Os cânones da conservação-restauração tiveram suas estruturas abaladas após a publicação Teoría Contemporánea de la Restauración, de Salvador Muñoz Viñas. Professor titular e atual diretor do Departamento de Conservação e Restauração da Universidade Politécnica de Valência, na Espanha, o autor empreendeu uma ousada discussão sobre os paradigmas - quase dogmas - dessa área da preservação do patrimônio cultural. Graduado em belas artes, PhD pela Universidade de Harvard e prêmio de pesquisa Luis de Santángel, foi o primeiro espanhol a receber o título de Fellow do International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works (IIC) em reconhecimento por suas obras sobre teoria da restauração. Essa designação é a categoria máxima que a organização, formada por milhares de membros em mais de cinquenta países, outorga aos profissionais especialmente reconhecidos no campo da conservação.
O texto, publicado por Muñoz em 2004, alcançou repercussão internacional e faz parte das bibliografias recomendadas – e necessárias - para os pesquisadores ou interessados no tema da preservação patrimonial. Nesta obra realiza uma análise profunda das teorias da restauração – as quais denomina “clássicas” - de modo a atualizar à contemporaneidade o que os teóricos preconizaram e consolidaram como regras e verdades ao longo dos dois últimos séculos.
Muñoz organiza o texto em três partes, além da introdução e de uma densa conclusão. Na primeira, identifica os fundamentos da restauração, seus conceitos, contextualizando-a do ponto de vista cultural. Já neste momento começa a desvendar as inconsistências e os limites mal definidos de uma teoria e prática conflituosas, desenhando o universo de o que, para que e para quem se preserva. Em uma palavra, o desiderato da ação restauradora.
Seu estudo indica que duas correntes dominantes orientaram grande parte das intervenções nos bens culturais nos últimos cem anos: uma inclinada para valores estéticos e outra para preceitos científicos. Sustenta que as teorias clássicas apresentam-se limitadas para o escopo atual da cultura, considerando que nem todos os objetos sujeitos ao restauro são obras de arte, bem como os motivos que levam a restauração desses bens podem relacionar-se a outros valores além do histórico e do artístico – sejam estes ideológicos, afetivos, religiosos, etc. - não sendo, portanto, inerentes ao próprio objeto nem, tampouco, cientificamente quantificáveis
Na segunda parte, Muñoz faz uma crítica aos conceitos clássicos sustentada em diversos autores da atualidade: princípios como autenticidade, objetividade, reversibilidade e ciência aplicada são colocados em xeque frente a uma realidade contemporânea que exige novos referenciais teóricos capazes de dialogar com a prática da restauração de modo efetivo.
O autor muda o olhar, antes direcionado ao objeto e sua materialidade, para a função e o significado que esse objeto representa em relação a seus grupos de pertencimento. Não obstante, questiona vários paradigmas da teoria da restauração, especialmente aqueles oriundos da teoria do italiano Cesare Brandi, publicada em meados do século XX. Critérios legitimados como mínima intervenção, distinguibilidade e reversibilidade, referências ainda fundamentais na justificativa das ações interventivas, são discutidos à exaustão. Partindo dessa análise minuciosa, o texto faz uma crítica explícita aos conceitos clássicos, apresentando a teoria contemporânea como alternativa para suprir suas limitações. Traz à discussão a necessidade de adoção de uma ética mais democrática e menos aristocrática a fim de que a restauração atenda a mais sensibilidades e contemple o maior número possível de formas de entender o objeto e atender equilibradamente a todas as suas funções e usuários.
No que se refere à ciência a serviço da conservação-restauração, o teórico sustenta que esta informa, mas não justifica as decisões que são tomadas na seleção de um determinado estado dos bens patrimoniais, logo, o restauro científico seria insuficiente para atender ao contexto contemporâneo da restauração. A objetividade - fundamento da abordagem científica - prevalente a partir do final do século XX, seria substituída, na teoria contemporânea, por uma forma de subjetivismo. Assim, Muñoz Vinãs adverte que as razões pelas quais se restaura e a seleção das coisas que se restauram são decisões culturais, antes de iniciativas de caráter estritamente técnico. Dentro da discussão da ciência a serviço da restauração, o autor apresenta também o conflito conceitual do critério da reversibilidade, substituído na teoria contemporânea pelo termo retratabilidade. O autor legitima a expressão, que, embora ainda se apresente restrita, traz consigo um considerável avanço para a matéria, pois ao menos demonstra os problemas teóricos que a ideia de reversibilidade carrega - e a necessidade de adaptação que exige por parte de quem os interpreta.
A terceira e última parte, que abrange a ética na restauração, aponta as modificações promovidas pela filosofia social no âmbito da cultura e na maneira como a sociedade passa a se comportar na medida em que reconhece sua diversidade. O autor admite que os conceitos subjetivos emergentes do atual endendimento de cultura produzem efeitos também na restauração, área que exige contínuas e bem sustentadas tomadas de decisão.
Nesse ponto talvez resida o principal avanço da teoria contemporânea da restauração, pois esta coloca o diálogo, a interdisciplinaridade e a sustentabilidade como caminhos fundamentais a fim de que as escolhas atendam mais satisfatoriamente a um maior número de sensibilidades. O autor expressa claramente essa ideia na na página 104 ao afirmar que “cualquiera que sea el momento de la historia del objeto que se escoja como estado de verdad, [...] al que el restaurador pretende devolver el objeto restaurado, se está haciendo una elección [...] que tiene inevitablemente um carácter [...] subjetivo”. O debate interdisciplinar com vistas à sustentabilidade, entendida por Muñoz num sentindo que vai além da possibilidade econômica de manutenção das intervenções, diminuiria o risco de excessos cometidos por profissionais que ele nomeia como peritos da verdade.
Muñoz afirma portanto, que o caráter subjetivo da conservação-restauração deve prevalecer sobre os aspectos objetivos de busca de verdades pois avalia que o que caracteriza a restauração não são suas técnicas ou instrumentos, mas sim a intenção com que se fazem as ações. Em suma, ela não depende do que se faz e sim para que se faz. Não obstante, o estudo destaca como essencial o caráter simbólico da restauração, cujos objetivos e limites estão vinculados à manutenção e recuperação dessa capacidade - sendo esta a diferença de outras atividades similares como reparação, repinturas ou remendos. Seguindo seu raciocínio, a teoria contemporânea da restauração oferece ferramentas conceituais mais flexíveis e adaptáveis para o sentido comum de todos os envolvidos com o bem cultural. Ainda nessa terceira parte apresenta, criticamente, os limites da teoria contemporânea da restauração, fazendo uma provocação a novas discussões, como o argumento de genialidade e os riscos de banalização.
Além das discussões teóricas o texto reconhece que a teoria contemporânea já existe. Contudo, ela se apresenta de forma difusa, muitas vezes expressada de forma paralela ou implícita, tratando-se de um conjunto ainda fragmentado, embora muitas das ideias que a sustentam tenham sido concebidas por Riegl no início do século XX. Partindo da percepção de um fio condutor, o autor sistematizou esse pensamento, conferindo-lhe um sentido orgânico, o que não significa assumir que representa uma recomplilação do trabalho de outros autores. Longe disso. A reflexão de Muñoz e o modo como organiza o pensamento resultou em inúmeras contribuições pessoais, o que confere a seu texto uma parcialidade indiscutível.
Em que pese ser um texto teórico, a linguagem do autor ao longo de suas 205 páginas é clara e simples: Salvador Muñoz Viñas tem um estilo irônico e sarcástico - quase literário, porém, sem excessos que comprometam a profundidade de sua reflexão. Trata-se de um conteúdo denso de natureza acadêmica. Contudo, a forma como o texto é abordado pelo autor torna-o atrativo para diferentes públicos. É leve e estimulante à discussão – objetivo intrínseco da obra – sendo igualmente relevante para profissionais e pesquisadores envolvidos na rede complexa de princípios e conceitos que subjazem à “arte” da restauração.
As discussões sobre preservação do patrimônio ganham outros contornos e significados a partir da leitura de Salvador Muñoz Viñas. Além da qualidade textual, o autor presenteia os leitores com uma bibliografia comentada que acende o interesse por aprofundar ainda mais o estudo sobre a restauração. Em verdade, o texto é um banquete provocativo, e como tal, merece ser degustado com muita atenção. Trata-se de uma obra rica e reconhecida como uma das mais inovadoras sobre o tema, considerada leitura obrigatória para os envolvidos com a área da preservação do patrimônio. Os inquietos e com fome de novos saberes, certamente farão bom proveito.
sobre a autora
Karen Velleda Caldas é mestranda do Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas na linha de pesquisa Patrimônio e Cidade, graduada em Conservação e Restauro pela mesma Universidade e em Comunicação Social pela UCPel. Pesquisa temas relacionados às teorias da restauração e integra projeto que pesquisa a memória e o patrimônio da arquitetura pelotense.