PRÊMIO ANPARQ 2014, menção honrosa, categoria artigo científico
“Como é vasto o campo de possibilidades
para as ideias em arquitetura”
Mario Biselli, tese de doutorado, p. 174
Há alguns anos, uma troca informal de opiniões entre eu e Mario Biselli teria motivado meu interlocutor a enfrentar o tema em questão – o partido arquitetônico – em trabalho acadêmico. Foi com esta lembrança que Biselli iniciou a apresentação de sua tese na banca final de avaliação. Após a primeira conversa, tivemos a oportunidade de continuar o diálogo em algumas poucas ocasiões, uma delas na banca de qualificação. Em todas elas comentei minha dificuldade em compreender como o conceito de partido arquitetônico poderia ter a universalidade pretendida pelo meu amigo. Creio que isso o motivou ainda mais a buscar as teorias, os conceitos e os argumentos para construir seu lado da verdade. Verdade que, por sinal, se existir, não está ao nosso alcance, o que nos incentiva a espreitá-la como coiotes famintos diante de uma presa potencial. Convocado a participar de sua banca final – sendo o partido arquitetônico, obviamente, o tema central de sua tese de doutorado –, fiz algumas considerações que transcrevo aqui, com os necessários ajustes e comentários sobre o ocorrido no evento (1). Trata-se de minha verdade provisória, inverdadeira, sobre a questão; e é, principalmente, mais um episódio desta interlocução que ainda está em curso, afinal o tema dá pano para mangas e é inesgotável. Como o interlocutor é sabido e muito hábil nos argumentos, minha estratégia foi copiá-lo: tal como ele, me apoio em argumentos que desenvolvi ao longo de minha trajetória intelectual; e, ao contrário dele, invertendo a lógica argumentativa, vou do projetual ao teórico.
Inicio meus comentários com considerações sobre projetos de Mario Biselli motivado pela estratégia do autor em discutir a questão do partido arquitetônico a partir de sua própria obra. Em um texto de mais de 300 páginas, o autor dedica a primeira parte (2) a “uma perspectiva histórica”, enquanto na segunda, quase 2/3 do total, ele se enfrenta com “uma perspectiva prática”, ou seja, se enfrenta com os próprios projetos, nos quais busca o partido arquitetônico, que seria, ao mesmo tempo, a “ideia central” que lhe dá substância e a chave explicativa única que dá inteligibilidade da essência do projeto. Como parte da metodologia, desenvolve uma série de croquis explicativos contemplando os partidos arquitetônicos de cada um dos projetos analisados. Muito expressivos e autoexplicativos, os desenhos são também muito bonitos, o que torna a leitura do trabalho muito agradável.
O primeiro projeto que comento é o Nan June Paik Museum, na Coréia do Sul, fruto de concurso internacional ocorrido em 2003 (3). Em suas considerações sobre o projeto, o autor aponta para um protagonismo estrutural, que ele vincula diretamente à tradição da Escola Paulista ou, nos termos de Ruth Verde Zein, Escola Paulista Brutalista. Para reforçar o argumento, lista algumas obras que estariam, em alguma medida, dentro do mesmo universo de seu projeto: nova sede da Fapesp, de Marcos Acayaba (participação em concurso vencido por Hector Vigliecca, em 1998); sede da Prodesp, de Pedro Paulo de Melo Saraiva (Taboão da Serra, 1975); Cais das Artes, de Paulo Mendes da Rocha (Vitória, projeto de 2008, ainda em obras); Museu dos Coches, do mesmo Paulo Mendes da Rocha (Belém, Portugal, projeto de 2009, recém-inaugurado); residência Helio Olga, de Marcos Acayaba (São Paulo (1987-1990); e uma obra no exterior, o Art Center College of Design, de Craig Ellwood (Califórnia, 1976).
No entendimento de Mario Biselli, a “ponte” teria sido escolhida em consenso pela equipe enquanto partido arquitetônico do projeto a ser desenvolvido. Curiosamente, dos projetos apresentados como referências, apenas um – justamente o estrangeiro – pode ser considerado um edifício-ponte, considerando que a ponte é um artefato concebido para transpor algum obstáculo por cima, seja ele um acidente natural ou algum dispositivo artificial humano. Com um pouco de boa vontade, poderíamos estender a tipologia para o Museu dos Coches, uma vez que uma passarela da obra permite pessoas passarem por cima de avenidas e trilhos de trem. Entretanto, a escolha dos projetos me parece acertada, o que me leva a considerar que o termo “ponte” é que talvez seja impreciso para apontar a questão central do projeto.
Em uma primeira aproximação, aponto que a maioria dos projetos de referência – tal como o próprio museu de Biselli – conta com estrutura extrovertida ou exposta, com a marcação forte das diagonais presente nos elementos de contraventamento. Esta figuração estrutural seria, portanto, um ponto de encontro sugestivo entre as edificações. Mas, o projeto onde esta questão está ausente – no Cais das Artes, em Vitória, a massa tectônica externa predomina – nos encaminha para outra consideração. Este projeto – tal como todos os outros projetos de referência e o próprio projeto de Biselli – está suspenso do chão. Mais do que ponte, o que caracteriza estes projetos é o sobrevoo do artefato arquitetônico sobre o território. O que dá legitimidade a esta concepção não é o tour de force estrutural – que poderia passar por um exibicionismo fútil –, mas a possibilidade de se ocupar o chão com usos distintos daqueles previstos para o interior da construção. Esta estratégia projetual figura na arquitetura moderna brasileira desde sua origem ou, para ser mais preciso, ela é anterior ao seu nascimento, pois está presente nos croquis elaborados por Le Corbusier para São Paulo e Rio de Janeiro em 1929, durante sua primeira visita ao Brasil. O primeiro projeto moderno brasileiro que mereça este título é de 1934 – a Vila Monlevade, de Lúcio Costa – apresenta dois edifícios prismáticos longilíneos, a escola e o clube social, suspensos por pilotis, reservando ao chão atividades de recreação ao ar livre, devidamente protegidos do sol pela sombra projetada pelas construções em concreto armado. O uso dado por Lúcio Costa aos pilotis é renovador, pois ao invés de suspender o edifício do chão para a cidade acontecer – modelos presentes nos mencionados projetos de Le Corbusier e na Bauhaus de Walter Gropius – ele os utiliza para que a Natureza prevaleça sem maiores interferências no solo (4).
Esta estratégia foi amplamente desenvolvida no contexto da chamada Escola Carioca – mesmo considerando a presença protagônica da estrutura que é tão cara a Mario Biselli –, e podemos exemplificá-la com as marcantes obras de Oscar Niemeyer (Clube Social de Diamantina) e Affonso Eduardo Reidy (Escola Brasil-Paraguay). Deste último temos ainda o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, obra-prima que é a grande inspiração para a Escola Paulista (5). Ou seja, o protagonismo estrutural e a disposição do volume em sobrevoo sobre o território não são questões específicas da arquitetura que se forma em torno de Vilanova Artigas. Fica assim um tanto inapropriada a afirmação de Mario Biselli baseada nesta divisão estanque ao se referir à Escola Paulista: “trata-se de uma produção de arquitetura moderna diversa daquela que inicialmente atraiu a atenção mundial para a arquitetura brasileira, denominada Escola Carioca, conhecida pelas obras de Oscar Niemeyer, dos irmãos MMM Roberto, Affonso Reidy e outros” (p. 123).
Não estou afirmando, evidentemente, que as duas “Escolas” sejam similares, mas apenas que a distinção pode ser encontrada mais na evolução histórica do que nas estratégias projetuais. Na primeira metade do século 20, o Brasil era um país fundamentalmente rural, com a maior parte do seu PIB sendo gerado pela produção agrícola. No caso específico do tema em questão, não é de se surpreender que o achado de Lúcio Costa estabelece uma relação direta entre artefato moderno e paisagem natural: na falta de metrópoles equivalentes às europeias e norte-americanas, a saída foi encontrar uma nova fórmula que desse sentido elevado à nova arquitetura. Dando solo social para esta decisão individual, a agenda cultural do primeiro momento varguista estava voltada para a conformação de uma cultura nacional (6). Lúcio Costa, de forma consciente, aposta na constituição de uma arquitetura moderna que desse conta desta necessidade: “abrasileirar” a arquitetura moderna internacional! Assim, tal como afirmou uma vez José Lins do Rego, o que era artificial em Le Corbusier – a relação entre arquitetura e paisagem natural – era orgânica para os arquitetos brasileiros: “O retorno à natureza, e o valor que vai ser dado à paisagem como elemento substancial, salvaram nossos arquitetos do que se poderia considerar formal em Le Corbusier” (7).
A chamada Escola Paulista, que se forma e se desenvolve no bojo do desenvolvimento urbano e industrial brasileiro – que vai ter em São Paulo justamente seu epicentro –, vai dar prosseguimento nas estratégias arquitetônicas desenvolvidas pelos cariocas, mas agora dentro de um novo contexto histórico. O discurso culturalista – que nunca foi abandonado e persiste até hoje de forma residual – vai ter sua supremacia revertida pelo discurso ideológico de esquerda, que enxergava na arquitetura e no urbanismo alavancas da transformação social. No que diz respeito ao tema em questão – o sobrevoo do edifício –, temos agora um outro argumento de legitimação: não se levanta mais o edifício do chão para tornar possível uma relação mais dócil entre homem e paisagem, mas para que as relações sociais de plena igualdade possam ocorrer no solo. A atitude mesológica e contemplativa adotada pelos cariocas na primeira metade do século vai ser substituída – ao menos como discurso hegemônico na segunda metade do século, em especial nos de chumbo da ditadura militar – pela atitude política militante em busca da transformação social.
Do ponto de vista do conceito não há muita diferença entre as propostas do MAM, de Affonso Reidy, e os diversos exemplos propostos por Mario Biselli. Contudo, do ponto de vista dos dispositivos técnicos há uma sensível mudança. A arquitetura paulista vai ser beneficiária direta das modernização tecnológica presente na construção de hidroelétricas, instalações de infraestrutura, equipamentos públicos e privados de porte, galpões industriais etc. Esta nova fase de nossa história coloca à disposição da arquitetura novas possibilidades de estrutura, que são rapidamente incorporadas pela turma de Vilanova Artigas. Com isso o aumento dos vãos e a diminuição dos pontos de apoio das estruturas vira um desafio; no caso dos apoios, beira o exibicionismo sua redução ao extremo – quatro, três, dois e até um único pilar, caso específico da Casa-Bola 2, de Eduardo Longo, e da Capela de Campos do Jordão, de Paulo Mendes da Rocha. Esta vontade de suspensão radical se expressa magnificamente nos croquis de Paulo Mendes da Rocha para o Museu Brasileiro da Escultura – MuBE, onde a laje superior aparece sobrevoando o chão sem qualquer ponto de apoio! Em suma, é possível imaginar que se não houvesse a criação de Brasília, a perda de condição de capital e o esmagamento operado pela ditadura militar, a arquitetura carioca teria feito trajeto muito semelhante ao de São Paulo. A evidência material para esta afirmação hipotética não é apenas o MAM de Reidy, mas também a obra brutalista posterior que Oscar Niemeyer realizou em outros lugares (por exemplo, o atual Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, cuja parte original, antes do olho expressionista, é excepcional).
Avanço mais um pouco em relação à interpretação do projeto do Nan June Paik Museum. No croqui que expressa o partido (p. 132) temos uma linha horizontal que se posiciona entre o retângulo superior, que representa o edifício-ponte, e a linha ondulante que representa o terreno natural inferior. Em outros croquis – em especial a elevação frontal que posiciona o programa de usos e o corte transversal onde o desnível se evidencia, desenhos que destaquei na abertura deste artigo –, esta linha se transforma em um pódio, que pode ser acessado por escadaria e de onde se divisa toda a paisagem do entorno. Abaixo do pódio, em um volume semienterrado, se esconde parte do programa (infraestrutura e acervo). Ora, esta estratégia de suspender parte do programa e enterrar outra parte para liberar o solo para uso coletivo ou público é amplamente usada pelos arquitetos brasileiros. Uma das primeiras aparições do acobertamento do programa pode ser vista no projeto de Oscar Niemeyer para o Museu de Caracas. No caso, a motivação era não macular a perfeição formal do tronco de pirâmide invertida com um indesejável volume com atividades complementares. Se consideramos um universo estrutural e formal mais próximo ao de Mario Biselli, além dos já mencionados pelo próprio autor, poderíamos listar um número ponderável de projetos que contemplam de forma adequada – e talvez mais completa – o croqui do partido, dentre eles seguramente o Masp, de Lina Bo Bardi, o Pavilhão de Osaka e o MuBE, ambos de Paulo Mendes da Rocha, onde a relação entre a suspensão do volume, o enterramento de programas de uso e a liberação do chão para uso coletivo poderiam ser entendidos como decisões fundamentais do projeto. Ou seja, em meu entendimento a questão central deste projeto não é exatamente a apontada pelo autor e uma investigação com maior acuidade revela o vigoroso caudal de cultura arquitetônica aonde ele está mergulhado.
Observei diversas outras questões presentes nos projetos de Mario Biselli e que poderiam ser igualmente relacionados à arquitetura da Escola Paulista. Destas, me restrinjo a quatro que reforçam a linha de argumentação aqui em curso: a de que os projetos nascem de outros projetos, alguns deles pertencentes ao mesmo ambiente cultural.
A primeira, é sobre a iluminação zenital do Ginásio de Barueri, que o arquiteto descreve assim: “no banzo inferior destes arcos uma faixa zenital translúcida faz a luz natural entrar pelo ponto de maior tensão da estrutura” (p. 141); com técnica estrutural distinta – concreto ao invés de metal –, Vilanova Artigas faz a luz natural entrar zenitalmente na Rodoviária de Jaú justamente pelo “ponto de maior tensão da estrutura”, sobre cada um dos pilares de concreto armado; estes, de secção quadrada, se abrem na parte superior em quatro pilaretes curvos na forma de uma casca de banana descascada, que são enrijecidos por um anel circular de travamento, resultando na abertura para entrada de luz e circulação de ar.
A segunda relação pode ser verificada no croqui do partido arquitetônico da FAPERGS (8). No corte que representa a ideia central, temos na cota térreo uma flecha com a indicação “permeabilidade” (p. 227). Contudo, no mesmo desenho está presente a interrupção das lajes e a configuração de um enorme átrio. No mesmo croqui temos, portanto, uma síntese da permeabilidade encontrada no projeto de reforma da Fiesp, de Paulo Mendes da Rocha, e do grande vão presente no edifício da FAU USP de Vilanova Artigas.
A terceira relação pode ser intuída na observação das fotos do CEU Pimentas (p. 201-202) e um estudo mais detido de seus cortes e plantas. A grande cobertura unitária abriga usos diversos, que são acomodados em sua periferia, e uma enorme praça longilínea, para uso coletivo. Esta estratégia de agenciamento do programa, com privilégio dos usos coletivos, é marca registrada da Escola Paulista e pode ser observada na já mencionada FAU USP, mas também na Escola de Itanhaém e em diversos projetos residenciais de Vilanova Artigas. A afirmação de Mario Biselli que a ideia chave – ou seja, o partido arquitetônico – se encontra na sua disposição axial não me parece a melhor escolha, pois não traduz as principais qualidades do projeto.
A quarta relação parte da observação do croqui do projeto da Capes (p. 282). O volume prismático de planta quadrada vazado por um pátio igualmente quadrado se assemelha vigorosamente dos projetos de residências unifamiliares de Paulo Mendes da Rocha e Eduardo de Almeida: a casa James King e a casa Max Define, respectivamente. Com porte volumétrico mais afim, é possível relacionar o projeto da Capes ao Centro Musical de Campos do Jordão, do escritório MMBB, projeto que por sua vez relacionei, em outra ocasião, ao Convento de La Tourette, de Le Corbusier (9). E a perspectiva que faz parte do conjunto de croquis do partido nos sugere, mais uma vez, a FAU USP, mas também o Pavilhão Adriana Varejão em Inhotim, onde o arquiteto paulista Rodrigo Cerviño Lopez dispõe um prisma volumétrico puro em terreno inclinado, permitindo seu acesso por sua base suspensa na pendente. Como pode se ver, além das referências assumidas – os Palácios do Itamaraty e Justiça, de Oscar Niemeyer, e obras de arte abstrata –, temos outras referências que são passíveis de serem convocadas, algumas delas com maior poder de irrigar sentido e inteligibilidade ao projeto da Capes.
Contudo, ainda há um comentário de ordem pessoal a ser feito. Motivado a esclarecer alguns pontos que eu tinha levantado durante a banca de qualificação – a vinculação reiterada de suas ideias aos projetos de arquitetos estrangeiros me parecia excessivamente extemporânea, assim como a ausência de referências da arquitetura brasileira, em especial a produzida em São Paulo, denunciavam um ponto cego a ser enfrentado –, Mario Biselli marcou uma conversa comigo. Em nosso bate-papo, realizado em uma lanchonete, reiterei que ninguém passa incólume por seu ambiente cultural; de uma forma ou de outra, ele estará presente dentro de nós, em nossas convicções, em nossos valores e em nossos procedimentos. Ao nos despedirmos, já na calçada, Biselli me perguntou: “Mas você tem certeza que há alguma coisa do Artigas em meu trabalho?” Eu respondi: “é claro que sim; procure na estrutura e na espacialidade”.
Agora, ao ler sua tese de doutorado, me deparei com a seguinte afirmação: “O estudo relaciona ainda essa tendência de desenvolvimento projetual à importância da herança cultural da chamada Arquitetura Paulista Brutalista e a influência que exerce sobre o trabalho de arquitetos que se formaram nas principais faculdades de arquitetura de São Paulo, onde exercem também seu ofício” (p. 120). Contudo, esta relação umbilical que hoje Biselli vê entre sua obra e de sua geração e a Escola não aparecia em sua qualificação (10). Este esquecimento não é lembrado aqui para reclamar da falta dos créditos à minha insistência, mas para realçar duas questões fundamentais: a) a dificuldade imensa de se avaliar o próprio trabalho com a devida isenção e profundidade, desafio que Mario Biselli resolveu enfrentar e que, em grande medida, foi capaz de cumprir, trazendo para sua obra arquitetônica uma compreensão que era incapaz de ter há pouco tempo; mais do que denunciar os equívocos, o papel que me atribuí nestas considerações é apontar para imprecisões e incongruências remanescentes, permitindo ao autor um aprimoramento que seguramente acontecerá; b) o papel do “esquecimento” na produção cultural: um conteúdo ou forma esquecidos ou recalcados podem – segundo sugere Freud – voltar à tona a qualquer momento; ao se esquecer das minhas indicações e cobranças, mas mimetizando e incorporando seus conteúdos, Mario Biselli reproduziu no próprio texto o que é comum nos mecanismos de criação artística: o manuseio de formas e conteúdos estéticos e procedimentos metodológicos alheios, que foram incorporados na consciência ou inconsciência de forma assistemática através da observação, leitura, uso etc., e que muitas vezes foram recobertos pela figura mítica da amnésia (11).
Entre Aristóteles e Platão
Após esta abordagem inicial mais aderente aos projetos e aos significados a eles atribuído pelo autor, faço agora algumas considerações acerca da questão central do trabalho, que é apresentada por diversas vezes ao longo da tese, com algumas variações, mas que ganha sua síntese definitiva nas “considerações finais”:
“Não importando se o partido ou ideia norteadora nasça no início, no meio ou no final de uma trajetória projetual, o que principalmente se revela na prática profissional e acadêmica, é o fato de que se trata de um momento desse processo, que emerge mediante a representação espacial – seja num corte esquemático, esboço, croquis livre, diagrama ou maquete rudimentar – como síntese de uma trajetória complexa, que articula ideias e fragmentos de pensamento em representações que expressam a conceituação e o raciocínio, como um todo – a ideia subjacente” (p. 303).
Da forma que se apresenta aqui, como “síntese de uma trajetória complexa”, a ideia chave do projeto – a “ideia subjacente” ou “partido arquitetônico” – se aproxima bastante da tradição aristotélica, que enxerga na materialidade de uma obra de arte a forma final de amplo embate no campo das ideias e um constante lapidar das formas possíveis. Ou seja, a forma final é resultante da interação histórica de fenômenos de diversos âmbitos (estético, tecnológico, linguístico, social, político, ideológico etc.). Em outros momentos da tese, a definição que temos de partido arquitetônico se aproxima desta tradição. É o que vemos, por exemplo, quando Biselli faz considerações a partir de Lawson: “Neste sentido, o gerador primário é um obstáculo, que ao ser removido, libera o processo de projeto como fluxo de ideias-chave ou possíveis partidos, processo este que decorre até que uma ideia maior emerja e se consolide como estruturadora daquele projeto” (p. 117). Em um sentido geral, concordo com este aporte, pois entendo uma obra como um feixe de energias provenientes da subjetividade do artista e do universo de possibilidades técnicas e formais ofertadas pela sociedade. Acredito que nunca se projeta a partir do nada. Para mencionar projetos presentes na tese como referências, é possível dizer que o Museu D’Arles, de Henri Ciriani, é uma manipulação de formas geométricas com larga tradição, pelo menos desde Palladio no Renascimento, com presenças fulgurantes na modernidade (Louis Kahn) e na pós-modernidade (Mario Botta). Também é possível afirmar que a Casa Bola de Eduardo Longo é uma simplificação evidente do Cenotáfio para Isaac Newton, de Étienne-Louis Boullé. E assim por diante.
Nesse sentido, fica para mim mais difícil aceitar argumentos que partem da noção de uma criação in totum. Parece ser isso que Biselli traz à tona ao fazer o seguinte comentário sobre a Casa das Canoas de Oscar Niemeyer: “pode ser considerada uma invenção sob qualquer ponto de vista, uma vez que não se assemelha a nenhuma forma conhecida” (p. 268). Ora, a Casa das Canoas tem impressionantes pontos de contato com o Pavilhão de Barcelona, de Mies van der Rohe, do qual seria uma versão distorcida por uma sensualidade primitiva de retorno à natureza (12). Por outro lado, sua marquise amebóica já tinha sido experimentada pelo arquiteto na Casa do Baile, do conjunto arquitetônico da Pampulha. Mesmo aqui não se pode dizer que seja original enquanto forma, pois esta é corriqueira na pintura abstrata da época (inclusive na de Le Corbusier) e nas formas aerodinâmicas do design industrial norte-americano. As formas curvas em si estão presentes no primeiro moderno – caso do expressionismo da Torre de Einstein de Eric Mendelsohn – e até antes, caso do Art Decó. O subtexto desta apresentação de exemplos é que muitas vezes formas e conteúdos corriqueiros em uma área do conhecimento se transformam em novidades quando deslocados para um outro ambiente cultural.
Derivada desta questão, Biselli faz outras afirmações sobre o caráter arbitrário da criação arquitetônica, que pode ser associada à intuição. Eu concordo plenamente com isso, pois entendo que parte ponderável do processo de criação se dê em uma dimensão subterrânea a nossa consciência. Mas ela não é uma caixa preta, como dizem alguns. Como fio a ser puxado, cito frase de Biselli: “a forma arbitrariamente adotada no início comprova um potencial indiscutível de solução em determinados casos” (p. 274). Sim, perfeito! Mas a adoção apriorística de uma forma não se faz sem o apoio de uma ampla bagagem de conhecimento que antecipa, na forma de intuição, a validade da sua escolha. O que se chama aqui de intuição é algo similar ao que Sartre designa como imaginação, ou seja, a relação mediada pela temporalidade entre a percepção de uma imagem e a lembrança posterior desta imagem. O conjunto de sensações, impressões e valores associados à imagem percebida – conjunto este que pode estar soterrado pelo esquecimento – é eventualmente ativado na evocação da imagem lembrada, que inevitavelmente vai ser reprocessada pelas experiências posteriores (13). Toda e qualquer intuição ou criação se faz a partir de material mnemônico do artista, o que nos leva à afirmação peremptória de Sartre: “a existência de um pensamento puro trabalhando sem nada que o provoque é a priori inverossímil” (14). Em suas proposições acerca da criação estética, Sigmund Freud a aproxima dos sonhos, onde a guarda-baixa da consciência adormecida possibilita que os mecanismos oníricos – em especial o deslocamento e a condensação – processem as memórias fixadas, transformando-as na forma e no conteúdo. Uma constatação importante no que diz respeito à criação estética: não existe um conteúdo único aderente a uma determinada forma, estando esta sempre aberta às possibilidades de rearranjos de sentido e significado.
Contudo, nas idas e vindas das afirmações de Mario Biselli é mais fácil encontrar afirmações que apontam ser a forma sintética de um projeto – o partido arquitetônico – resultante de processos diversos, onde estão presentes inclusive mecanismos psíquicos de distorção, inversão, recomposição etc., todos eles tributários de eventuais manifestações do esquecimento. Uma destas frases é a seguinte:
“Os caminhos da invenção em arquitetura foram os mais diversos, sempre trazendo para o contexto de seu processo de trabalho uma ideia ‘de fora’, externa ao que o programa do projeto em questão lhe sugere; recorre à forma abstrata, à forma metafórica, à referência literal, e a várias derivações da expressão arquitetural, tendo como resultado uma diversidade de caminhos que tem, sempre mais, alimentado de conteúdos a crítica e a história da arquitetura” (p. 271).
Frase, em minha opinião, irreparável. Contudo, me parece este corpus aristotélico que abriga como explicação a materialidade da vida, e que está manifesto em diversas passagens da tese, sofre em alguns momentos o assédio de uma alma platônica, que acredita em uma ideia transcendente que habita os corpos do mundo. Este litígio me parece estar presente, por exemplo, na ampla reconstituição histórica do nascimento do conceito de “partido arquitetônico” no Renascimento italiano e seus desdobramentos nos momentos posteriores, em especial durante o Movimento Moderno e no Pós-moderno. O desejo de ter às mãos um conceito trans-histórico, de validade universal, faz com que Biselli desconsidere enormes diferenças ou similitudes entre os momentos históricos, sempre tendo como conveniência a possibilidade a afirmação que o partido arquitetônico é o cerne da arquitetura pelo menos desde o final do século 15. As dificuldades em operar este delineamento conceitual leva o autor a criar artifícios narrativos e argumentativos para driblá-las. Neste sentido, o partido pode estar no começo, no meio ou no fim. Ele pode vir de fora ou ser encontrado durante o processo. Segundo a taxionomia proposta, ele pode estar na estrutura, pode ser uma ideia tardia, pode ser determinado pelas configurações rígidas ou então pelo contexto urbano, pode ser o registro de uma investigação de vai do todo à parte ou seu anverso (da parte ao todo), pode ser um partido axial explícito, pode ser uma ideia externa. O partido pode ser quase tudo!
Contudo, mesmo com a diversidade dos critérios analíticos para se chegar ao partido arquitetônico – para isso são alinhados autores e teorias diversos, o que explica a heterogeneidade presente –, Mario Biselli tem como pressuposto a existência de uma única ideia forte a dar sentido ao projeto, e que parece flutuar acima do mundo prosaico da matéria em desenvolvimento. Segundo o autor, “o estabelecimento do partido arquitetônico ocorre em um plano de operações distinto daqueles em se desenvolvem as demais atividades de projeto” (p. 8). Este anseio em detectar a ideia forte que dê sentido profundo e completo ao projeto arquitetônico e que parece não participar do processo de trabalho me parece de um idealismo radical com o qual tenho enorme dificuldade em concordar (15). O próprio trabalho aqui analisado se vê incapaz de evitar o contrabando de argumentos que o contestam na raiz, pois são de extrema diversidade os fatores que se alinham abaixo do termo guarda-chuva “partido arquitetônico”, todos eles, sem exceção, oriundos da materialidade da vida e das elucubrações teóricas que se faz a partir dela. A arquitetura como síntese de procedimentos diversos, no âmbito das ideias e da materialidade projetual, nos coloca diante do fato irrevogável que a qualidade de uma obra pode ser encontrada nos seus mais diversos aspectos conceituais, tipológicos e materiais, e não apenas em uma hipotética ideia superior, que se descola do processo de desenvolvimento projetual. Em um contexto onde comenta a polêmica gerada pelo concurso público para o anexo do edifício do BNDES no Rio de Janeiro, que possibilita o desenvolvimento e construção do projeto ganhador sem a contratação do arquiteto autor da ideia, Otavio Leonídio coloca em bons termos a questão de onde se localiza a criação da obra:
“De fato, o que se entende por ‘concepção arquitetônica’ abarca, por regra, as atividades de concepção (e não mero ‘desenvolvimento’) referentes ao Projeto Básico e ao Projeto Executivo, incluindo obviamente o detalhamento. Exemplos desse conceito amplo (na verdade, não reducionista) de concepção arquitetônica são inúmeros, mas me limito a citar um dos mais emblemáticos – aquele representado pela extraordinária arquitetura de João Filgueiras Lima, o Lelé. E por acaso alguém supõe que o que Lelé faz durante o Projeto Executivo não é ‘concepção arquitetônica’?" (16)
Creio que estamos diante da necessidade argumentativa que precisa ser devidamente enfrentada: não seria o partido arquitetônico pensado como explicação única de um projeto uma ilusão da consciência? Não estaríamos falando das qualidades sutis do éter ou da perfeição transcendente de Deus? As excelentes explicações dadas por Mario Biselli para dar luz e legitimidade aos seus projetos acabam chegando, na maior parte das vezes, às ideias fortes, no plural, que sempre habitam os bons projetos de arquitetura. Sua intenção em transformá-las em uma única ideia parece mais empobrecer do que qualificar os projetos em questão. Os próprios croquis parecem denunciar esta impossibilidade, pois cada projeto merece vários deles, na forma de plantas, cortes, perspectivas, esquemas, comentários... A pluralidade de valores encontrados, que se insubordinam diante da ânsia de síntese unitária, são qualidades, não defeitos.
Post scriptum
A decisão em publicar os comentários desenvolvidos durante a arguição na forma de resenha se deu pela certeza que vale a pena a leitura do trabalho. Se é certo que há algumas contradições – algumas delas assinaladas acima –, um pouco de pressa no desenvolvimento dos antecedentes e uma certa dificuldade em manejar autores com ideias e argumentos nem sempre compatíveis, por outro lado o trabalho tem qualidades inegáveis: a familiaridade enorme com o fazer arquitetônico que apenas aqueles que dedicam uma vida ao labor conseguem ter; o esforço vigoroso na busca de inteligibilidade do próprio trabalho e que em alguns momentos chega a revelações ao mesmo tempo saborosas e profundas; o respeito sem hesitação pela teoria, algo nem sempre visível na postura dos chamados arquitetos de prancheta; a capacidade surpreendente de trazer à tona um sem número de temas e discussões de grande interesse e relevância.
Alguns destes temas e discussões eu fiquei com “coceira” para comentar, mas tive o bom senso em me censurar. Contudo, deixo aqui registradas as questões presentes no trabalho, que mereceriam uma conversa sobre seus postulados e implicações:
a) a diferença entre metodologia de projeto, voltado para o desenvolvimento de um projeto de arquitetura, e a metodologia científica de um trabalho acadêmico, que tem como objetivo a compreensão de um determinado fenômeno; tal distinção, quando não levada em consideração, acaba produzindo confusões e incompreensões do que está em jogo.
b) a relação entre moderno e pós-moderno e o debate implícito a ela colocam em cena a discussão se há uma continuidade ou uma ruptura entre os dois momentos; a consideração desta questão, tendo como elemento chave a noção do “novo” defendido pelas vanguardas, pode levar a desenvolvimentos significativos do debate em curso.
c) o tema do “gênio” proposto pelas vanguardas têm importantes distinções acerca do sentido e significado em relação ao ambiente romântico de onde foi sacado; também é flagrante as compreensões muito diversas do tema por modernistas europeus e brasileiros, cujos contextos históricos apresentavam demandas e agendas com diferenças muito profundas.
d) o conceito de “influência”, usado constantemente por Mario Biselli e que sofre, por parte do meio acadêmico na área de arquitetura, de uma grande objeção; tal como Biselli, entendo que se trata de um conceito chave para a explicação da criação artística e que pode – principalmente quando amparado por discussões presentes em textos de autores do porte de Harold Bloom e Haroldo de Campos – aprofundar bastante o debate sobre a criação e difusão da obra de arte. Vale mencionar que os autores citados, ambos teóricos da literatura, apontam para o benefício imenso que seria olharmos com maior atenção a produção crítica em outras áreas das artes, muitas delas muito mais avançadas em suas pesquisas sobre a criação estética do que no campo específico da arquitetura (17).
notas
1
O presente texto é baseado na arguição feita durante a defesa da tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU Mackenzie, ocorrida no dia 14 de abril de 2014, às 14h00, e que contou com a participação dos professores Eunice Abascal (orientadora), Cêça Guimaraens (UFRJ), Gleice Elali (UFRN), Abilio Guerra (Mackenzie) e Rafael Perrone (Mackenzie).
2
Uma das convidadas externas, Gleice Elali, sugeriu que na apresentação final do volume, cujo depósito deve ocorrer em um mês, o autor transforme seus dois capítulos em duas partes, e os subcapítulos atuais em capítulos. A sugestão vem de encontro a minha opinião.
3
Os autores do projeto para o concurso do Nan June Paik Museum são os arquitetos Mario Biselli, Artur Katchborian, Guilherme Motta, Marcio N. Coelho Jr, Marcos Paulo Ribeiro, Roberto N. Fialho, Silvio Sguizzardi e Valéria S. Fialho.
4
Este argumento eu desenvolvi em minha tese de doutorado: GUERRA, Abilio. Lucio Costa – modernidade e tradição: montagem discursiva da arquitetura moderna brasileira. Tese de doutorado. Orientação Maria Stella Martins Bresciani. Campinas, IFCH Unicamp, 2002.
5
Há alguns anos cobrei de Nabil Bonduki a ausência desta filiação no seu importante livro sobre o arquiteto carioca: “Contudo, com o exagero na visão periférica sobre o fato arquitetônico corre-se o risco de se deixar escapar considerações substantivas, como, por exemplo, a evidente filiação do brutalismo paulista – uma das mais importantes manifestações estéticas brasileiras das últimas décadas – aos projetos do Colégio Brasil-Paraguai, em Assunção, e do MAM no Rio de Janeiro, ambos de Affonso Reidy”. GUERRA, Abilio. Historiografia da arquitetura. Jornal de Resenhas, São Paulo, Folha de S.Paulo, n. 65, 12 ago. 2000, p. 8. Republicação do texto: GUERRA, Abilio. Historiografia da arquitetura. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 001.11, Vitruvius, jan. 2002 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3268>.
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O tema da cultura nacional está amplamente desenvolvida em minha dissertação de mestrado: GUERRA, Abílio. O homem primitivo – origem e conformação no universo intelectual brasileiro (séculos XIX e XX). Dissertação de mestrado. Orientação Maria Stella Martins Bresciani. Campinas, IFCH Unicamp, 1989. A dissertação, com alguns ajustes, foi publicada como livro, com título modificado: GUERRA, Abílio. O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp. Origem e conformação no universo intelectual brasileiro. Coleção RG bolso, volume 3. São Paulo, Romano Guerra, 2010.
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REGO, José Lins do. O homem e a paisagem. XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração, p. 303. Publicado originalmente em francês na revista L’Architecture d’Aujourd’hui, Paris, n. 42-43, ago. 1952, p. 8-14. Apud GUERRA, Abilio. Lucio Costa, Gregori Warchavchik e Roberto Burle Marx: síntese entre arquitetura e natureza tropical. Revista USP, São Paulo, n. 53, mar./maio 2002, p. 18-31. Republicação do artigo: GUERRA, Abilio. Lucio Costa, Gregori Warchavchik e Roberto Burle Marx: síntese entre arquitetura e natureza tropical. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 029.05, Vitruvius, out. 2002 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/740>.
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“Nota-se no conjunto uma forte influência corbusiana, em especial do convento de La Tourette”. GUERRA, Abilio. Arquitetura brasileira: viver na floresta. Catálogo da exposição. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2010.
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Os autores do projeto para o concurso da FAPERGS são os arquitetos Mario Biselli, Artur Katchborian, Marcio N. Coelho Jr, Roberto N. Fialho, Silvio Sguizzardi e Valéria S. Fialho.
9
“Nota-se no conjunto uma forte influência corbusiana, em especial do convento de La Tourette”. GUERRA, Abilio. Arquitetura brasileira: viver na floresta. Catálogo da exposição. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2010.
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O exame de qualificação de doutorado ocorreu em junho de 2012 e as afirmações que faço aqui estão corroboradas pelas anotações feitas por Cêça Guimaraens na ocasião.
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Na Odisseia de Homero, em sua tumultuada volta para Ítaca, a tropa de Ulisses desembarcam na ilha dos lotófagos e alguns soldados comem o fruto do lotos, que provoca o esquecimento. Segundo alguns intérpretes, a amnésia - ao apagar o passado muitas vezes pesado e dolorido - abre a possibilidade de começar de novo, uma potencial alternativa do renascimento. No âmbito da criação, o esquecimento circunstancial é um mecanismo fundamental, pois sem ele o peso da referência dos antigos pode ser paralisante.
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Cf. defendo em artigo ainda inédito, a ser publicado pela revista da Pós FAU USP.
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Durante a defesa, Mario Biselli foi indagado por Gleice Elali se os croquis, apresentados como partidos dos projetos, representavam o que ele pensava no momento da concepção ou o que ele pensa hoje sobre os projetos. Sua resposta foi muito sugestiva: “representa o que eu penso hoje sobre os projetos”. Ou seja, as formas e conteúdos mais significativos dos projetos concebidos em fases distintas de sua carreira profissional foram revisitados a partir da experiência acumulada. Ou seja, algumas questões aventadas hoje não estavam claras ou evidentes para o autor durante o processo de projetação. Esta situação, por si só, relativiza a concepção do partido arquitetônico como ideia chave única, conforme deseja o autor.
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SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Coleção Os Pensadores, 3a edição. São Paulo, Abril Cultural, 1987, p. 51.
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Com outro foco, a mesma objeção foi apresentada ao candidato por outro membro da banca. Rafael Perrone comentou que “ideia subjacente” induzia ao entendimento que um partido arquitetônico preexiste e que cabe ao arquiteto descobri-lo. Este entendimento é contraditório com a afirmação sistemática do autor sobre a origem processual do partido arquitetônico.
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LEONÍDIO, Otavio. Sobre a qualidade de um concurso. O que se entende por concepção arquitetônica? Projetos, São Paulo, ano 14, n. 160.01, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.160/5126>.
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Tratei desta questão em arguição em uma banca de mestrado: GUERRA, Abilio. O brutalismo paulista no contexto paranaense. A arquitetura do escritório Forte Gandolfi. Resenhas Online, São Paulo, ano 09, n. 106.02, Vitruvius, out. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.106/3792>.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.