Quando de sua publicação em 1945, esta obra do historiador paulistano inaugurou uma nova etapa da historiografia econômica entre nós. Em seu pequeno livro inaugural de 1933, Evolução política do Brasil e outros estudos. Ensaio de interpretação materialista da história do Brasil, Caio da Silva Prado Júnior (1907-1990) já utilizara pela primeira vez a noção, até então imprecisa, de classe social como conceito analítico para analisar os movimentos político-sociais, com vistas à compreensão do processo da Revolução da Independência e seus desdobramentos. E, depois nesta História econômica do Brasil (1945), que se tornaria clássica, ele sistematizaria o uso do conceito, abrindo o foco e delineando as linhas-mestras de nosso passado coletivo. Analisando os principais traços (“momentos”) das diversas economias ao longo dos quase cinco séculos, aprofundou conceitualmente sua visão de processo, rompendo com a tradição em que a história era tratada fragmentariamente. Não-determinista, dava porém enorme peso ao fator geográfico, propondo uma periodização bem fundamentada para os quase cinco séculos estudados, de 1500 até os anos 1960 (atualizada em 1970, a obra teve posfácio pouco otimista em 1976, alargando a abrangência da análise. A 52ª reimpressão é de 2011).
Fugindo das visões de História tradicionais factualistas e oficialistas, estritamente políticas ou pobremente econômicas, foi a aplicação não-mecanicista da metodologia do materialismo histórico que permitiu a Caio Prado abordar os acontecimentos dentro dos respectivos contextos histórico-sociais, econômicos e geográficos em que ocorreram. Lançou ele pela primeira vez na cena intelectual e política brasileira uma interpretação inovadora, ao examinar como as lentas transformações estruturais operaram no sentido de explicar os acontecimentos da história événementielle, de superfície. Se Gilberto Freyre rompeu ruidosamente com a tradição historicista pelo flanco culturalista, Caio Prado Júnior, avesso ao pitoresco, efetivou a ruptura pela vertente marxista, porém sobriamente. E desse modo inaugurou forte tradição do pensamento crítico de esquerda no Brasil, bem apontada por Florestan Fernandes em História e ideal, coleção de depoimentos sobre o historiador paulistano, coordenada por Maria Angela d’Incao (São Paulo, Brasiliense, 1989).
Caio utilizou muitas das mesmas fontes documentais de Freyre, mas chegou a conclusões bem diversas, com a vantagem de integrar os eventos “soltos” em sistemas, estruturas e processos socioeconômicos e culturais, conferindo sentido para nosso passado, sempre com vistas à compreensão do presente. A tradução dessa obra em outras línguas, bem como a recepção crítica de seus livros nos principais centros mundiais de estudos históricos, como o grupo francês dos Annales (merecendo a crítica elogiosa de Fernand Braudel em 1948), bem como suas relações com Stanley J. Stein (Princeton) e Rodolfo Puiggrós (seu tradutor argentino), sugerem a importância de seus escritos.
A periodização adotada neste livro leva-o, na perspectiva da geo-história e da economia, a acompanhar o processo histórico da ocupação do território pelos europeus desde seus primórdios, desde o extrativismo e as feitorias até a expansão e crise do sistema colonial, avançando pelo período de afirmação nacional pós-Independência, com a montagem, apogeu, crise e colapso do Império escravocrata, seguido da articulação de uma ordem que denominou de burguesa. A República burguesa (1889-1930) merece capítulo denso, em que o historiador descreve problemas que se prolongarão nas décadas seguintes, resultados da crise de expansão e da produção agrária, desembocando na industrialização e nos crescentes desafios do imperialismo. Com efeito, a partir de 1930, Caio Prado Júnior entendeu o processo como de crise permanente do sistema capitalista, desembocando no período que lhe era próximo, sinalizado por um esclarecedor posfácio de 1976.
O leitor notará que, com escasso material documental, Caio Prado construiu uma visão ampla e bem articulada de nosso passado, em suas interpretações introduzindo, com rigor analítico, conceitos-chave como os de capitalismo, imperialismo, burguesia, Estado etc.
Nacionalista, humanista e autor de dezesseis livros, foi um dos fundadores do Partido Democrático de São Paulo (1926) e da Aliança Liberal (1929). Desiludido com os liberais, increveu-se em 1931 no Partido Comunista Brasileiro (nem sempre aceitando a “linha justa”…). Foi vice-presidente da Aliança Nacional Libertadora em 1935, ano em que foi preso no Rio Grande do Sul (e seria mais quatro vezes ao longo da vida) e exilado na França, onde, junto ao PCF, auxiliou refugiados da Guerra Civil Espanhola que lograram atravessar os Pirineus. Eleito deputado estadual em São Paulo pelo PCB, teve seu mandato cassado em 1947. Mas, firme e elegante, não parou de escrever e atuar.
Apesar de ter participado das discussões para a criação da Universidade de São Paulo, nunca chegou a nela lecionar (aliás como Paulo Duarte e Sérgio Milliet). Editor da Revista Brasiliense (1955-1964), em cujo conselho editorial incluiam-se os nomes de Cruz Costa, Sérgio Milliet e Heitor Ferreira Lima (entre outros), escreveu densos editoriais sobre os principais problemas nacionais, da economia industrial e do sindicalismo à questão agrária, além de publicar estudos críticos de diversos quadrantes da esquerda.
Em 1978, disse ele em entrevista: “Não fiz outra coisa na minha vida senão me interessar pelo Brasil. E compreender e conhecer este país. Mas não tenho esse patriotismo idiota de pensar que patriotismo é falar das grandezas do Brasil”. Já perto do fim da vida, Caio Prado Júnior, quando perguntado sobre o Brasil, repetia: “O Brasil é muito atrasado..., muito”.
Este livro-diagnóstico, que provocou a ira da Direita desde sua publicação, esteve presente e na base de todas as tentativas de mudança neste país. Permanece atual, necessário, inspirador. Todos devemos algo a ele.
nota
NE
Este texto foi publicado na orelha do livro.
sobre o autor
Carlos Guilherme Mota é historiador e professor da pós-graduação da FAU Mackenzie.