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Enfoca os valores poéticos da obra do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, a partir da análise de sua correspondência com os também poetas Manuel Bandeira, pernambucano, e Carlos Drummond de Andrade, mineiro.

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This article focuses the poetic values of the poet from Pernambuco, João Cabral de Melo Neto, analyzing his correspondence with the poets Manuel Bandeira, from Pernambuco, and Carlos Drummond de Andrade, from Minas Gerais.

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LORDELLO, Eliane. Correspondência e poesia. As cartas de Cabral para Bandeira e Drummond. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 166.01, Vitruvius, out. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.166/5758>.


A carta sempre foi o mais sofisticado instrumento de comunicação dos seres humanos.
Paulo Francis, Folha de S.Paulo, 3 maio 1990 (1)

Poesia – pesquisando sua etimologia, Steiner (2) remete-nos à sua origem grega em poiesis, como “ação de fazer algo”, numa definição que a caracteriza como um ato. Na língua portuguesa, a palavra poesia recebe tanto a acepção de “arte de escrever em verso” – na qual está clara a noção de ato – quanto o resultado dessa atividade em si mesmo: uma composição em versos. Em geral, nos sentidos que lhes são atribuídos pelos dicionários, a poesia é apresentada como uma composição cujo conteúdo exibe uma visão emocional e/ou conceitual no trato de idéias, sentimentos, impressões, sendo, na maioria das vezes, manifestadas via associações imagéticas. Num sentido figurado, ou por extensão, a poesia recebe também sentidos como entusiasmo criador, inspiração, encanto, atrativo. Recebe, ainda, acepções que a vinculam com o que desperta o sentimento do belo; que excita a alma; o que há de comovente nas pessoas ou coisas (3).

Outras acepções são encontradas no território da compreensão semiótica. O Dicionário de semiótica de Greimas e Courtés menciona a formulação de R. Jakobsen, que distingue entre as principais funções da linguagem, a função poética, a qual define como “a ênfase [...] posta na mensagem, por si mesma” (4). Esse dicionário apresenta a seguinte conclusão:

“Precisa-se, assim, o estatuto paradoxal do discurso poético: sintaxicamente, é um discurso abstrato, comparável por isso aos discursos praticados na lógica e nas matemáticas; semanticamente, é um discurso figurativo e, como tal, garantia de uma forte eficiência comunicativa. Não surpreende, pois, que o efeito de sentido que dele se depreende seja, como no caso do discurso sagrado, o da verdade” (5).

A correspondência, assim como a poesia, também tem uma forte característica comunicativa. A carta, forma de correspondência aqui abordada, é um veículo para a troca de ideias, impressões, conceitos, e é um terreno muito fértil para a reflexão entre escritores. A propósito, veja-se uma passagem da correspondência da poeta americana Elizabeth Bishop, que foi uma grande missivista. Em carta de 5 de setembro de 1953, para o casal Kit e Ilse Baker, ele pintor, ela escritora, encontra-se o seguinte pensamento de Bishop:

“Tenho pena das pessoas que não conseguem escrever cartas. Mas desconfio também de que eu e você, Ilse, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de fato trabalhando” (6).

Participando de vários livros, a correspondência é um recurso muito corrente na literatura, muitas vezes se convertendo, ela mesma, em literatura, caso da correspondência publicada de vários escritores. Um exemplo notável é a correspondência de João Cabral de Melo Neto com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, organizada por Flora Süssekind (7). Outro é a correspondência de Fernando Sabino e Clarice Lispector, intitulada Cartas Perto do Coração (8), em que os dois, então jovens escritores, conversam sobre a criação literária, lembranças pessoais e impressões de viagens. Outro exemplo modelar de correspondência entre escritores, no caso, ambos filósofos, está presente no livro Walter Benjamim: A história de Uma Amizade (9), em que o autor, Gershom Scholem, reproduz o texto de cartas trocadas entre ele e Benjamin.

Este texto debruça-se sobre a correspondência de João Cabral de Melo Neto com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, organizada por Süssekind, acima citada. O estudo  visa evidenciar, nessa epistolografia, os principais valores poéticos de João Cabral de Melo Neto, doravante chamado apenas João Cabral. Para tanto, faz-se a leitura completa das cartas, nelas destacando, pelo método o analítico-descritivo, as asserções e os comentários de João Cabral, Bandeira e Drummond sobre a construção poética cabralina. Antes, porém, de apresentar a análise das cartas, faz-se uma breve apresentação do poeta João Cabral. Conclui-se pela ideia de construção na poesia de João Cabral, sua materialidade para o poeta, sua feitura pelo planejamento.

O poeta

João Cabral de Melo Neto, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

O sobrinho era sensível,
tanto quanto ao romanceiro,
à atenção que ele assim dava
ao menino sem relevo,
em que se algo se notava
era seu tímido e guenzo,
seu contemplativo longo,
seu mais livro que brinquedo.

João Cabral de Melo Neto, Tio e Sobrinho

João Cabral de Melo Neto nasceu em 9 de janeiro de 1920 no Recife. Passou a infância nos engenhos de Poço do Aleixo, Pacoval e Dois Irmãos. Lugares onde seguramente já se esboçava o futuro poeta no menino contemplativo, afeito a livros mais que a brinquedos, como limpidamente conta o poema em epígrafe, dedicado à memória de seu tio, Manoel José da Costa Filho. Em 1938, começa a frequentar, em sua cidade natal, a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em torno de Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro. Toma seu primeiro contato pessoal com poetas já consagrados nacionalmente em 1940, quando, em viagem com a família ao Rio de Janeiro, conhece Murilo Mendes. Poeta mineiro, Mendes o  apresenta a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se reunia no consultório do também poeta Jorge de Lima.

Seu primeiro livro, Pedra do Sono, nome de um lugarejo em Pernambuco, é publicado em 1942. Em 1945, publica O Engenheiro, e é aprovado em concurso para a carreira diplomática, sendo nomeado em dezembro do mesmo ano.  Assume como vice-cônsul em Barcelona em 1947 e, em 1949, residindo na Catalunha e frequentando o estúdio de Joan Miró, escreve seu ensaio sobre esse pintor, que o faz publicar nesse mesmo ano, em português e acompanhado de suas primeiras gravuras de madeira. É removido para o Consulado Geral em Londres em 1950, e publica O Cão sem Plumas, livro do poema homônimo. Em 1952, é removido para o Brasil sob acusação de subversão. Escreve o poema “O Rio” em 1953, ano em que, colocado à disposição pelo Itamaraty enquanto responde a inquérito, trabalha como secretário de redação do jornal A Vanguarda, dirigido por Joel Silveira. Nesse mesmo ano, é arquivado o inquérito policial ao qual respondia.

Em 1956, a Editora José Olympio publica Duas Águas, reunindo seus livros anteriores, detidos sobre o rio Capibaribe; e os inéditos Morte e Vida Severina; Paisagens com Figuras e Uma Faca Só Lâmina. O poeta é novamente transferido para a Espanha, passando a residir em Sevilha. Sua carreira diplomática será marcada ainda pelas designações para as cidades de Madri, Brasília, Cádiz, Genebra, Berna e Dacar, mas será a Sevilha, cidade que o impressiona muitíssimo, que dedicará vários poemas.

O poeta torna-se “imortal” em 1969, tomando posse na Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a vaga de Assis Chateaubriand, jornalista a quem admirava desde a juventude e de quem habitualmente lia as crônicas. Ao longo de sua carreira, marcada por vários prêmios literários, inclusive o Jabuti de 1993 da Câmara Brasileira do Livro, publica vasta obra poética em que se destacam os títulos: Quaderna (1960), Museu de Tudo (1975), Agrestes (1985), Sevilha Andando (1990). Em 1999, sai pela editora carioca Nova Aguilar, sua Obra Completa, livro que constitui a referência principal da abordagem de sua poética neste artigo.

João Cabral passou seus últimos anos de vida no Rio de Janeiro, cidade com a qual nunca chegou a identificar-se e onde veio a falecer no ano de 1999, em seu apartamento na Praia do Flamengo.

Além da incessante busca da exatidão e da visibilidade, que colocam sua poesia em contato tão próximo com a arquitetura, e das ricas descrições paisagísticas e de urbanidade presentes em sua poética – que tão interessante a torna para aqueles que se ocupam da paisagem – é notável ainda em sua poesia, uma aproximação com a arquitetura pela busca da melhor forma para expressá-la e pela forte presença de ritmo. Um ritmo silencioso que aproxima poesia e arquitetura.

Faz parte do vocabulário do arquiteto esse ritmo, que se manifesta nas relações entre cheios e vazios, figura e fundo, texto e contexto das composições paisagísticas e arquitetônicas, para ficar em apenas alguns, de uma vastidão de possíveis exemplos. João Cabral sempre declarou seu gosto pela arquitetura moderna em função de sua simplicidade, e admitiu ter recebido profunda influência dos arquitetos modernistas Lincoln Pizzie e Le Corbusier, cujas concepções o inspiraram a fazer de sua poesia o que nomeou de “máquina de emocionar”. Bastante emblemático dessa influência em sua carreira, é o poema “O Engenheiro”, que segundo depoimento de seu irmão, Evaldo Cabral de Melo, trata-se da transformação do prédio da Secretaria da Fazenda de Pernambuco em poema-homenagem ao engenheiro Antônio Baltar, seu construtor (10).

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples
(11).

Finalmente, após essas considerações sobre as aproximações da poesia de João Cabral e a arquitetura, resta dizer que o poeta chegou a afirmar seu desejo de ser arquiteto.

Os valores poéticos na correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond

A epistolografia será aqui analisada na mesma ordem em que figura no livro de Süssekind, a saber: começando pelas cartas entre João Cabral e Bandeira, em ordem cronológica, passando depois para as cartas entre João Cabral de Drummond, igualmente em ordem cronológica.

Manuel Bandeira, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

Em carta a Bandeira, (Barcelona, 5/11/47), João Cabral afirma que o jogo é o seu conceito de poesia (12). Também em carta a Bandeira (Barcelona, 17/02/48), Cabral afirma seu ideal de poesia pelo uso do efeito autônomo  dos meios de expressão, e o faz pela comparação de dois modos de trabalho de Bandeira, como se pode notar na passagem abaixo:

“Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um ‘fato’, como você faz. Fato que v. comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra especial: antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão. E isso é tanto mais impressionante, porque ninguém mais do que v. é capaz também de tirar todos os efeitos da atitude oposta, isto é, do puro funcionamento desses meios. Você terá notado que meu ideal é muito mais este M. Bandeira do que aquele” (13).

Igualmente em carta a Bandeira (Hostales de Balenya, 20/07/48), João Cabral admite sua “absoluta incapacidade para o lado fonético da poesia”. A Bandeira  (carta de Barcelona, 3/12/49) o poeta conta estar fazendo “com muita preguiça e lentidão” um poema sobre o “nosso Capibaribe” (em nota, Süssekind informa tratar-se de O Cão Sem Plumas, que seria publicado em 1950). Explicando as condições da fatura do poema, acima descritas, o poeta confessa:

“A coisa é lenta porque estou tentando cortar com ela muitas amarras com minha passada literatura gagá e torre-de-marfim. Penso botar como epígrafe aqueles seus dois versos:

Capiberibe

 –  Capibaribe” (14).

 O poema final não chegou a ter essa epígrafe. Foi dedicado ao engenheiro e poeta Joaquim Cardoso e foi dividido em partes iniciadas por rubricas sinópticas, a primeira delas sendo “Paisagem do Capibaribe” (15). Embora não esteja falando especificamente de sua poesia, em carta a Bandeira (11/12/51) João Cabral reflete a propósito de artistas “universais” em contraponto aos “mais brasileiros”. Trata-se de uma reflexão reveladora de um valor para o poeta. Por este motivo, tal comentário será transcrito a seguir.

“Hoje eu compreendo melhor como para qualquer artista brasileiro deixar de ser brasileiro para ser ‘universal’ significa empobrecimento. Depois de alguns anos na Europa pude verificar o desinteresse que o euorpeu – i.e., o leitor universal – experimenta diante de nossos autores universais: Lúcio Cardoso, Cecília Meireles, Schimidt, etc. (estou dizendo isso em segredo). E ao mesmo tempo o entusiasmo que certos autores mais brasileiros (M. Bandeira, M. de Andrade, etc.), apesar de difíceis, despertam. Essa foi uma experiência que nos ajudou muito a compreender muitas coisas” (16).

Vale notar que o próprio João Cabral pode ser considerado, na categoria “mais brasileiro” por ele colocada. Veja-se, por exemplo, que mesmo quando fala de Sevilha, João Cabral o faz com um olho no Recife, cidade, que, em sua poética, se aproxima de Sevilha. A próposito dessa aproximação, cumpre destacar o poema A Barcaça, em que o poeta une as duas cidades em uma só embarcação. Vale também reproduzir a nota de Süssekind sobre a temporada de João Cabral em Sevilha:

“Sobre a temporada em Sevilha diria Cabral em depoimento a Cristina Fonseca: ‘Sevilha foi para mim uma revelação. É a cidade, depois do Recife, em que gostei mais de viver. É uma cidade íntima. Você anda nas ruas de Sevilha como se estivesse andando no corredor de sua casa. Não é uma cidade dinâmica, barulhenta, cheia de automóveis (Revista Bravo!, n. 2)” (17).

Carlos Drummond de Andrade, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

Em carta para Carlos Drummond de Andrade (Recife, 23/11/41), ocasião do envio ao poeta mineiro de cópia dos poemas de Pedra do Sono, João Cabral faz a seguinte confissão:

“Sinto que não é esta a poesia que eu gostaria de escrever; o que eu gostaria é de falar numa linguagem mais compreensível desse mundo de que os jornais nos dão notícia todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta; uma coisa menos ‘cubista’” (18).

João Cabral tinha grande apreço pelos jornais, sendo estes periódicos presença várias vezes notada em sua poética. Exemplar disso é o poema O Capibaribe e a Leitura. Neste poema, o poeta associa o rio a um jornal, tomando assim a mais a precisa imagem de um testemunho documental da vida cotidiana. A um só tempo, registro e informação da vida diária, a mancha do jornal é nesse caso comparada ao rio, como se fora este, uma folha volante que registra as vivências dos lugares por onde passa e dos quais informa em seu contínuo renovar da paisagem. Desse modo, o poeta evoca no rio, algo que já dissera do jornal, quando o encarnou na emblemática figura de Maria, do poema Os Três Mal Amados.

“RAIMUNDO: Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente” (19).

Em resposta a carta acima, de João Cabral, Drummond escreve carta (17/01/42 ) em que estimula o poeta pernambucano a publicar, e faz a seguinte avaliação sobre a poesia cabralina:

“É certo que sua poesia tem muito hermetismo para o leitor comum, mas se v. a faz assim hermética porque não pode fazê-la de outro jeito, se você é hermético, que se ofereça assim mesmo ao povo. Ele tem um instinto vigoroso, quase virgem, e ficará perturbado com as suas associações de coisas e estados de espírito, que excedem a lógica rotineira” (20).

Relembra-se, aqui, a título de ilustração, o poema de abertura de Pedra do Sono:

POEMA

Meus olhos têm telescópios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto (21).

Ainda estimulando João Cabral, Drummond relativiza a fase por que passava a poesia cabralina nos seguintes termos:

“Eu acredito de certo que sua fase poética atual é fase de transição que v., com métodos, inclusive os mais velhos, está procurando caminho, e que há muita coisa ainda a fazer antes de chegarmos a uma poesia integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e que ao mesmo tempo o supere. Não devemos nos desanimar com isso” (22).

Em uma alusão ao elo entre poeta e poesia, Drummond associa a presença física de Cabral aos poemas Anfion e Antiode (da obra cabralina Psicologia da Composição). Eis as palavras  do poeta mineiro para o poeta pernambucano (Rio, 30/ 07/48).

“A verdade, João, é que v. continua presente em conversas e pensamentos. Ultimamente, então, com o “Anfion” e a “Antiode”, a presença é mais viva, e ficamos por aqui considerando que você está abrindo um caminho para a nossa poesia empacada diante de modelos já gastos. Deu-me uma grande alegria o diabo do seu livro, tão rigoroso, de uma pureza tão feroz” (23).

Na mesma carta, incentivando João Cabral a publicar nos jornais do Brasil, Drummond especifica o caráter individual das soluções poéticas cabralinas nos seguintes termos:

“Bem sei que v. não pretende provar nada, mas por isso mesmo sua poesia prova. É de uma qualidade artística evidente. E por mais individual que seja a sua solução para o impasse geral de nossa poesia, ela é um tipo de solução e sobretudo convida ao esforço  e à pesquisa” (24).

João Cabral, que tanta afinidade demonstra com a arquitetura, inclusive no seu modo de compor e que declarou ver a poesia como uma construção (25) incorpora o vocabulário da profissão do arquiteto a sua maneira de fazer poesia. A propósito, em carta a Drummond (Barcelona, 9/10/48), diz o poeta pernambucano: “Gostaria de lhe falar de um poema que estou arquitetando e que seria uma espécie de explicação de minha adesão ao comunismo” (26).

Depois de um longo intervalo de tempo na correspondência, assumido por Drummond em carta de 23/04/84, Drummond agradece a João Cabral o exemplar especial do Auto Do Frade, com dedicatória ao poeta mineiro, e comenta esta obra como segue: “O Auto do Frade é uma criação engenhosa, que entrelaça habilmente história e poesia, de modo a alcançar plenamente o objetivo teatral e edificante, uma obra literária calcada na vida” (27).

Como se viu acima, tanto com Bandeira quanto com Drummond, evidenciam-se valores da poética cabralina, tais como a visibilidade da realidade, a transparência da forma, a materialidade da composição, o funcionamento autônomo dos meios de expressão.

Conclusões

Esses recortes das missivas acima destacados repercutem o conceito de poesia expresso por João Cabral em entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira, que ao poeta pernambucano dedicou seu número inaugural. Na entrevista, o poeta responde, a propósito do poético:

CADERNOS: Na sua opinião, o que é, afinal, o poético?

João Cabral: Para mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes. Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento (28).

Essas palavras de João Cabral apresentam, para além de seus conceitos de poesia e poética fortemente vinculados a uma idéia racionalista da composição, o esforço pela exatidão da poesia, conducente a uma eliminação de ambiguidades. Precisamente nesse sentido, o poeta admitiu que teve como forte influência a obra teórica de Paul Valéry, sobretudo, pela pregação da lucidez na vontade de criar.

notas

NA – Esse artigo integra a produção da linha de pesquisa Paisagens Epistolares.

1
In: PIZA, Daniel (Org.). Waaal: o dicionário da corte de Paulo Francis. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.46.

2
STEINER, George. Nenhuma paixão desperdiçada; ensaios. Rio de Janeiro: Record, 2001

3
Acepções coligidas a partir de pesquisa nos dois mais consagrados dicionários nacionais: Novo Dicionário Aurélio, de Aurélio Buarque de Holanda  e Dicionário Houaiss, de Antônio Houaiss.

4
JAKOBSON, apud GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica . São Paulo: Cultrix, [19--]. p.  338.

5
Idem, ibidem, p. 340. Grifo da autora.

6
BISHOP, Elizabeth. Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 291.

7
SÜSSEKIND, Flora. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.

8
SABINO, Fernando. Cartas Perto do Coração/ Fernando Sabino, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Record, 2001.

9
SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: A história de uma amizade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

10
FONSECA, Rodrigo. O historiador vê o poeta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mar. 2001. Caderno B, p. 4.

11
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999, p.70.

12
SÜSSEKIND, op. cit., nota vi, p. 44.

13
Idem, ibidem, p. 60.

14
Idem, ibidem, p. 114.

15
Sobre O Cão Sem Plumas, ver: LORDELLO, Eliane. Viagem ao Recife de "O cão sem plumas". Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 135.01, Vitruvius, mar. 2013 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.135/4694>. Acesso em: 14 jun. 2014.

16
SÜSSEKIND, op. cit., nota vi, p.  146.

17
Idem, ibidem, p. 245.

18
Idem, ibidem, p. 171.

19
MELO NETO, 1999, p. 62.

20
Idem, ibidem, p. 174.

21
MELO NETO, 1999, p. 43.

22
Idem, ibidem, p. 175.

23
Idem, ibidem, p. 225.

24
Idem, ibidem, p. 225.

25
Cf. LORDELLO, E. A paisagem como poética visual e sua leitura na obra de João Cabral de Melo Neto. 2003. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.

26
SÜSSEKIND, op. cit., nota vi, p.  228. Grifo nosso.

27
SÜSSEKIND, op. cit., nota vi, p.  247.

28
MELO NETO, João Cabral de. Considerações do poeta em vigília. Cadernos de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, n. 1, p. 21-31, mar. 1996. Entrevista concedida a Rinaldo Gama.

sobre a autora

Eliane Lordello, arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008). Arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.

legendas

01. João Cabral de Melo Neto, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

02. Manuel Bandeira, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

03. Carlos Drummond de Andrade, ilustração de Eliane Lordello, jun. 2014

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Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond

Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond

Flora Süssekind (Org.)

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