A produção cinematográfica pernambucana recente tem abordado questões centrais relacionadas com a cultura da região, como a persistência das relações e conflitos sociais da Casa-grande e Senzala (descritos por Gilberto Freyre), as desigualdades antagônicas, a oposição entre capital e interior e os conflitos da urbanidade, recente e candente tema de debate – particularmente em Recife –, que materializa no espaço físico uma tradição de injustiças e desigualdades. A renovação, transformação e expansão da cidade têm atingido proporções que constituem o centro do debate social e cultural e se fazem presentes em múltiplas manifestações, extrapolando o campo específico da arquitetura e urbanismo.
O filme de Daniel Aragão Boa sorte, meu amor (1) trata esses temas através do relato do conflito sentimental entre um descendente da “nobreza” local e uma mulher do interior do Estado, bonita e talentosa, que tenta a sobrevivência e sofre os preconceitos e discriminações da capital. Produzido em preto e branco, relata em tempo presente situações do passado que perduram na consciência de uma sociedade dominante resistente à evolução e mudanças.
Os conflitos sociais tornam-se evidentes nas desigualdades e na discriminação entre ricos e pobres, os primeiros se achando “donos” da situação, e os segundos submetidos a circunstâncias sem futuro, apesar do talento ou da inteligência. Na trama, descendentes de antigos fazendeiros do interior transferem seus privilégios ao território urbano e, dentre os campos de atuação, a construção de edifícios ou prestação de serviços para o mercado imobiliário constitui uma fonte segura que preserva o domínio e o status social, com a correspondente arrogância elitista e discriminatória.
A exploração dos contrastes sociais é recorrente. A relação afetiva entre os protagonistas entra em conflito logo no início, perante a gravidez inesperada, fruto da desconsideração da prevenção solicitada pela mulher, evidenciando a arrogância da sociedade machista e elitizada. Os conflitos entre “donos” e excluídos tornam-se mais evidentes e angustiantes na cidade, sem espaços de convivência e de urbanidade integradora. Dois setores sociais em crise, antagônicos e aparentemente irreconciliáveis, cada um com seus próprios valores de relacionamentos, tentam usufruir os espaços que a cidade oferece: os privados e cercados de esquemas de segurança para uns; os territórios demarcados pela decadência e o descaso para outros.
Os cenários do filme merecem especial atenção. Os contrastes entre a cidade histórica e a banalização da arquitetura imobiliária da transformação urbana são recorrentemente evidenciados. Os edifícios absurdos e a paisagem urbana caótica são remarcados pelo contraste com o “silêncio” do mar: o “tudo” confuso e atordoante versus o “nada” calmo e tranqüilizante.
A partir da crise sentimental, o filme transcorre nas paisagens rurais e cidades de interior, onde o protagonista corre atrás do amor perdido. Nessas paisagens, os conflitos sociais persistem, agora com domínio dos “excluídos”. A convivência nos espaços diminutos das casas de interior, provocada pela própria necessidade, contrasta com os espaços vazios e luxuosos dos apartamentos urbanos.
O filme é mais uma testemunha das transformações sociais e urbanas desta época, onde arquitetura e cidade são alvos das maiores críticas como elementos que estimulam as discórdias e desavenças. Chamado de atenção contundente para o modelo de cidade que estamos construindo, cujas conseqüências ainda tentam ser minimizadas para favorecer um sistema comprovadamente excludente, que só traz conflitos e desintegração social.
nota
1
Boa Sorte, Meu Amor, direção de Daniel Aragão. Com Vinicius Zinn, Christiana Ubach, Maeve Jinkings. Drama, 1h 35min
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, é graduado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Univrsidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione arquitetos associados, Recife, PE.