Predestinação existe? Difícil sabê-lo. Mas há, com certeza, determinados momentos-catarses na vida de uma pessoa que parecem orientá-la para uma direção incontornável. Com o ainda garoto Araquém, esse instante transformador ocorreu no escuro, com a luz diante dos seus olhos, numa sessão maldita de cinema, e o catapultou irreversivelmente para o mundo das imagens. Segundo o próprio:
“Aos 14 anos eu queria ser jornalista, quem sabe escritor. Atravessei a adolescência embrenhado nos grandes sertões, veredas, de Guimarães Rosa. A ele se seguiram Lima Barreto, Machado de Assis, J. D. Salinger e Joseph Conrad. Em 1970, ingressei na Faculdade de Comunicação de Santos. Logo trabalhava na sucursal do Estadão e Jornal da Tarde.
Uma noite fui ver uma sessão maldita que um francês, Maurice Legeard, organizava em Santos. O filme era A Ilha Nua [1960], de Kaneto Shindo. Um filme quase sem história ou palavras. Um casal vivendo com dois filhos numa ilha inóspita. E a faina diária de levantar, buscar água, preparar a terra, a comida, buscar água outra vez, a canoa no trapiche, os pássaros nas pedras, os remos contra as ondas. A força e a beleza pura da imagem. A imagem como síntese do dizer. Eu, no escuro, fui tendo uma epifania, um alumbramento. Sai do cinema tonto, abalroado, chamado.
No outro dia uma amiga, Marinilda, mostrou-me umas fotos bem comuns, de álbum de família, feitas com uma Yashica. Ainda doente, febril do filme, mal olhei as fotos. Pedi a Yashica da Marinilda emprestada, comprei três filmes preto e branco e à noite fui para um cabaré do porto onde costumava ouvir bandas de rock e, com sorte, a canja de algum famoso de passagem.
Câmara na mão, dois filmes no bolso, nenhuma técnica na cabeça, nervoso como em toda primeira vez. Mesmo sem coragem para nada, obscuramente sabia que naquela Yashica, naqueles filmes, estava segurando uma vida. Saí tarde, sem apertar o botão.
No ponto do ônibus, já amanhecia quando uma das moças do cabaré passou e desafiou:
– Quer fotografar, é? Quer fotografar? Pois então fotografa aqui. Levantou a saia e mostrou o sexo.
Foi minha primeira foto”.
Esse momento-catarse, ocorrido há mais de 40 anos, impulsionou Araquém a percorrer com sua câmera o Brasil todo inúmeras vezes. Houvesse uma forma de contar em quilômetros suas andanças, certamente saberíamos que ele foi uma das pessoas que mais percorreram este país, indo, inclusive, a diversos lugares a que ninguém ou quase ninguém conseguiu chegar, como quando fotografou a totalidade dos parques nacionais nesta Terra do Pau-Brasil.
Ninguém palmilha incólume as vastas terras deste país. Ao peregrinar com sua câmera, Araquém foi forjando a sol, sombra, poeira, fogo e torrentes de água um ser poético e político. O contato íntimo, orgânico com a natureza, a contemplação como exercício fundamental do seu ofício o tornaram um ser irreversivelmente intuitivo. Capaz de perceber as dimensões que se interpõem entre o visível e o oculto, entre o mensurável e o impalpável.
Como ele próprio diz:
“Aquele que mergulha na viagem do ver tem que estar sempre com as portas da percepção abertas. Sabe que, diante do eterno, precisa esquecer de si próprio. A criação é o que importa, gesto fundamental, caminho de conhecimento, poderosa arma de encontrar o mundo.
O ato criativo é contínuo e sem fim. A prática sempre renovada de contemplar humaniza a visão, anula verdades, permite a inventividade, realça o eu interior.
Nesta respeitosa relação consigo mesmo, o fotógrafo cria algo de original e significativo, com espontaneidade e fluência. O observador se confunde com a coisa observada, o vazio se instaura. O que estava contido volta a pulsar, o que antes era pressentimento agora é realização. A pureza do seu diálogo lhe diz que na verdade, por mais fotos que faça, por mais poeira que tire dos olhos, continuará andando solitário com sua câmera. Mas ele também sabe que está aprendendo outra arte bem maior: a arte de não ser coisa alguma, de não ser mais que o nada, de dissolver-se a si próprio, no vazio entre o céu e a terra”.
Como as imagens deste livro – um breve panorama de alguns grandes momentos da fotografia em preto e branco de Araquém – atestam, essa ideia de dissolver-se em si próprio levou o ser poético a buscar momentos de beleza sublime, do momento-ápice, fruto da contemplação zen, da capacidade de se integrar harmoniosamente ao ambiente e ao instante e, sobretudo, da observação meticulosa da luz e de como ela é um agente transformador
A beleza, no entanto, não é para investir suas fotografias ou, menos ainda, a natureza com o manto de Narciso. A beleza, em Araquém, é gesto político, é utopia desmesurada. É o avesso da feiura, essa ameaça que fica à espreita o tempo todo.
Ao caminhar nessa já longa estrada, Araquém colecionou, além de imagens, muitos amigos, parceiros de trabalho. Um deles foi o memorável e combativo jornalista e escritor Marcos Faerman. Num de seus textos sobre a obra de Araquém, ele comenta essa vertigem existente entre o ser poético e o gesto político:
“Em Araquém o mais suave registro é a fotografia. Alguma coisa radical que liga o fotógrafo ao mundo dos alquimistas das imagens. Suas fotos são imperdíveis.
Fotos que são o exercício de uma vertigem: a justiça. De uma utopia que é um labirinto que nos levaria a outra ordem, ou à desordem do mundo real. Porto de acesso ao mundo dos sonhos. Uma fotografia insubmissa, cúmplice dos derrotados. Amiga da própria respiração do Sol. O fotógrafo Araquém Alcântara proclama que os pedaços de mundo que chamamos de fotografia também são realidade.
Araquém entra pelas suas fotos nos segredos do planeta. O que comove, o que transforma, o que transtorna o fotógrafo é que ele conseguiu descobrir alguns segredos da natureza e dos homens. O que o desespera é que ele quer, pela sua obra, tantas vezes premiada, já aplaudida em tantas cenas de revista, em exposições até em Paris, contribuir para salvar os últimos sinais de humanidade emitidos aqui”.
Essas fotografias “insubmissas” que fazem da beleza seu grito de alerta, e que agora o leitor poderá apreciar nesta Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, incontornavelmente se tornarão um dos patrimônios iconográficos mais importantes deste país, no que toca ao registro sensível e sistemático da fauna e da flora brasileiras realizado nas quatro últimas décadas. O tempo é o grande aliado dessas imagens.
Mas a vertente política do trabalho de Araquém, importante frisar, não existe sem a dimensão onírica, sem que o artista a cada nova viagem para dentro da câmera fotográfica se deixe dissolver nas luzes refletidas pela paisagem, seja na sua potência visual, seja naquilo que há de incontido nela.
A contemplação reinventa mundos, como ele nos faz intuir neste depoimento: “A prática sempre renovada de contemplar humaniza a visão, anula verdades, permite a inventividade, realça o eu interior. A recompensa é a experimentação mística e o encontro com a beleza. O fotógrafo sente, nesse momento fugaz, algo parecido com o satori zen-budista: um momento de revelação, um indefinido e maravilhoso prazer”.
Predestinação existe? Diante desses relatos e destas imagens, a resposta fica cada vez mais difícil, complexa. Melhor esquecer a questão e entrar na viagem que estas fotografias que marcam o início da Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira proporcionam. Entre tempos e espaços diversos que revisitam em imagens as andanças de Araquém, podemos ser surpreendidos por um momento-catarse. Que ele então nos oriente a caminho da “Ilha Nua”, esse lugar símbolo da transformação pessoal. Há uma ilha sempre a nos esperar em algum lugar imemorial.
Boa viagem.
nota
NE
Texto de apresentação do livro.
sobre o autor
Eder Chiodetto é jornalista e fotógrafo. Seu primeiro livro, O lugar do escritor (Cosac Naify, 2003), foi indicado ao Prêmio Jabuti 2004. Integra o conselho consultivo do MAM de São Paulo desde 2005 e coordena a coleção Fotoportátil, da Cosac Naify.