não se assemelham como procedimentos às artes vinculadas à tradição das derivas, mas com elas mantém pontos de contato que permitem uma iluminação por contiguidade.
Trata-se de uma técnica argumentativa, que se transveste em técnica narrativa e/ou literária. A eleição de pares com estas características são constantes ao longo dos capítulos: nômades e sedentários; caçadores e caminhantes; performer e andarilhos; etc. Um par que surge – sutil em um primeiro momento, ostensivo em um segundo – é a presença do próprio autor ao lado de Paola Jacques Berenstein. Estudiosa já consagrada da presença das ideias da Internacional Situacionista no Brasil (9), a professora carioca radicada em Salvador surge como pólo de irradiação de valores aonde se espelha, de forma distorcida, o próprio autor. Ao, vislumbrar na trajetória da deriva um esvaziamento crítico ao longo das décadas, com sua transformação paulatina em práticas destituídas de vigor combativo em relação à sociedade, sua abordagem se caracteriza pela adesão excessiva ao discurso de Debord e seguidores, sem se dar conta de suas contradições e impossibilidades originais. Tal postura – marcadamente romântica e utópica – seria incapaz de verificar as enormes dificuldades de desdobramentos das experimentações deambulatórias no âmbito dos situacionista e o quanto se ampliou a eficácia no que diz respeito à “repercussão da produção contemporânea” (p. 99). A tese de Jacopo se estabelece como um duplo espelhado e distorcido da argumentação de Berenstein Jacques.
Por estas coincidências da vida, minha trajetória cruzou com a de Jacopo por três vezes. A primeira, ainda nos anos 1990, quando eu participei de algumas bienais de arquitetura como organizador de exposições e coordenador de fórum de debates e me deparei com o muito jovem membro do staff da Fundação Bienal. A segunda, nos anos 2000, em Veneza, quando eu acompanhei alguns dos participantes da mostra brasileira de arquitetura, da qual Jacopo era um dos responsáveis. Por fim, a terceira, neste Salão dos Espelhos, uma espécie de Jardim dos Caminhos que se bifurcam provisório. Nosso primeiro encontro casual corresponde, mais ou menos, à ocasião em que, por estes desvios inexplicáveis de nossa trajetória pessoal, eu publiquei pela primeira vez no Brasil, uma série de textos situacionistas no Brasil (fato que, provavelmente, justifica minha presença nesta banca de doutorado).
Recordo-me como se fosse hoje uma afirmação que eu ouvi nos anos 1970, quando era aluno de escola de arquitetura. Na ocasião, a jovem mas já brilhante professora Sophia Telles afirmou que nós só fazemos leitura de reconhecimento. Demorei muito para compreender a profundidade desta observação. De fato, parece que para entender seja o que for, temos que transportar ideias e argumentos alheios para o quadro de valores próprios. Esta espécie de transcrição é irrecorrível, o que explica que seja muito comum, nestas solenidades de defesa de tese, que a arguição se enverede pelo “eu não faria assim” ou então “se fosse eu, teria feito assim”. Fugindo um pouco deste esquema banal, o que podemos fazer – e o que tentei fazer aqui – é tentar escrutinar o discurso do Outro a partir de uma zona de conforto que habitamos, manipulando nossos critérios, livros, autores, memórias e trajetórias. Jogar alguma luz a partir de nossa própria experiência física e intelectual.
Eu não pude fugir do fato de ter olhado para este tema e para estes autores há tanto tempo e depois ter deambulado por outras preocupações e afinidades. Meu caminho, ou minha deriva pessoal, me levou para longe destas preocupações, a ponto de conhecer apenas parte da longa lista de obras de arte e artistas presente nesta tese. Ao olhar para este trabalho, consigo me familiarizar com sua montagem narrativa, com a estratégia argumentativa, com sua amplitude teórica, com sua abrangência filosófica. Como em uma banca de doutorado são muitos a comentar o mesmo trabalho, a iluminação ou escuridão que apresento só foi possível por estar presente nesta solenidade após trilhar veredas muito diversas do que as percorridas por Jacopo.
E, se há alguma dúvida do que achei neste percurso, deixo aqui de forma clara, sem sombras para dúvidas: é uma tese formidável, onde a simplicidade e elegância discreta de sua escrita esconde uma enorme complexidade. Uma deriva intelectual que busca o zero, o nada, mas nos aponta para as possibilidades intensas da arte e da crítica.
notas
NE
Texto baseado na argüição feita durante a banca de defesa de tese de doutorado por Jacopo Crivelli Visconti, intitulada Novas derivas, e ocorrida no dia 19 de abril de 2012 no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (área de concentração “Projeto, espaço e cultura”). A banca foi formada pelos seguintes membros: Luís Antônio Jorge (orientador), Agnaldo Farias (FAU USP), Ana Belluzzo (FAU USP), Abilio Guerra (FAU Mackenzie) e Marta Bogéa (PUC-SP).
1
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 178.
2
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas, volume 3, 2ª edição. Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 50.
3
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 178.
4
KAFKA, Franz. A próxima aldeia. In Um médico rural. Tradução Modesto Carone. 2ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 37.
5
BORGES, Jorge Luis. O jardim de caminhos que se bifurcam. In Ficções. Tradução Carlos Nejar. São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 105.
6
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, p. 80.
7
GUERRA, Abilio. Olhar e construir a cidade. Resenhas Online, São Paulo, n. 04.046.02, Vitruvius, out. 2005. <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.046/3149>. Quando escrevi este texto, não consegui encontrar a passagem nos textos de Kafka, portanto deixei claro que era uma paráfrase e a deixei sem aspas. Agora, ao escrever este novo texto, tentei mais uma vez encontrar a passagem, mas fracassei novamente. Contudo, na pesquisa no Google pude encontrar o meu texto entre aspas em dois textos, atribuídos a Franz Kafka: SEM SOBRENOME, Brícia “Arquiteto como protagonista do mundo contemporâneo”. Brasília, Livro de Vê-Lê (blog), 21 fev. 2006 <http://mycapicture.blogspot.com.br/2006/02/arquiteto-como-protagonista-do-mundo.html>; BRANDELLI, Amelia. Re-encontros. O sentido poético na justaposição pictórica. Dissertação de mestrado. Orientadorra Mônica Zielinsky. Porto Alegre, Instituto de Artes UFRGS, 2006. Disponível em <www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/16390/000703041.pdf?sequence=1>. Eu não sei se fico envaidecido de meu texto ser atribuído ao meu literato predileto, ou se fico preocupado em me deparar com uma memória que não sabia que tinha.
8
BORGES, Jorge Luis. O jardim de caminhos que se bifurcam. In Ficções. Tradução Carlos Nejar. São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 96.
9
Ver: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003; JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, EDUFBA, 2012; JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. Arquitextos, São Paulo, n. 08.093, Vitruvius, fev. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165>.
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie e editor do Portal Vitruvius.