Se você está em busca de uma abordagem abrangente e diferenciada do patrimônio brasileiro, este é um livro primordial. Elucidativo desde o prefácio, de Geraldo Gomes, que evoca as duas vertentes exploradas por Weimer para a explicação do caráter de uma arquitetura:
1. A técnica de domínio público.
2. A vertente étnica, que parece ser a preferida de Weimer, como explica o prefaciador, já que o autor detém e difunde amplo conhecimento sobre as etnias africanas, que teriam exercido influência na concepção da arquitetura brasileira.
Depois do elucidativo prefácio, segue-se uma abordagem da maior franqueza, que o leitor imediatamente perceberá, desde a conceituação de “arquitetura popular”.
A arquitetura popular
Logo de início, Weimer oferece o seu conceito de arquitetura popular, relativizando-o com o qualificativo vernacular. Numa incursão à genealogia do termo, o autor lembra que o vocábulo vernáculo provém do latim vernaculu, que originalmente designava o escravo nascido na casa do senhor. Pois bem, o termo vernáculo é o usado quando os autores brasileiros se referem às manifestações construtivas do povo, mas, como Weimer explica, é um qualificativo mal-empregado quando se refere à arquitetura.
Para Weimer, o termo mais apropriado é popular, cuja origem latina é populus. Como explica o autor, “populus, designava o conjunto dos cidadãos que excluíam, por um lado, os mais privilegiados [...], e, por outro lado, os menos afortunados, a plebe, dos despossuídos”. Donde conclui que, em seu sentido mais direto, significa aquilo que é próprio das camadas intermediárias da população.
O que parece a Weimer, é que essa definição é extremamente atual e muito feliz, pois “exclui a arquitetura realizada para as elites – denominada erudita – e a dos excluídos em que, modernamente, se tem usado o termo favela e outros termos semelhados” (p. XL).
Weimer acresce que ao longo do tempo o termo popular passou a abarcar desde sentidos positivos, a exemplo do que é do agrado do povo, até os negativos, como vulgar ou trivial. No entanto, o autor considera o termo arquitetura popular o mais correto para referir-se ao saber do povo. Assim, define arquitetura popular como aquela que é própria do povo e por ele realizada. Reforça tal consideração recordando que é também essa a terminologia adotada nos países ibéricos.
Sintetizando, Weimer assinala as características gerais (fundamentos) da arquitetura popular:
- Simplicidade: Por resultar da utilização dos materiais fornecidos pelo meio ambiente, mantendo estreito vínculo com a natureza, em razão das limitações econômicas às quais está sujeita.
- Adaptabilidade: Por ser um registro de adaptação de técnicas tradicionais e modos de construir exógenos. Exemplares disso são as arquiteturas feitas por imigrantes advindos países frios que conseguiram adaptar suas técnicas para o clima brasileiro, e há também o caso de culturas exóticas, como as orientais.
- Autoexplicação: Por evidenciar a si mesma, uma vez que a sua forma plástica resulta logicamente dos materiais e da técnica empregada.
- Herdeira e transmissora de tradições: por ser o resultado de uma evolução multissecular e de profundo respeito às tradições culturais do grupo, o que sempre se manifesta. As raras exceções em que as tradições se ausentam são devidas a motivos de força maior, como os ocorridos em meio a migrações.
- Criatividade: característica presente na própria maneira de cumprir as demais características, a da adaptabilidade, da autoexplicação, da incorporação e transmissão de tradições.
- Permeabilidade às contingências sociais, pois, como explica Weimer, “em situações estáveis da sociedade, ressalta seu espírito conservador; em situações de rápidas transformações, ela se reveste de uma rara capacidade de adaptação (p. XLIII).
Na sequência, Weimer identifica continuidades e rupturas entre arquitetura popular e erudita. Ele explica que ao contrário da arquitetura popular, adaptável, autoexplicável no uso dos materiais e das técnicas, a arquitetura erudita é mais controlada e até dominada pelas conquistas tecnológicas mais recentes. Nesse sentido, a arquitetura erudita adota preferencialmente os materiais sofisticados e se sujeita aos modos de vida das culturas das quais é caudatária.
Weimer discorre também sobre a confusão entre arquitetura popular e favelas. Ele assinala que no progressivo aviltamento das classes populares e as massivas migrações das populações rurais para as periferias dos centros urbanos liquefazem-se os limites entre o popular e as construções da miséria (também elas criativas em seus contextos).
Sincero, Weimer faz um mea culpa, reconhecendo que já comungou da equivocada noção de que a favela não pode ser considerada arquitetura por ser a materialização da miséria e não um autêntico processo de criação plástica. Reconhece, porém, que à medida que percebia o esforço da população favelada em driblar as contrariedades, foi descobrindo soluções engenhosas, até em casos limítrofes de miséria, a exemplo da invasão da Pedra Furada, em Salvador.
O reconhecimento memorialístico da arquitetura popular
Esse reconhecimento e valorização, segundo Weimer, se dá caracteristicamente em períodos ditatoriais, relembrando o caso da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, atualmente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Nos primórdios do Sphan, sob o Estado Novo, foram publicados alguns trabalhos que contemplavam o fazer popular. Entre eles constam o de Gilberto Freyre sobre os mocambos recifenses, o texto elogioso de Lucio Costa sobre os mestres pedreiros portugueses, e a viagem de Mário de Andrade pelo norte e nordeste do Brasil, inventariando variadas formas artísticas.
A seu ver, muito cedo tal começo auspicioso foi abortado, com a mudança de orientação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, que passou a travestir de eruditas as realizações populares consideradas mais relevantes pelo instituto. Foi esse o caso da arquitetura do ciclo mineiro, quando mestres artesãos portugueses foram qualificados como arquitetos eruditos, passando a ser reconhecidas só as suas obras de destaque, especialmente as construções religiosas.
Weimer desenvolve essa linha de raciocínio também para a habitação popular. O autor lembra que sob a truculência do Estado Novo foram criados os IAPs, empenhados na construção massiva de casas populares. Igualmente, recorda que sob a ditadura militar, foi concebido o Banco Nacional de Habitação – BNH, que apesar de ter cometido desacertos não pode ser considerado omisso na construção das casas populares. O autor inclusive contextualiza o vínculo dos regimes totalitários relativamente às pesquisas sobre arquitetura popular no âmbito mundial. Nesse sentido, critica a Carta de Veneza, nos seguintes termos:
“O conteúdo totalitário dessas pesquisas teve uma consequência imediata: com a derrota do Eixo, os conhecimentos sobre a arquitetura popular passaram a ser menos valorizados. Por isso, esses estudos pararam quase completamente no pós-guerra. O grosso do pensamento dos arquitetos voltou a ser dirigido para as obras monumentais. Isso fica patente na famosa Carta de Veneza, que normalizaria, ou deveria fazê-lo, toda a ação preservacionista do mundo inteiro, sob o aval da Unesco. No entanto, o texto só se refere aos monumentos, deixando os preservacionistas em palpos de aranha para explicar que esses tais “monumentos” a ser preservados não teriam de ser obrigatoriamente monumentais...” (p. 228-229).
No entanto, reflete o autor, boa parte da arquitetura que as autoridades do Iphan sacramentaram como característica dos diversos períodos da história brasileira apresentam nítidas características populares, pelos motivos que Weimer assim explica:
“Pela falta de conhecimento da autoria de seu projeto, pelos procedimentos construtivos, por seu desapego às linguagens arquitetônicas em voga e por sua adequação empírica aos meios físico e social nos quais foram geradas” (p. 295-296).
Estendendo sua abordagem aos primórdios do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan (atual Iphan), Weimer adverte que os modernistas abrigados na criação do Sphan concederam o devido destaque à arquitetura religiosa fiéis aos pressupostos da superioridade da cultura ibérica sobre a indígena e a africana. Estas últimas ainda hoje lutam pelo seu reconhecimento como uma arquitetura “digna”.
Weimer prossegue sua crítica destacando que desde muito cedo nomes de destaque como Lucio Costa e Paulo Santos esforçaram-se para dignificar o Barroco, e para encontrar uma origem “nobre” em sua ascendência da Península Itálica. Isso apesar de o barroco ibérico dever muito mais a influências mudejares do que dos grandes mestres italianos, afirma Weimer. O barroco, adverte o autor, caiu em desgraça com a Revolução Industrial, identificado que foi como característico e expressivo da nobreza e do clero.
É, contudo, na reflexão sobre o ciclo mineiro e Ouro Preto, sob a manipulação das diversas ideologias políticas e a noção memorialística vinculada ao nacionalismo, que o autor faz sua mais dura crítica. Segundo ele, o ciclo mineiro levou a colônia à maior decadência econômica e, paradoxalmente, a uma expansão territorial que ultrapassou em muito os limites acertados em tratados internacionais. Pois bem, na visão de Weimer, esse ciclo tem sido manipulado pelas mais diversas ideologias, por ser uma fase contraditória e ambivalente. Argumenta que quando se tramava o golpe republicano, Tiradentes foi guindado à condição de “protomártir” da independência do Brasil. Os inconfidentes, por sua vez, foram condecorados com as insígnias de supostos pioneiros de uma consciência nacional, apesar de a história brasileira ser plena de exemplos anteriores de manifestações nacionalistas.
Prosseguindo no caminho dessa manipulação política, reflete o autor, a arte do período mineiro passou a ser interpretada como o berço de uma arte legitimamente nacional e o neocolonial como ideal utópico da arquitetura brasileira. Posteriormente, com a institucionalização da ideologia nacionalista a partir da chamada “Revolução de 1930” e, especialmente, a partir do golpe do Estado Novo, a arte mineira foi posta sob proteção estatal. Mais ainda, sua capital, Ouro Preto, sofreu uma revisão cenográfica, reflete Weimer. Para que isso ocorresse, as construções historicistas do contexto urbano foram extirpadas e adaptadas aos padrões oficiais do barroco mineiro, para, assim, tornar verdadeira a teoria de que Ouro Preto teria estagnado no tempo e no espaço.
Afirmando que a arquitetura é um fenômeno eminentemente cultural e que as interações entre as diversas culturas são difíceis de mensurar, Weimer distingue o papel das mulheres brancas, negras e índias na relação com a casa, núcleo básico da arquitetura e das relações sociais.
As mulheres brancas, negras e índias em relação com a casa
Weimer afirma que as mulheres brancas tinham recebido uma educação profundamente influenciada pela cultura muçulmana, o que prescrevia uma forte submissão feminina aos seus maridos. Esse regime incluía a reclusão das mulheres nas residências, sendo a frequência à missa a única chance permitida para a saída da mulher de casa. Ainda assim, a mulher tinha de ser devidamente escoltada e ter seu o corpo totalmente coberto.
Já no regime africano, as negras, em sua sociedade, desfrutavam de amplo grau de liberdade, sendo coparticipantes das atividades agrícolas, chegando, em muitos grupos, a monopolizar as atividades comerciais.
Entre os indígenas, por sua vez, as atividades agrícolas eram monopólio das mulheres, e as atividades comercias eram desconhecidas. O índio não conseguiu ensinar a seu senhor aquela que Weimer considera a sua maior virtude: a convivência harmoniosa com a natureza.
Sobre o rescaldo geral dessas três raças na arquitetura do Brasil Colônia, Weimer diz ter resultado um produto híbrido, com duas faces opostas. A face pública, oficial, erudita, materizalizada no uso da língua, vestimentas, religião, administração pública portuguesa. A face domiciliar, em que os modos de vida de origem berbere (ou moura) se harmonizavam com a culinária, usos e costumes africanos e indígenas. Mais ainda ressalta Weimer:
“Essa dicotomia viria a ser de grande importância na afirmação da arquitetura brasileira: dentro da casa, as transgressões aos costumes ibéricos eram perfeitamente toleradas, mas a aparência externa das construções – a que pertencia à imagem pública – era altamente conservadora e fiel às tradições lusas”.
O quadro acima descrito consiste no panorama brasileiro dos três primeiros séculos. Esse panorama principiou por se esmaecer com as imigrações europeias, com o advento da abertura dos portos. Vale lembrar que tais migrações se tornaram avassaladoras a partir do momento em que a marinha inglesa aboliu o tráfico negreiro.
Weimer adverte que a legislação reinol para o desenho das cidades ditava a conformação externa das construções, o que incluía as alturas das portas, dos peitoris e vergas das janelas, a forma dos beirais, a inclinação dos telhados, a largura dos lotes e das aberturas, isso tudo para que a aparência das vilas fosse a mais uniforme possível.
Mudanças sociais com o fim do período colonial desencadeiam mudanças na arquitetura. Por exemplo, com o fim desse período, os muxarabis passaram a ser considerados símbolos de atraso e foram sistematicamente desmontados a partir do início do Império. De fato, sabemos que poucos restam no Brasil, entre eles, cumpre destacar os das cidades de Mariana e Olinda.
Weimer aborda ainda a arte erudita e popular no contexto das raças, o desenho das cidades, e faz considerações sobre a nossa história oficial. Trata-se de um livro bastante abrangente e que dignifica a arquitetura popular em texto e ilustrações. Além disso, sempre relativizando seus assuntos com as questões memorialísticas, Weimer oferece uma reflexão que oxigena nossas noções de memória.
sobre o autor
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES,1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) e Doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). É arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.