Publicado recentemente pela editora Edgar Blücher, IAC: primeira escola de design do Brasil, escrito pela jornalista, editora da revista Agitprop e professora de história do design Ethel Leon, adota como ponto de partida a formação daquele que é considerado o primeiro curso de desenho industrial do país. Experiência pouco estudada por pesquisadores que se dedicam à história do design no Brasil, a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), sediado no Museu de Arte Contemporânea (Masp) entre 1951 e 1953, adquire agora contornos mais nítidos sob as lentes investigativas da autora. Fruto da dissertação de mestrado desenvolvida por Ethel Leon na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 2006, sob a orientação de Julio Roberto Katinsky, a obra não só representa significativo avanço para a compreensão de um dos muitos capítulos que integram a conformação do ensino e das práticas do design no país iniciadas na primeira metade do século 20, como também abre caminhos para estudos futuros ao incitar novos olhares sobre o tema.
Fio condutor das considerações tecidas pela autora, a fundação do IAC na São Paulo dos anos 1950 revela-se como canal privilegiado para o entendimento das relações e das tensões travadas entre as elites e os projetos culturais que despontavam no horizonte nacional naquele período e as perspectivas de modernização sustentadas pelos diferentes setores sociais envolvidos com o IAC. Tendo em vista estas questões, o livro acompanha a criação, o desenvolvimento e os desdobramentos do curso de desenho industrial cuja proposta parecia ir ao encontro das expectativas de uma fase marcada por significativas transformações das estruturas políticas, culturais, econômicas e sociais no país. No plano cultural, as fundações do Masp em 1947, do MAM em 1948 e a realização da I Bienal de São Paulo em 1951 brindavam esta efervescência artística que compunha um cenário imbuído por uma atmosfera de progresso, modernização e novas possibilidades de consumo.
Como bem destaca Ana Maria de Moraes Belluzzo em texto que prefacia a edição, as discussões em torno dos complexos arranjos entre arte e indústria no país deram vazão às experiências históricas de distintas naturezas passíveis, portanto, de diferentes interpretações. Neste sentido, longe de se restringir a uma abordagem de caráter linear, o presente estudo extrapola os limites do que poderia ser uma história de cunho meramente institucional ou uma narrativa centrada nas figuras hoje ilustres do design nacional e procura abarcar, ao longo de seis capítulos, uma série de assuntos pertinentes que orbitam a formação do curso coordenado por Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi.
Em linhas gerais, a leitura de IAC: primeira escola de design do Brasil tem o mérito de trazer à superfície os pequenos percalços que, em grande parte das vezes, rondam os percursos daqueles que se enveredam pelas tramas da pesquisa científica. Como explicita a autora logo nas primeiras páginas de sua introdução, poucos foram os rastros documentais específicos acerca do IAC disponíveis para a análise. No entanto, o panorama detectado com certa surpresa por Ethel Leon – dado que, como salienta a pesquisadora, também nos permite indagar quais seriam os possíveis motivos que provocaram a escassez de fontes sobre o assunto – conduziu a autora a uma “aventura quase detetivesca” (p. 20) na busca por outros registros capazes de serem mobilizados como repertório documental.
Assim, a fim de recuperar os fragmentos deste processo o estudo se embasou, sobretudo, na leitura crítica de edições da revista Habitat, no levantamento de documentação localizada no arquivo do Masp e em entrevistas realizadas com figuras envolvidas com a trajetória do IAC, como Alexandre Wollner, Irene e Jacob Ruchti, Emilie Chamie, Flávio Motta, entre tantos outros. Ao longo das cento e cinquenta páginas do livro, entremeadas por diversos materiais visuais referentes ao período explorado, torna-se evidente o cuidado que a autora dispensa na abordagem das fontes selecionadas. A contextualização e a análise de trechos dos programas de aulas do IAC, currículos dos cursos, críticas sobre decoração e arquitetura em artigos da Habitat e matérias de jornais da época dão consistência à linha investigativa sustentada por Ethel Leon.
Entretanto, particularmente no que diz respeito à utilização de dados e informações coletados a partir de depoimentos de ex-estudantes e de um ex-professor do curso de desenho industrial organizado pelo IAC caberia talvez problematizarmos o peso da memória nestes relatos, dimensão que, apesar de reconhecida pela autora, poderia ter sido um pouco mais aprofundada na obra. É certo que uma análise mais apurada sobre a escola de design do IAC a partir dos discursos de pessoas que, de diferentes formas, participaram desta experiência demandaria ferramentas metodológicas específicas (1) voltadas para a compreensão do papel da memória na construção de impressões e versões sobre o IAC.
Não se trata, portanto, de cobrarmos da pesquisadora uma abordagem calcada nos modelos da história oral - o que certamente escaparia do escopo teórico-metodológico delimitado pelo estudo – mas sim, de pontuarmos as implicações envolvidas no uso de entrevistas como fontes de informação, já que muitas vezes, os testemunhos orais encontram-se perpassados por subjetividades que, por sua vez, imprimem nuances a estes discursos. Partindo desta consideração e, levando-se em conta as observações da própria autora sobre os desafios de se mapear as mais de cinco décadas que separavam a fundação do curso de design das entrevistadas realizadas, o exercício de confronto entre os relatos dos antigos alunos do IAC e as demais fontes mobilizadas poderia, por meio da problematização das estreitas relações entre memória e história (2) precipitadas por estes testemunhos orais, agregar outros elementos ao estudo.
No bojo das ações em torno da criação do curso de desenho industrial na capital paulista, a publicação abarca as estratégias sociais, nem sempre convencionais, aplicadas principalmente por Assis Chateaubriand, fundador do MASP e proprietário dos Diários Associados, na árdua tarefa de tentar educar as sensibilidades estéticas das elites para o “bom gosto moderno” (p. 33) e, ao mesmo tempo, despertar a simpatia destes grupos no apoio financeiro ao museu. Assim, diante do descompasso observado por Pietro Maria Bardi entre as preferências artísticas da elite paulistana e o movimento moderno, a fundação do IAC poderia não só atuar como espécie de espaço pedagógico na formação de profissionais habilitados para produzirem trabalhos que unissem arte e tecnologia nas áreas do design gráfico e de produto, mas também como polo irradiador com potencial para moldar o gosto da elite paulistana a uma linguagem moderna. No entanto, as possibilidades de diálogo entre a produção do IAC e as indústrias paulistas parecem não ter encontrado solo tão fértil quanto esperava Bardi, como é possível verificar em excertos de escritos presentes no livro.
Os levantamentos documentais realizados por Ethel Leon nos revelam dados preciosos no que diz respeito à formação intelectual dos professores que lecionavam na escola, ao processo seletivo de seus alunos, à duração e à dinâmica dos cursos que, de maneira geral, se pautavam nos modelos de ensino da Bauhaus Dessau e no Instituto de Design de Chicago, tópico que constitui o cerne do segundo capítulo do livro. Ao se debruçar sobre o perfil destas instituições que serviram de referências para a conformação do IAC, a autora discute como, a partir da incorporação de aspectos das escolas europeia e americana de design, o IAC optou por traçar uma via apaziguadora entre as duas correntes:
“O debate estabelecido nas duas escolas, a norte-americana e a alemã, não vai se realizar no Brasil. Tratava-se de absorver intensamente a atualização artística europeia e norte-americana, incorporando elementos de conduta dos designers norte-americanos em suas relações com a indústria, sem, no entanto, que houvesse aqui o interesse e a receptividade [...] para uma escola de design” (p. 65).
O encerramento das atividades do IAC em 1953, apenas após dois anos de seu início, descortina uma gama de questionamentos no que diz respeito a não continuidade da escola. Para além das diversas suposições elencadas e debatidas pela autora, que procura relativizar algumas hipóteses esquemáticas acerca da curta duração do projeto, a ideia sustentada pelo estudo aponta para um conjunto de fatores relacionados ao lugar que o design ocupava no âmbito das indústrias e na mentalidade do empresariado brasileiro naquele momento. Amparando-se principalmente nas interpretações desenvolvidas por intelectuais como Florestan Fernandes e Celso Furtado, a pesquisadora defende que, entre nós, o design acabou por adquirir uma função muito mais “representacional” do que efetivamente “produtiva” (p. 87). Tal linha de raciocínio parece se fortalecer na medida em que observamos a projeção que a área do design gráfico conquistou se comparado à área do design de produtos no período, realidade espelhada na própria trajetória profissional de boa parte dos alunos e alunas que frequentaram as aulas do IAC. Vale reforçar, conforme o quinto capítulo da obra dedicado à atuação de alguns artistas e designers que estudaram no IAC, que muitos deles acabaram por se destacar na criação de identidades visuais de empresas, no setor de decoração e paisagismo do que na elaboração de produtos industriais.
Em suma, ao trazer à tona aspectos até então mais citados que explorados sobre a criação, as experiências e o legado deixado pelo Instituto de Arte Contemporânea, IAC: Primeira Escola de Design do Brasil apresenta-se como publicação de relevo dentro da produção mais recente dedicada à compreensão das especificidades que marcam a história do design no país a partir da segunda metade do século passado. Plataforma de observação para diversos temas, como o entendimento das práticas de ensino no Brasil, o papel do design no desenvolvimento industrial brasileiro nos anos 1950 e, de maneira mais ampla, no cenário internacional do período pós Segunda Guerra, o IAC, sob o foco investigativo empreendido por Ethel Leon, nos convida, a partir das potencialidades e das limitações envolvidas neste efêmero – mas não estéril – projeto, a pensarmos o lugar do design em nosso mundo contemporâneo.
notas
1
Para discussões teórico-metodológicas acerca das relações entre memória e história oral, suas potencialidades e limitações conferir, entre outros: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo, Loyola, 2000.
2
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.
sobre a autora
Márcia Almeida é historiadora e atualmente mestranda no curso de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.