Paul Veyne nos mostrou que “a história é subjetiva” e que “nenhum historiador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido e não pode passar por toda parte”. A urdidura da trama historiográfica decorre da “mistura muito humana e pouco ‘científica’ de causa materiais, de fins e de acasos” (1).
A história da arquitetura moderna brasileira limitou-se, até muito recentemente, à história da arquitetura moderna produzida no Rio de Janeiro e em São Paulo, além de episódios pontuais como a experiência de Luís Nunes no Recife, nos anos 1930. Como consequência, as principais publicações voltadas ao tema apresentam, invariavelmente, versões excessivamente recortadas.
Com exceção de uma ou outra obra pioneira, como Arquitetura moderna: a atitude alagoana (2), publicada há 23 anos, apenas recentemente começaram a ser publicados no Brasil trabalhos dedicados ao registro e análise da arquitetura moderna em outras regiões. Essa ampliação nas publicações sobre as obras e os arquitetos modernos de outras cidades brasileiras decorre, provavelmente, de três razões. A primeira – e, de certo modo, a causa das outras – é a expansão recente da rede de programas de pós-graduação em arquitetura e urbanismo no Brasil. Desde 1998, quando foi criado o segundo curso de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo no Brasil, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se somou ao da Universidade de São Paulo (USP), existente desde 1980, foram criados mais de dez cursos de Doutorado na área em diversos Estados, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte.
A segunda razão, decorrente da primeira, é o aumento de eventos na área de Arquitetura e Urbanismo, fomentando a produção de artigos e o debate em nível nacional, com especial destaque, no que se refere à discussão sobre a arquitetura moderna brasileira, para os seminários da rede Docomomo. A terceira razão, também consequência, em parte, da primeira, é a ampliação do mercado editorial especializado no Brasil, seja através do fortalecimento das editoras universitárias, seja pelo surgimento de novas editoras comerciais dedicadas à área da arquitetura.
O lançamento, agora, do livro Na urdidura da modernidade: arquitetura moderna na Paraíba I, organizado por Nelci Tinem e Marcio Cotrim, vem contribuir, de modo definitivo, para incluir a Paraíba no panorama da arquitetura moderna brasileira. Formado por dezessete artigos assinados, em sua maioria, por pesquisadores vinculados ao Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (PPGAU/UFPB) – ou que passaram pelo Programa como alunos –, esta publicação registra e analisa a arquitetura moderna paraibana, das obras produzidas pelos arquitetos sediados no Estado, como Clodoaldo Gouveia e Mario Di Lascio, à arquitetura de “forasteiros” como Sérgio Bernardes e Acácio Gil Borsoi, passando por um paraibano radicado no Rio de Janeiro como Glauco Campello. A produção de Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba e que rivaliza com João Pessoa em termos econômicos e culturais, também é documentada e analisada em diversos artigos.
O livro está organizado em três partes. A primeira se intitula “Construindo uma versão da arquitetura moderna: a pesquisa” e apresenta sete artigos de diferentes autores, em sua maioria escritos especialmente para o livro a partir de pesquisas mais amplas realizadas como trabalhos de conclusão de curso ou dissertações de mestrado.
O primeiro artigo, “João Pessoa e a difusão da arquitetura moderna”, é assinado por Fúlvio Teixeira de Barros Pereira e apresenta uma visão panorâmica do tema na capital paraibana. O segundo, o terceiro e o quarto artigos também enfocam a arquitetura de João Pessoa, porém a partir de diferentes recortes. O artigo “Verticalização em João Pessoa: novo ciclo de modernização (1950-1970”, de Carolina Chaves, apresenta uma visão geral dos edifícios verticais construídos na área central e nos bairros de Tambaú e Cabo Branco. Ricardo Ferreira de Araújo, em “Arquitetura residencial em João Pessoa: a experiência moderna nos anos 1970”, aborda as habitações unifamiliares de um período da produção moderna ainda hoje pouco estudado. O artigo “As expressões arquitetônicas modernizantes em João Pessoa 1932/1955”, de Fernanda Farias, apresenta a arquitetura déco e as primeiras manifestações modernas da capital paraibana.
Os três últimos textos desta primeira parte se centram na arquitetura de Campina Grande. O primeiro deles, intitulado “Linhas cubísticas, quebradas e funcionais: arquitetura moderna em Campina Grande”, de autoria de Marcus Vinicius Dantas e Fabiano Melo, cumpre a função de apresentar uma visão geral sobre a produção arquitetônica moderna da segunda maior cidade paraibana, seguindo-se dos artigos de Adriana Leal de Almeida, sobre as “Residências modernas em Campina Grande, anos 1950 e 1960”, e de Marcus Vinicius Dantas, intitulado “O século XX e a constituição da modernidade arquitetônica em Campina Grande (1930/1950)”.
Quase todos os autores desta primeira parte são ex-orientandos de trabalho de conclusão de curso ou de mestrado de Nelci Tinem, e muitos deles cursaram, posteriormente, mestrado ou doutorado na Escola de Engenharia de São Carlos (atual IAU – Instituto de Arquitetura e Urbanismo) da USP.
A segunda parte – que poderia ser a primeira, dado que reúne textos resultantes das primeiras pesquisas sobre o tema – leva o título de “Subsídios para uma construção historiográfica: avaliação”. É a que reúne o menor número de textos, mas nem por isso é menos relevante, posto que correspondem a três artigos fundamentais para o tema do livro.
O primeiro texto dessa parte, assinado por Carlos Martins, professor da USP em São Carlos, foi também o primeiro artigo sobre a arquitetura moderna na Paraíba publicado em uma revista de alcance nacional. Com o título de “Um pioneiro esquecido”, o texto, publicado originalmente na revista AU – Arquitetura e Urbanismo, em 1988, apresentava ao Brasil os projetos realizados em João Pessoa, nas décadas de 1930 e 1940, pelo arquiteto Clodoaldo Gouveia. Nele, Martins registra sua “estranheza pelo silêncio da historiografia sobre uma obra que não foi pequena nem sem qualidades”. Para justificar esse esquecimento – “uma arma poderosa” –, Martins nos recorda que “nenhuma historiografia é isenta” e que o desconhecimento ocorria, talvez, “porque a Paraíba ficava muito longe de quem escrevia” (p. 148).
O seminal texto de Martins é seguido do esclarecedor artigo de Mércia Rocha, “Um olhar sobre o primeiro registro das obras modernas de João Pessoa”, em que a autora revê o pioneiro levantamento da arquitetura moderna da capital paraibana elaborado como parte do seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 1987. Com louvável autocrítica, Rocha relembra suas motivações para realizar aquele inventário, relata as dificuldades que encontrou, reconhece a relevância do seu trabalho e identifica, 27 anos depois, algumas lacunas e imprecisões no resultado final.
O terceiro e último texto desta segunda parte se intitula “Equipe de técnicos. A ação da Diretoria de Viação e Obras Públicas (DVOP) na Paraíba da década de 1930”, de autoria de Francisco Sales Trajano Filho. O primoroso artigo de Sales tem sua origem mais remota na pesquisa desenvolvida no âmbito do Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido na UFPB, sob a orientação de Tinem, e posteriormente ampliada e aprofundada na dissertação de mestrado e na tese de doutorado desenvolvidas por ele no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos, do qual é, atualmente, professor.
Se, em seu texto, Martins buscou resgatar a contribuição de Clodoaldo Gouveia como pioneiro da arquitetura moderna paraibana, Sales defende que as importantes obras públicas erguidas pela Diretoria de Viação e Obras Públicas durante a Interventoria de Argermiro de Figueiredo (1935-1940) são resultantes menos de “individualidades” e mais de um “trabalho coletivo, com o protagonismo individual subsumindo-se no interior de equipes profissionais de matizado perfil técnico” (p. 164), comparando a experiência paraibana a outras já cristalizadas na história da arquitetura moderna brasileira, como a Diretoria de Arquitetura e Construção (depois Diretoria de Arquitetura e Urbanismo) de Pernambuco, a Divisão de Aparelhamentos Escolares do Departamento de Educação do Distrito Federal e o Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Rio de Janeiro.
A terceira e última parte, intitulada “Preservação e documentação de projetos modernos construídos na Paraíba: registros”, inclui sete artigos que documentam e analisam criticamente alguns dos mais significativos exemplares da arquitetura moderna paraibana – uns já destruídos, outros ainda passíveis de serem preservados.
No denso primeiro artigo desta parte, intitulado “Desafios da preservação da arquitetura moderna: o caso da Paraíba”, Nelci Tinem apresenta preciosas reflexões sobre a preservação do patrimônio moderno no Estado e conclui com listagens das obras que mereceriam serem tombadas nas esferas federal e estadual e das residências que “merecem alguma proteção e estudo, mas provavelmente nenhuma espécie de tombamento” (p. 198).
Os seis artigos que se seguem abordam algumas das principais obras modernas realizadas na Paraíba, todas incluídas na lista de recomendações elaborada por Tinem para o tombamento federal: o Hotel Tambaú (1968), projetado por Sérgio Bernardes; o Edifício Presidente João Pessoa, mais conhecido como “Dezoito andares” (1959) de Ulisses Burlamaqui; o Terminal Rodoviário de João Pessoa (1980), de Glauco Campelo; a Residência Cassiano Ribeiro Coutinho (1955), de Acácio Gil Borsoi; o Espaço Cultural da Paraíba (1980), de Sérgio Bernardes; e o Edifício-sede da Federação de Indústrias da Paraíba – FIEP em Campina Grande (1978-83), projetado por Cydno da Silveira e Amelia Gama.
Os artigos são ricamente ilustrados por fotografias, desenhos e imagens de modelos virtuais dos edifícios analisados. Seus autores, que se dedicam a criteriosas análises, são Nelci Tinem (Hotel Tambaú, com Fúlvio Pereira, e Residência Cassiano Ribeiro Coutinho, com Aristóteles Cordeiro), Márcio Cotrim (FIEP em Campina Grande), Germana Rocha (Terminal Rodoviário de João Pessoa e Espaço Cultural) e Carolina Chaves (“Dezoito andares”).
Pela qualidade e diversidade das contribuições que reúne, o livro organizado por Nelci Tinem e Márcio Cotrim se constitui em registro fundamental da história da arquitetura paraibana. No texto de apresentação do volume, os organizadores, modestamente, justificam a realização do livro pelo “desejo de compartilhar informações e conhecimento produzido ao longo de mais de décadas e meia na linha de pesquisa Arquitetura Moderna na Paraíba, no curso de graduação em arquitetura, no LPPM e no PPGAU/UFPB” (p. 11).
Mais do que isso, tudo leva a crer que “Na urdidura da modernidade” irá contribuir para um necessário entendimento da diversidade e da real difusão da arquitetura moderna no vasto território brasileiro e para a revisão de uma historiografia consolidada da arquitetura moderna brasileira que se restringe à produção dos arquitetos sediados em duas ou três cidades. Esperamos que, assim, os textos dedicados a tratar das primeiras experiências da arquitetura moderna brasileira passem a incluir nos seus discursos, junto com os projetos pioneiros de Gregori Warchavchik em São Paulo, o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, as obras de Luís Nunes no Recife e o conjunto da Pampulha em Belo Horizonte, os edifícios concebidos por Clodoaldo Gouveia e pela equipe da Diretoria de Viação e Obras Públicas (DVOP) da Paraíba.
Carlos Martins, no seu texto de 1988 incluído no livro, afirma que é função da história da arte “eleger marcos, afirmar valores, reforçar tendências, contribuir para o esquecimento ou a institucionalização de projetos, autores ou escolas”. Que este livro – e os que certamente o seguirão, como já prometem os organizadores na sua apresentação – tenham também como função “participar do processo permanente de ressemantização” do próprio campo disciplinar que analisa (p. 143).
notas
1
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2008, p. 42-49
2
SILVA, Maria Angélica da. Arquitetura moderna: a atitude alagoana. Maceió, Sergasa, 1991.
sobre o autor
Nivaldo Vieira de Andrade Junior é arquiteto e urbanista, Mestre e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É Professor da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.