Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.
Jack Kerouac
Um artigo do professor Wilmar Marçal, da Universidade Estadual de Londrina, foi publicado no Jornal de Londrina no dia 9 de novembro de 2011, na seção “Ponto de Vista”. O mais interessante nele não é a expressão de um tipo de pensamento utilitarista e ordeiro, que se oporia à baderna e falta de civismo de estudantes, mas justamente os elementos de um ideário fascista que contém. Alerto para o fato de que não utilizo a expressão “fascista” para tentar ofender alguém, como é usual, mas como um conceito político. Portanto, o objetivo deste texto é refletir sobre este conceito.
O artigo mencionado, que foi publicado na esteira dos acontecimentos da pequena rebelião estudantil na USP, é um exemplo de opiniões que estão pululando com frequência no ambiente web, principalmente nas redes sociais. Elas geralmente impingem aos estudantes toda espécie de anátema de maneira raivosa. Algumas pessoas, tentando compreender essas opiniões, apressadamente, rotulam-nas de direita ou ultradireita. Mas não são. Elas são tipicamente fascistas e tomo esta expressão por uma forma particular de pensamento e práticas políticas, como procuro demonstrar no que segue.
No artigo, podemos observar algumas afirmações que denotam como funciona o pensamento fascista de modo diferente da ideologia da direita. O primeiro não tem uma ideologia formada, enquanto a segunda se caracteriza por um conjunto de ideias que se pretende coerente. Na realidade o fascismo é um compósito de ideias que numa ideologia, de direita ou de esquerda, seriam contradições dos termos, como, por exemplo, o nome inicial do partido nazista, “Partido Nacional-Socialista”. Ora, sabe-se que não é possível um socialismo nacional, tendo em vista que um anula o outro.
No pensamento de direita encontramos desde liberais a nacionalistas. Podemos observar que tanto uns como os outros são integradores, quer dizer, para os liberais é suficiente que os indivíduos aceitem as regras do mercado e da política burguesa para que esteja tudo bem. A globalização da economia mostra-nos que o liberalismo não tem fronteiras nacionais ou raciais, pois a sua pretensão é a expansão contínua. Percebemos tal prática na sua forma política, usando como exemplo o partido do ex-presidente da França, Nicolas Sarkozy. A UMP tem militantes descendentes de africanos, das Antilhas e de imigrantes das mais diferentes nacionalidades, como o próprio Sarkozy, filho de húngaros, isto quer dizer, desde que as ideias liberais sejam aceitas, todos são bem vindos.
Os nacionalistas, por seu turno, também são integracionistas. Basta que os indivíduos aceitem a nacionalidade para fazer parte dela. Isto ocorre, por exemplo, com o partido Frente Nacional, da França, que não deseja imigrantes ilegais, porém nas suas fileiras constam muitos descendentes de estrangeiros. Para informação: há poucos anos, os militantes neonazistas foram expulsos do partido. O próprio fundador da FN, Jean-Marie Le Pen, afirma que o seu partido é de centro, recusando qualquer herança fascista.
Já o fascismo, como disse acima, possui um ideário confuso. Ele recusa qualquer rótulo político e afirma estar acima dos partidos. Tem como principal fundamento um individualismo extremo, logo, partidos organizados de modo tradicional não o satisfazem. Prega ordem e tradição, porém, é contra as instituições estabelecidas porque as considera permissivas com “desordeiros”, “drogados”, “criminosos”, “políticos corruptos”, “religiosos decadentes e fracos”. A ordem que preconiza é o que ele próprio entende por ordem, quer dizer, é de caráter particular, essencialmente militar (daí a nostalgia de alguns do período da ditadura militar no Brasil, quando dizem que aquela época era boa, pois bandido ia para a cadeia ou era morto, esquecendo que a criminalidade era tão alta quanto agora e a polícia extremamente corrupta e violenta). Por isso, os fascistas gostam de uniformes, ordens unidas, desfiles, bandeiras, símbolos e armas.
Geralmente o fascismo é composto por ideias que não precisam de elaboração, pois não operam com conceitos. Daí, os fascistas imputarem àqueles que consideram seus inimigos todos os males que um povo, uma nação ou uma classe sofre. Na realidade fabricam inimigos que são imagens de seus temores mais atávicos, mais profundos: o estranho, o vagabundo, o comunista, o estrangeiro, enfim, todos aqueles tipos que frequentam os temores infantis. Para os fascistas, estes outros estão o tempo todo tramando contra a boa ordem, a tradição, a família. Imaginam que há um complô para impor um mundo de ponta cabeça, porém eles estão vigilantes, prontos para denunciar as suas maquinações.
As inquietações, angústias, infelicidades são atribuídas a inimigos. Trata-se daquilo que Raoul Girardet chamou de “ordem de explicação”, quer dizer, tudo passa a ser explicado por uma “lógica aparentemente inflexível” (1) que se reporta a uma causa. O inimigo – neste caso, os estudantes de Ciências Humanas – tem uma vontade de subverter a ordem. Vejamos esta afirmação que consta no artigo em questão, utilizando-a como exemplo: “[os estudantes] fazem festas para comemorar o nada, e o inútil, fumam maconha por quase todo o campus e deixam o cabelo e barba crescerem para homogeneizar o fenótipo de guerrilheiros. Desafiam as leis alegando perseguição da polícia e exigindo liberdade à contravenção” (2). Esta descrição é exemplar desses “velhos terrores infantis e sua persistência tenaz através dos pesadelos da idade adulta” (3). É sintomática a utilização no artigo da palavra “fenótipo” retirada do vocabulário das teorias raciais do século XIX, quer dizer, esses estudantes têm um tipo físico determinado pelo meio. Podemos comparar a descrição dos estudantes com a figura presente no cartaz do filme Judeu Süss.
Ao demonizar o inimigo o pensamento fascista tira a sua humanidade, pois ele age procurando atingir objetivos escusos e dissimula a sua atividade, dando ares de normalidade. Ele é essencialmente mau, como se pode constatar pelas suas atividades como o artigo nos mostra: “nas universidades públicas brasileiras esses sequazes de Guevara encontram condições propícias para se multiplicarem”. Isto quer dizer que estes “sequazes” – pessoas que pertencem ao “bando” de Che Guevara – já estão prontos, não teriam passado por alguma formação, em suma, nascem desse jeito, ou melhor, tem o fenótipo.
No entanto, o pensamento fascista está alerta, denunciando os maus elementos: “Adentram nos cursos considerados fáceis por pouca procura, sobretudo nas Ciências Humanas, vivem uma graduação, depois uma pós-graduação e mais adiante outra graduação. Em síntese: são predadores do dinheiro público por dez anos consecutivos, vivendo em moradia estudantil e comendo quase de graça nos restaurantes universitários”. A denúncia traz à luz esses agentes do mal. O fascismo está sempre vigilante. É o que se pode chamar de cultura do ódio. Cultiva o ódio contra um inimigo, imputando-lhe as causas das mazelas sociais.
Nesse aspecto, basta estigmatizar os maus para se tornarem facilmente identificáveis (barbas, cabelos, sujos), vejamos: “São hematófagos, mal cheirosos e arrogantes”. Quer dizer, sugam o sangue do corpo social, fedem e ainda por cima, são soberbos. Outra representação típica do fascismo é possível ver em “O judeu eterno”, cartaz de uma exposição nazista em Munique, de 1937.
Estando identificado, não será mais possível ao inimigo se esconder. Pois, segundo Marçal, “o verdadeiro estudante brasileiro tem família, princípios, disciplina, ideias e ideais”, quer dizer, o falso estudante, o vampiro, não poderá mais se esconder entre os bons. Ele está visível.
Este tipo de pensamento se vale de ideias simples para se expandir. O problema não está nelas existirem, mas no fato de serem simples. Assim cooptam facilmente pessoas desavisadas que vêm nessas ideias uma busca de ordem e de ajustamento do mundo. Muitos jovens acabam aderindo a este tipo de ideário porque carece de profundidade. Ele não é elaborado, não requisita leituras e reflexões, comparações e análises, entendimento e interpretação, bases das Ciências Humanas. Daí a incompreensão das atividades acadêmicas das Humanidades que são tomadas pelo pensamento fascista por um tipo de vagabundagem e vampirismo, noções que muitos jovens desavisados acabam aceitando como verdade.
A cooptação de setores sociais por este tipo de pensamento não é de agora. Quando Luís Bonaparte deu o golpe de Estado, em 1848 na França, ele utilizou o temor da burguesia, da Igreja, da pequena e média burguesia com relação a uma possível revolução proletária, para fazer uma ampla aliança contra a república que estava instalada e legitimamente aceita e utilizando como tropa de choque o lumpemproletariado (termo utilizado por Karl Marx, no seu texto O 18 Brumário de Luís Bonaparte, para definir uma fração de classe que poderia ser traduzida por escória ou ralé, pois não fazem parte do proletariado, nem da pequena e média burguesia). Assim também o fez Hitler, ele mesmo oriundo do universo lúmpem, em 1933. Temendo os comunistas, a burguesia quis acreditar que o partido nazista seria o defensor do capitalismo, ledo engano. Os nazistas desprezavam a burguesia justamente por ser permissiva com relação ao judeu. A ideia era fazer o capitalismo trabalhar para o partido e não o contrário. O mesmo ocorreu com parte dos trabalhadores e de amplos setores da sociedade alemã que, sentindo-se acuados pela crise econômica e social, acabaram acreditando que o fascismo traria ordem e empregos.
O fascismo, como ideário de uma fração social que não está claramente identificada com uma classe, deseja eliminar os elementos impuros da sociedade. Basta, por exemplo, no caso de estudantes hematófagos, secar os recursos públicos para sua própria manutenção: corte de bolsas, de restaurantes estudantis baratos, de moradias estudantis e dificultar o ingresso aos cursos superiores. Para aqueles recalcitrantes, cadeia!
No caso das pessoas religiosas, a cooptação é feita pela crença de que o fascismo defenderá a religião. Este foi o caso da Igreja Católica que aderiu facilmente ao nazismo alemão e ao fascismo italiano, acreditando que eles a defenderiam do ateísmo comunista. Outro engano. O fascismo se vale do ódio para se estabelecer. Hitler jamais foi religioso. O que ele respeitava era a Igreja como organização e não os seus fundamentos religiosos, considerados como um conjunto de ideias de fracos, pois prega o perdão dos inimigos e, quando agredido, o cristão deve virar a outra face. Ora, o inimigo sendo o mal deve ser atacado absolutamente, sem perdão, sem misericórdia. Não se deve esquecer que Testemunhas de Jeová foram aprisionados em campos de concentração nazista.
O fascismo, ao demonizar seu adversário, torna-o impróprio para viver entre os bons. Portanto, só resta erradicá-lo. O que é diferente deve ser excluído: o tatuado, o hippie, os que portam piercings, o beatnik, o cigano, o homossexual, o artista, o poeta, enfim, todos aqueles que manifestam uma diferença com relação ao tipo idealizado por esse pensamento.
A origem do pensamento fascista está, como vimos acima, numa fração de classe que Karl Marx chamou de lumpemproletariado. Este vive próximo da classe operária, porém, ideologicamente se aproxima da burguesia. Como não consegue viver como os burgueses, desenvolvem um rancor contra eles e também com relação à classe operária, vendo nela sinais de fraqueza porque procuram uma cultura específica e não os apoiam nas suas lutas. Porém, a ralé somente encontra expressão no momento em que indivíduos da elite a apoia. Esses elementos da elite se sentem atraídos pelo radicalismo político da ralé e pretendem lhe dar uma ordem e um ideário. É por isso que vamos encontrar em muitos políticos pensamento e práticas de lúmpem.
Vejamos a análise de Hannah Arendt sobre a aliança entre a elite e a ralé: “é difícil perceber onde as organizações da ralé do século XIX diferem dos movimentos de massa do século XX, porque os modernos líderes totalitários não diferem muito em psicologia e mentalidade dos antigos líderes da escória, cujos padrões morais e esquemas políticos, aliás, tanto se assemelhavam aos da burguesia” (4). O lúmpem é o protótipo do homem de massa que segue opiniões feitas de lugares comuns que aparecem aos seus olhos como profundamente morais e ordeiras, justamente aquelas que indivíduos da elite pregam.
Este ideário se vale da crença e do temor das pessoas comuns, atiçando os ódios e estabelecendo culpados pelos males individuais e sociais. No entanto, o fato de ser compósito não lhe permite organizar um movimento, pois este só é possível através de um líder carismático que consiga aglutinar as pessoas em torno de si, não em torno de uma ideologia. Daí o individualismo extremo do fascista. De qualquer forma, no momento, o fascismo brasileiro carece de um líder desse tipo.
A questão neste texto não é rebater as opiniões fascistas acerca dos estudantes da USP, ou das Ciências Humanas em geral, mesmo porque, o embate não vai alterá-las, pelo contrário, somente vai instigá-las ainda mais. O fascismo utiliza a crítica como prova do que fala, tentando demonstrar que seus inimigos o atacam porque fala a verdade. O objetivo é apontar, mesmo que rapidamente, a origem deste tipo de pensamento e como ele funciona. Assim, compreendendo a sua engrenagem, podemos pensar em ações que possam combater esse ideário.
notas
1
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 55.
2
MARÇAL, Wilmar. Estudantes não, terroristas. Jornal de Londrina. Seção “Ponto de Vista”. 9 nov. 2011. Disponível em <http://wilmarmarcal.blogspot.com.br/2011/11/estudantes-nao-terroristas.html>.
3
GIRARDET, Raoul. Op. cit., p. 57.
4
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
sobre o autor
André Luiz Joanilho é professor associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina e professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná – UFPR.