Cozinha e indústria em São Paulo – do rural ao urbano é o mais recente título da historiadora Maria Cecília Naclério Homem, autora também de Higienópolis: grandeza de um bairro paulistano (Prefeitura Municipal: Divisão do Arquivo Histórico, 1980; Edusp, 2011), O palacete paulistano e outras formas urbanas de morar da elite cafeeira (Martins Fontes, 1996 e 2010) e O Prédio Martinelli: a ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo (Projeto, 1984), além de diversos artigos que contam a história da capital paulista através de sua evolução urbana e de sua arquitetura.
Desta vez, a autora enfoca o processo evolutivo da cozinha doméstica, iniciando pelas cozinhas rurais e semi-rurais de fins do século 18, voltadas para as culturas de subsistência que vicejavam nos engenhos, cujos canaviais se multiplicavam com vistas à exportação do açúcar para a Metrópole. Até chegar a nossos tempos, a cozinha passou por uma série de mudanças, devidamente analisadas pela autora. Apresentava-se, então, fragmentada, nos fundos das moradias e aberta para os quintais, aos telheiros e às roças, onde se produziam quase todos os alimentos necessários à sobrevivência. Podemos dizer que as cozinhas eram autossuficientes, pois, com exceção do sal, do azeite e do bacalhau, importados do Reino, tudo ou quase tudo era produzido e processado in loco. Constantemente suja, devido às dificuldades quanto à obtenção da água e ao excesso de fumaça produzida pela combustão da lenha e do azeite utilizado para iluminação, tornara-se uma zona de repulsão. Sem falar que se cozinhava em diversos lugares ao mesmo tempo, preparava-se o fogo no chão, sobre três pedras, ou no tripé de ferro, tanto dentro como fora da habitação. Os serviços, pesados e morosos, dependiam de farta mão de obra, tanto livre quanto cativa.
A seguir, vieram os tempos iniciais da cafeicultura, que nos trouxe os primórdios da industrialização e do urbanismo, apoiados no transporte ferroviário que substituiu com vantagem as tropas de mulas, possibilitou o comércio internacional e regularizou o local. Foram implantadas as redes de água e de esgotos, a iluminação a gás e a eletricidade, o uso do gás e, nos fogões populares, do carvão para cocção, possibilitando a limpeza da cozinha e sua entrada nos interiores domésticos. Seguem-se outras fases, tais como o período entreguerras, quando nasce a cozinha moderna, em que a mecanização assume o comando das atividades culinárias, acompanhada da valorização da estética e, com elas, do desenho industrial. No pós-guerra, aparece o gás engarrafado, o que facilita a cocção nas periferias. Temos, então, a cozinha dita “americana”, de aço; as cozinhas planejadas, mais populares, compactas, com superfícies contínuas e armários aéreos; a cozinha dinâmica e sofisticada, denominada cozinha gourmet, e, finalmente, a denominada cozinha “inteligente”, que obedece ao comando de viva voz. Todas elas são equipadas com aparelhos cada vez mais aperfeiçoados, que englobam diversas funções e são movidos a diferentes formas de energia: gás, carvão, eletricidade, micro-ondas, indução, vácuo, eletrônica etc.
São renovações que se refletem na organização do espaço, na disposição dos móveis, dos utensílios e dos eletrodomésticos, que levam à cozinha pequena, organizada, bonita e limpa de nossos dias, prática e funcional, onde se economizam os passos e o trabalho dos usuários. O livro está dividido em cinco capítulos, dedicados às diferentes fases da evolução da cozinha, nos quais a autora procura no contexto histórico, os fatores econômicos e culturais, como a substituição da mão de obra escrava pela imigrante, a implantação da indústria nacional de bens duráveis e de produtos alimentícios, em substituição aos importados, e os diferentes conceitos de nutrição. Nesses termos, a autora explica como e porque a cozinha mudou de local nos desenhos das plantas, estabelecendo-se ora no porão das moradias, ora no térreo, quer na parte lateral, quer na fronteira, e atribui à arquitetura moderna, dos anos 1930 em diante, a organização das cozinhas em forma de I, L e U, com superfícies contínuas, colocadas no nível da cintura e presas ao longo das paredes.
Com a industrialização do pós-guerra, houve a vulgarização dos equipamentos, tornando-se famosas as feiras de utilidades domésticas, mais conhecidas como UD. Deu-se, ainda, a intensificação dos anúncios publicitários em jornais e revistas, e na TV. A cozinha era, então, de uso exclusivamente familiar, cujos membros se reuniam na copa, espaço imediato à cozinha, onde faziam as refeições em conjunto sob o comando materno e, à noite, do pater famílias. Era nesses momentos que se educavam as crianças, indagando-se como estavam se saindo nos estudos, ou vinham à baila as histórias de família e até mesmo receitas tradicionais que se transmitiam aos mais jovens.
De lá para cá, a cozinha tornou-se racional, baseada em princípios de simplificação do trabalho, indo ao encontro da falta de tempo dos usuários e na diminuição da fadiga humana. Tornou-se compacta e despojada nas antigas kitchenettes e nos lofts, e, uma vez arejada e bem iluminada, pôde integrar-se à sala de estar nas residências da classe média. Nos apartamentos destinados a essa classe, ela ainda permanece nos fundos, servida pelo elevador de serviço e afastada do setor social.
Tanto a chamada cozinha “americana” quanto a “inteligente”, montada à base de botões, e a planejada, são opções racionais que tendem a deixar o espaço mais dinâmico, além de organizado, prático e bonito. Já a cozinha gourmet que foi introduzida no mercado nos anos 1970, por empresas especializadas em móveis e eletrodomésticos de última geração, une a noção de prazer e sofisticação. Passou a fazer parte da área social da casa e veio para mudar o paradigma de que homem não cozinha. A história de nossa cozinha fornece elementos para a reconstituição dos costumes das famílias paulistas, que não deixam de ser os nossos próprios hábitos e a nossa própria história.
Como segunda parte do livro, acompanha o texto uma série de 175 ilustrações, entre fotos, desenhos e plantas de cozinha e de residências, dispostas em ordem cronológica. Para tanto, Maria Cecília contou com uma bibliografia variada, pautando-se em livros, artigos e trabalhos acadêmicos sobre habitação, inventários dos séculos 18 e 19, anúncios de venda de propriedades e propagandas em periódicos (almanaques, jornais e revistas como Idort e Politécnica), além de informações obtidas em visitas a feiras, lojas especializadas e a sites da Internet, o que indica um diálogo entre diferentes fontes e assume uma eficiente interdisciplinaridade. O resultado é um trabalho muito bem embasado, rico em pesquisa de arquivo e ao mesmo tempo repleto de elementos atuais. Tudo isso em uma linguagem precisa e agradável.
Esta obra, com certeza, despertará o interesse de acadêmicos e do público, em geral, porque a cozinha constitui, hoje, um dos setores mais criativos e geradores de lucro, ligados ao agronegócio e à indústria, além de restaurantes, escolas, hotéis, cafés, turismo, etc. Movimenta milhões de dólares, de usuários e de profissionais das mais diversas áreas, e diz respeito a todas as classes sociais.
sobre a autora
Graziela Forte é professora-pesquisadora com experiência em História Social da Arte Brasileira. Pós-Doutoranda pela Unesp de Marília, Doutora pela Universidade de Campinas e Mestre pela Universidade de São Paulo. Autora dos livros Diversão e arte no clube de artistas modernos e Carlos Prado: trajetória de um modernista aristocrata (ambos Bookess, 2014) e diversos artigos sobre arte e cultura brasileira.