A representação de algo é, por definição, uma tradução da realidade e não pode ser confundida com a mesma. A discussão popularizada por Magritte no quadro “A traição das imagens” não pode ser excluída nem mesmo do campo da fotografia que, em primeira análise, é o retrato perfeitamente verídico e imparcial; a captação indiscriminada de toda a luz que atinge um objeto fotossensível no fundo do equipamento. Essa aparente contradição revela a complexidade dessa técnica. O diretor italiano Michelangelo Antonioni expande essa discussão de forma quase metonímica em Blow Up (1), longa-metragem filmado em coprodução inglesa e inspirado no conto de Julio Cortázar, “Las babas del diablo” (2).
Logo de início nos é apresentada o personagem Thomas, protagonizado pelo ator David Hemmings. Veste roupas desajeitadas e aparentemente sujas quando sai por um portão após – como descobriremos mais à frente – fotografar uma série de retratos dos frequentadores de um cortiço. Thomas entra em seu carro e se dirige ao seu estúdio onde, com as mesmas roupas encardidas, apanha outra câmera para fotografar uma modelo (Veruschka von Lehndorff interpretando ela mesma), já posicionada no fundo escuro. As instruções do protagonista e as movimentações entre fotógrafo e fotografada sugerem um clima sexual que cresce e culmina em gritos de êxtase, se aproximando de um orgasmo “Assim, continue! Isso! Isso!”. A fotografia sensualizada é, neste ponto, tão intimamente conectada à realidade que se assemelha até mesmo em processo a ela. A representação do ato sexualizado, coordenado, instintivo, relaciona-se de forma dependente à vivência concreta.
Na cena seguinte, ocorre justamente o contraponto. Já vestindo suas roupas usuais, Thomas parte para um ensaio com um grupo de modelos em outra sala. O cenário inclui alguns vidros semitransparentes. Aqui o glamour das fotografias de revistas de moda desaparece em gritos mal educados e movimentos bruscos do fotógrafo na busca por orientar a melhor pose das modelos. Falta sensualidade, sobra factilidade. O vestido excessivamente largo de uma modelo é “consertado” com um alfinete na parte de trás, o chiclete que outra estava mascando é guardado atrás da orelha e a etiqueta das roupas de uma terceira é negligentemente posto para dentro da gola para o ensaio seguir em frente. O resultado é, agora, o único ponto de interesse. O processo se aproxima mais de um empecilho que de uma solução; algo a ser contornado. Resume-se em apagar qualquer traço dele mesmo no produto final afim de convencer o público de uma beleza idealizada, inalcançável e antinatural.
Os vidros fumé que participam do ensaio revelando parcialmente as roupas e as modelos exercem um efeito semelhante à experiência multidimensional e imersiva das instalações do artista americano Robert Irwin. Os vidros refratam e refletem ao mesmo tempo, confundindo a realidade com a reprodução dela mesma – opa, já falamos sobre a dissociação entre reprodução e realidade; aliás, lembram de “Alice através do espelho”? A realidade está de que lado do espelho? Teriam as projeções da imaginação de Alice fragmentos de realidade? – e estão presentes durante todo o longa, auxiliando na concepção de um espaço limitado e íntimo, mas ambíguo. Indica que a fotografia talvez não seja propriamente a realidade absoluta, mas um jogo de espelhos; uma construção complexa de enquadramento e luminosidade variável que direciona o público a uma leitura parcial da realidade.
Em certo ponto, Thomas atravessa o pátio do estúdio até o atelier de Bill, que lhe mostra um quadro seu dizendo:
“Este deve ter cinco ou seis anos. Eles não querem dizer nada quando eu os faço. São apenas uma bagunça. Depois eu encontro algo ao qual me ater, como aquela perna. Então ele se descobre, e progride. É como encontrar uma pista em uma história de detetive” (1).
A fala de Bill ilumina a trama geral do filme. Thomas despretensiosamente fotografa um casal num parque. A mulher o segue e exige as fotos, mas o protagonista não está disposto a cooperar. Perseguido até seu estúdio, Thomas vai seduzi-la e lhe entregar um rolo de filme virgem dizendo ser o que ela pedia. A excessiva preocupação da mulher o motiva a ampliar as fotos. Aqui é levantado o suspense hitchcockiano da história. As fotos revelam algo que seus olhos de fotógrafo originalmente haviam falhado em notar na cena. Atrás de um arbusto há algo que lembra... uma mão empunhando uma arma.
Thomas é apático durante a maior parte do longa-metragem. Dispensa as tietes que o perseguem empolgadas com a mesma expressão indiferente com a qual adquire na loja de penhores uma hélice de avião da qual não precisava ou enfrenta o trânsito causado por uma manifestação. Mantém um afastamento claro com todos os outros personagens, colocados como coadjuvantes menores. Mal se aproximam, logo se afastam, continuando sua própria trajetória, como corpos atraídos levemente pela atração gravitacional de Thomas. O protagonista parece mais interessado em sua fotografia. Vê mais realismo e legitimidade na ampliação das imagens que nas relações sociais.
As personagens femininas são especialmente planas e homogêneas, o que afasta o longa da produção de Antonioni até o momento, conhecido seus filmes introvertidos, com papéis bastante complexos para a atriz Monica Vitti. Talvez uma metáfora deliberada aos estímulos vazios e superficiais do mundo moderno que o protagonista não questiona em momento algum, sugerindo que até mesmo as relações afetivas estão esvaziadas de sentido e profundidade. A velocidade da troca de informações, a comunicação visual e o marketing transformaram o corpo feminino em objeto, e os vínculos interpessoais, em soluções momentâneas para necessidades imediatas.
As sequenciais ampliações das fotografias de Thomas o levam a acreditar que um homicídio tomou lugar no parque aquele dia. Entretanto, o desfecho do filme não dá muita esperança à solução do crime. Ao invés disso, se concentra na ineficácia da busca do protagonista por respostas. As cenas finais são uma somatória de situações fantásticas que parecem conspirar para uma inércia improdutiva de Thomas. A realidade parece ficar em segundo plano no mundo concreto, enquanto a fotografia talvez seja a única fonte objetiva e confiável.
A fotografia pode ser tanto seu processo (como o próprio longa-metragem; uma obra que passa pela sua produção e contrai invariavelmente uma dimensão temporal), quanto o seu fim (o fato consumado, o crime cometido, imediato e definitivo). Ela é a realidade que muitas vezes ultrapassa aquilo que nossos olhos enxergam, mas ao mesmo tempo, é o jogo de tênis imaginário da cena que encerra o filme. É um fingir a ação, é alterar a realidade com as próprias mãos de mímico. Tomar um partido, se afirmando deliberadamente parcial ao escolher um objeto e uma narrativa, congelando-os entre todos os objetos e narrativas possíveis e concomitantes.
Por fim, essa obra filmada no já longínquo ano de 1966 nos sugere uma reflexão considerando nossa atual realidade hipertrofiada de imagens. Se a massificação tecnológica do mundo contemporâneo nos trouxe a democratização da fotografia, também a tornou banal pelo seu esgotamento; entre a publicidade, a web e a ânsia narcisística por reconhecimento público. As redes sociais geram um volume inimaginável de imagens que se encerram em si mesmas. São meras representações situacionais, que não ampliam em nada a nossa percepção. Nos resta entender como readquirir significado à mesma, trazendo à tona questionamentos que ampliem efetivamente a potencialidade da fotografia que não é, nem nunca foi, mero plágio de nossos olhos.
nota
1
Blow Up, direção de Michelangelo Antonioni, 1966, Itália/Inglaterra/EUA, Bridge Films, Carlo Ponti Films e MGM, DVD, cor, 111min. Com David Hemmings, Vanessa Redgrave, Sarah Miles, Jane Birkin, Veruschka.
2
CORTÁZAR, Julio. Las babas del diablo. In Las armas secretas. Madri, Cátedra, 1999.
sobre o autor
Caio Sens é aluno de graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU-USP e estagiário do Portal Vitruvius.