Na sala de estar da casa de meus pais havia duas cadeiras em que ninguém, nem mesmo meu pai, ousava se sentar quando seus legítimos donos lá estavam. Uma era a “cadeira do Sérgio”, uma poltrona verde de pés palito que ficava junto à porta do terraço e da qual Sérgio Buarque de Holanda expulsava sem dó qualquer desavisado que nela ousasse se sentar. A outra era uma cadeira feita de ripas arredondadas de madeira, recobertas por tiras de couro entrelaçadas. Adquirida na Unilabor, de Geraldo de Barros, era um belo móvel, embora não tão imponente quanto sua vizinha, a poltrona verde. Referíamo-nos a esta como a “cadeira do Paulo”, porque era invariavelmente ocupada por Paulo Mendes de Almeida quando nos visitava, o que acontecia pelo menos uma vez por mês. Os demais convidados, fossem quem fossem, acomodavam-se onde dava. Eu, que podia ficar acordada “até mais tarde” quando Sérgio e Paulo estavam presentes para assisti-los (em todos os sentidos), me instalava num banquinho entre os dois para, a pedidos, trazer-lhes petiscos, gelo e, principalmente, a garrafa de uísque. Se Sérgio me parecia a pessoa mais brilhante, engraçada e fascinante da face da terra, Paulo não lhe ficava atrás – sem a mesma dose de irreverência, talvez, mas com a vantagem da doçura e afetividade. Seu lugar de honra no reino residencial demonstrava que eu não era a única a pensar assim.
Poeta, contista, crítico de arte, jornalista, dono de vastos conhecimentos, memória prodigiosa e humor afiado, Paulo Mendes da Almeida era também exímio imitador e contador de casos. Antonio Candido ri com gosto ao relembrar seus “números impagáveis”, com destaque para a personificação de um padre italiano fictício. Faziam sucesso também suas imitações de Mário de Andrade e do sotaque de Lasar Segall. Suas explicações sobre a renúncia de Jânio Quadros, proferidas em primeira pessoa como se ele mesmo fosse o ex-presidente, levavam às lágrimas de riso toda a audiência, inclusive eu que, criança, mal sabia quem era Jânio. Apaixonado por música, Paulo adorava peretas e canções italianas, que sabia cantar de cor. Como se não bastasse, era educado, gentil e atencioso com todos, sobretudo com as mulheres, a quem costumava dar apelidos galantes: a que tinha longos cabelos loiros era Verônica Lake; a morena risonha, Carmen de Espanha; a de olhos puxados, princesa Soraya; e por aí afora. Como não gostar de alguém assim? Devia ter lá seus defeitos, claro, que meus olhos ainda não contaminados pelo senso crítico da maturidade (bons tempos!) não conseguiam enxergar.
Paulo Mendes de Almeida gostava de gente e teve muitos amigos. Geralmente ponderado e conciliador, sabia também ser firme, como o foi no episódio da transferência do acervo do MAM para a USP, em que lutou pela continuidade do museu junto a um punhado de idealistas. Neto do advogado João Mendes de Almeida (o João Mendes da praça em frente ao Fórum de São Paulo) e filho do também advogado, poeta e boêmio Ângelo de Almeida, Paulo se formou em direito pela Faculdade do Largo de São Francisco e se aposentou como procurador chefe do Departamento Jurídico do Estado. Um de seus irmãos, Joaquim Canuto Mendes de Almeida, foi jurisconsulto famoso; outro, o elogiado poeta Fernando Mendes de Almeida, era amigo próximo de Mário de Andrade. Paulo foi casado por cinquenta e cinco anos com Maria Aparecida de Freitas. Os dois formavam um desses casais inseparáveis e aparentemente tão sintonizados que, com o passar dos anos, começam a se parecer um com o outro. Eu não devia ser a única a notar o fenômeno neles, pois lembro perfeitamente uma noite, em nossa casa, em que uma convidada, em geral educadíssima, tomou umas doses a mais e começou a chamar Paulo de Aparecido com tamanha insistência e naturalidade que nem nossas risadas, primeiro, nem nossos olhares constrangidos, depois, conseguiram inibir.
Paulo Mendes publicou seu primeiro livro aos 23 anos. Cartazes foi lançado em 1928, antecipando em vários anos os nossos mais conhecidos poetas concretos. Vinha embalado numa capa de fundo negro, anunciando em branco produtos como chocolate, guaraná e os poemas que continha. Um deles, “Mamãe preta”, foi musicado por Heckel Tavares. No ano seguinte, publicou seu primeiro texto num jornal de bairro, o Alvorada, e logo começou a colaborar com outros periódicos, entre eles o Jornal de Notícias, a Folha da Manhã e a revista carioca Para Todos. Nos anos 1930, por influência dos amigos Arnaldo Barbosa, Paulo Rossi Osir e Vittorio Gobbis, interessou-se por artes plásticas. Aproximou-se de Segall, Tarsila, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e todos os jovens artistas da época. Frequentou os salões de d. Olívia Guedes Penteado e, em 1932, foi um dos fundadores da SPAM, a Sociedade Pró-Arte Moderna, que agitaria a cidade com suas exposições e bailes fabulosos. E, como não era homem afeito a polêmicas, ajudou a fundar também a dissidência “menos burguesa” da SPAM: o Clube de Artistas Modernos (ou CAM), de Flávio de Carvalho. Era a época em que a cidade fervilhava com os grupos, clubes e associações artísticas, espécimes pré-históricos dos coletivos atuais.
Em 1937, por insistência de Rossi Osir, Paulo Mendes escreveu (mas não assinou) seu primeiro texto sobre artes plásticas: a apresentação do catálogo da primeira exposição da Família Artística Paulista. Publicou em seguida seu primeiro artigo sobre o tema no Diário da Noite, dando início à longa carreira de crítico de arte, entremeada, na década de 1940, com a de crítico literário. Sua militância artística incluiu, naqueles anos, andanças pelo interior do estado de São Paulo para premiar jovens talentos, entre eles, para dar só um exemplo, o primitivo José Antônio da Silva, descoberto em São José do Rio Preto.
Nos anos 1950, teve início a sólida e duradoura ligação de Paulo Mendes de Almeida com o Museu de Arte Moderna de São Paulo. A parceria profissional com Francisco Matarazzo Sobrinho foi estreitada durante os preparativos para o quarto centenário da cidade, quando Paulo participou da Comissão de Cultura e foi à Europa representá-la. Em 1958, tornou-se diretor artístico do MAM e, a partir do ano seguinte, acumulou o cargo com o de secretário da Bienal. No início da década de 1960, integrou o grupo a favor da continuidade do museu, ao lado de Oscar e Arnaldo Pedroso d’Horta. Continuou tão ou mais atuante na chamada segunda fase do MAM, principalmente na organização dos Panoramas de Arte, que ajudaram a reconstituir o acervo do museu. Participou do júri de três bienais e teve importante participação na formação do Acervo Artístico Cultural dos Palácios. Não fosse por ele e Oswald de Andrade Filho, o Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão, talvez não tivesse o surpreendente acervo modernista que tem. De 1968 a 1970, Paulo voltaria a percorrer várias cidades paulistas junto com Arcangelo Ianelli e Oswald de Andrade Filho, muitas vezes em carro dirigido por Aparecida, para coordenar os Concursos Estímulos patrocinados pela Secretaria de Cultura e conceder bolsas a jovens artistas.
Paulo Mendes possuía uma vasta documentação, que incluía cartas, fotos, manuscritos e catálogos expositivos. O que sobreviveu foi resgatado pelo MAM em 2001. Possuía também uma bela coleção de quadros, com desenhos e gravuras de Miró, Picasso e Braque, obras de Segall, Volpi, Rebolo, Di Cavalcanti, Tomie Ohtake, Fukushima, José Rezende, Aldemir Martins, Ianelli e outros artistas brasileiros. Colecionava, além de quadros, peças de arte sacra e armações de óculos – talvez por ter usado muitos, desde pequeno. No início dos anos 1980, uma tragédia mudou a vida e a disposição desse homem que havia feito do olhar a sua principal relação com o mundo: um deslocamento de retina prejudicou-lhe gravemente a visão. Mudei-me para o Rio e o vi poucas vezes em seus últimos anos. Eram notórios seu isolamento e depressão. Na última vez em que estivemos juntos, mostrou-me várias caixas de papelão enfileiradas num corredor, onde havia reunido toda documentação referida acima. Fumava um cigarro atrás do outro, à espera de que o órgão público para o qual havia doado as caixas viesse buscá-las. Como meu pai e Sérgio haviam morrido poucos anos antes, deixando material semelhante, sugeri ingenuamente que reuníssemos a papelada dos três e propuséssemos a abertura de uma sala num centro cultural, arquivo público ou coisa do gênero. Paulo deu risada, me chamou de jovem sonhadora e disse que não havia interesse por esse tipo de coisa em nosso país. Enfiei minha violinha romântica no saco e ele morreu alguns meses depois, no início de 1986, em decorrência de problemas pulmonares (e ninguém jamais foi pegar aquelas caixas). Alguns dias antes de sua morte, havia sido a minha vez de rir vingativamente ao ler numa entrevista concedida a Ivo Zanini, no Estadão, como Paulo Mendes definia a si próprio: “Acima de tudo, acho que fui poeta, um sonhador”.
Cresci, pois, acreditando que, a exemplo do que ocorria no reino doméstico, Paulo Mendes de Almeida tinha assegurado um lugar de honra no panteão dos intelectuais paulistas. O que terá acontecido para que seu nome seja, hoje, tão pouco conhecido fora dos muros dos museus de arte e algumas universidades? É bem verdade que as coisas mudaram muito e que, nesses nossos tempos espetaculosos, há pouco tempo e espaço para rememorar figuras modestas e reservadas como ele. Passei anos achando que, devido à sua dedicação apaixonada à “causa modernista”, Paulo Mendes de Almeida talvez tivesse agido muito e escrito pouco. Mas, ao pesquisar para esta reedição, encontrei tantos textos de sua autoria em jornais, revistas, catálogos e livros que mudei de ideia. Como morreu praticamente cego, a despeito das várias cirurgias na tentativa de reaver a visão, pode ser que tenha lhe faltado tempo para organizar a própria produção. Talvez um pouco disso tudo.
A arte e os artistas brasileiros devem muito a Paulo Mendes de Almeida. Penso que De Anita ao Museu, testemunho registrado na prosa fluente e aparentemente simples do crítico-escritor, deveria ser suficiente para garantir-lhe o lugar que merece na nossa história.
nota
NE — texto publicado como apresentação do livro resenhado.
sobre a autora
Ana Luisa Martins é redatora, tradutora e editora. Tem contos publicados n’O Estado de S. Paulo e na revista Escrita. É autora de Aí vai meu coração, (Planeta, 2003, e Global 2001), e organizadora de Luís Martins: um cronista de arte nos anos 1940 (MAM-SP, 2009, vencedor do prêmio Sergio Milliet-ABCA). Colaborou com o jornalista Paulo Markun nos livros Cabeza de Vaca (Companhia das Letras, 2009) e Brado retumbante (Benvirá, 2014), e com o economista José Pastore, em Antônio Ermírio de Moraes: memórias de um diário confidencial (Planeta, 2013). Traduziu, entre outros, o romance Manhattan Transfer, de John dos Passos (Benvirá, no prelo). Coordenou a reedição do livro De Anita ao Museu, de Paulo Mendes de Almeida, (Terceiro Nome, 2015).