Este trabalho de Elcio Gomes da Silva sobre os palácios originais de Brasília constitui exemplar pesquisa histórica na área de projeto de edificações. Com seu estudo, sedimenta-se um método, define-se um campo de interesse e, a partir dessa leitura, podem ser alteradas as fronteiras de atuação do arquiteto.
O método de análise reflete a estrutura produtiva das obras – concepção, desenvolvimento, construção –, após contextualizá-las devidamente em relação a seus precedentes diretos, seus autores e seu tempo. Analisam-se então os elementos construídos tal como foram divididos em sua concepção. Cada um destes momentos é fartamente documentado em cuidadosos redesenhos interpretativos, acompanhados de reprodução ou listagem de desenhos originais.
Dentro do processo de construção de uma narrativa histórica, separar e disponibilizar estes documentos significa produzi-los como fontes, colocando-os num mundo a que antes não pertenciam. Embora a obra de Niemeyer seja talvez a mais publicada e analisada de nosso país, o aprofundamento na documentação a ela integrada ainda não atingiu entre nós um nível equivalente ao usual no caso de grandes mestres internacionais da mesma importância – de quem se conhecem até mesmo os cadernos de anotações pessoais. Elcio demonstra, sem fetichismo, ser possível tal refinamento entre nós.
Ao tratar das diversas etapas em que se desdobraram a concepção e o desenvolvimento dos projetos das edificações, abre-se a porta para um tipo de pesquisa diretamente relacionada à prática contemporânea. Define-se um campo de interesse próprio do arquiteto preocupado com os meandros envolvidos na compatibilização de disciplinas complementares, com as possibilidades técnicas oferecidas pelos materiais e pela mão de obra disponíveis, e com os prazos e demandas dos agentes e instituições envolvidas.
Se as obras de Brasília estão no vértice de uma mudança radical no modo de projetar e de desenvolver os projetos de Oscar Niemeyer, conhecer os valores em jogo é essencial àqueles que desejam aprender com elas. Trabalhos como este humanizam os mestres da arquitetura, normalmente analisados por meio de textos enigmáticos e publicações de desenhos sintéticos de pureza artística inatingível. Ver Oscar Niemeyer por meio de seus documentos reais de trabalho torna sua prática palpável, concreta, passível de ser ensinada e aprendida por seus pares.
Nessa área, temos aqui uma especial amostra da extensão da contribuição do calculista Joaquim Cardozo no trabalho de Niemeyer. Como fica claro na análise, o nível de entrosamento entre as equipes de arquitetura e de engenharia era bastante mais profundo que o usual na prática corrente. Por um lado, a forma final de importantes elementos estruturais – como as colunas do Palácio do Planalto ou do Palácio da Alvorada, ou o perfil das cúpulas do Palácio do Congresso Nacional – foi dada somente no projeto de Joaquim Cardozo, que fazia questão de representá-las com precisão em equações de geometria analítica.São elementos que foram apenas esboçados no projeto de arquitetura. Por outro lado, é Nauro Esteves, arquiteto-chefe da equipe de Niemeyer, aquele a rubricar e aprovar todas as pranchas do projeto de estruturas.
Indo mais longe, confrontando-se a produção textual de Cardozo e de Niemeyer anterior e posterior aos trabalhos de Brasília, infere-se que o forte componente idealista do pensamento abstrato do engenheiro talvez tenha tido ascendência sobre a sensibilidade do arquiteto naquele momento, para então modificá-la definitivamente. Afinal, foi a partir das obras de Brasília que os edifícios de Niemeyer não mais se exprimiram “por seus elementos secundários, mas pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original”, como ele próprio colocara em seu lapidar Depoimento de 1958.
Compreende-se então que parte da mudança no método de trabalho de Niemeyer passava também por uma mudança de escopo do projeto de arquitetura, agora menos afeito a detalhes arquitetônicos de revestimento, por exemplo, e mais aberto à integração com as demais disciplinas. Isso não significa, em absoluto, desleixo para com o acabamento da edificação – como argumentam os críticos simplistas –, mas sim um processo de síntese em que os elementos são desenhados em seus princípios compositivos, e não em sua forma final, deixando mais decisões em aberto para os demais agentes envolvidos no projeto e na construção. A ênfase de Niemeyer nas estruturas surgiu juntamente com a opção por volumes relativamente simples e grandes coberturas. Internamente, a expressão espacial ocorria por meio de jogos de níveis e de sistemas indiretos de iluminação e de ventilação.
Em face das suas inúmeras possibilidades de especialização, atualmente cada vez menos o arquiteto assume para si a responsabilidade de coordenação e supervisão dos trabalhos de engenharia. Tal omissão não apenas compromete a qualidade de grandes obras – carentes de integração qualificada entre estrutura e arquitetura, por exemplo – mas também exclui os arquitetos de todo um mundo de pequenas obras em que a responsabilidade integral pelo projeto é cobrada do profissional. Por sua vez, no campo da engenharia, há cada vez menos solo comum com a arquitetura. Raros são os profissionais da área de estruturas interessados nos valores plásticos e construtivos em jogo, e o arquiteto passa a ser visto apenas como um obstáculo a ser superado.
Com as descobertas apresentadas por esta pesquisa, ora disponibilizadas ao público pela Edições Câmara, abrem-se novas fronteiras de atuação profissional aos projetistas de hoje e cria-se um interessante e necessário campo de diálogo entre diversas áreas. a qualidade do trabalho de levantamento e análise está à altura da importância dos edifícios de que trata.
nota
NE — o presente texto foi originalmente publicado como prefácio do livro.
sobre o autor
Danilo Matoso Macedo é graduado em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1997), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004) e Doutorando em Arquitetura e Urbanismo na UnB. É arquiteto da Câmara dos Deputados desde 2004. É fundador (2007) e coordenador do Núcleo Docomomo Brasília. Escreveu o livro Da matéria à invenção: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais, 1938-1955 (2008); e organizou com Fabiano Sobreira o livro Forma estática – forma estética: ensaios de Joaquim Cardozo sobre arquitetura e engenharia (2009). É fundador e editor da revista de Arquitetura e Urbanismo MDC.