“[...] e se designe o lugar para se edificarem a casa da Câmara e das Audiências e cadeia”. Às vezes improvisada, outras vezes monumental, a construção de casas de câmara e cadeia foi disposta em cartas régias, autos de elevação de vilas e alvarás. Seus edifícios sediaram órgãos fundamentais na organização do Império Português e foram palco de negociações, conflitos e acordos entre o Reino e seus domínios. Erguidas na praça principal ou em pontos fulcrais de nossas vilas, marcavam a instituição da autonomia jurídico-administrativa em instância local. Também contribuíram para definir a paisagem e estruturar traçados urbanos.
Na historiografia recente, as condutas, práticas e dinâmicas da administração municipal ultramarina constituíram, como se sabe, um ampliado campo de pesquisas e debates. Na área de História da Arquitetura e Urbanismo, o interesse pela análise de políticas de elevação de vilas tomou impulso nas últimas décadas, sobretudo a partir de recortes regionais. Estudos de maior fôlego sobre as casas de câmara de cadeia ainda são, porém, escassos ou dedicam-se a construções situadas em localidades especificas. Nesse livro, as casas de câmara e cadeia do Rio Grande do Norte são o ponto de partida para uma abordagem ampla e multifacetada da instalação do poder municipal, desde os Senados das Câmaras coloniais até as Câmaras municipais do Império e da República.
Em seu doutorado desenvolvido na École des Hautes Études en Sciences Sociales, o arquiteto, professor e pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRN Rubenilson Brazão Teixeira já havia estudado doze cidades, situadas no interior ou no litoral, que compõem o universo de estudo desse trabalho. Para elaboração dessa obra mais recente, aquelas localidades foram revisitadas, acrescentou-se mais uma cidade e a pesquisa documental foi ampliada com auxílio de alunos dos cursos de História e Arquitetura. Fotos, perspectivas e desenhos em planta permitiram reconstituir ou elucidar a conformação dos edifícios estudados, por vezes desaparecidos ou muito descaracterizados.
O propósito foi, como explicita o subtítulo do livro, identificar “semelhanças e especificidades do caso potiguar”. O texto mantém um diálogo entre aquilo que se observou no Rio Grande do Norte e considerações mais gerais sobre o poder municipal e suas sedes em outras partes do território. Uma de suas referências fundamentais foi o clássico trabalho de Paulo Thedim Barreto sobre casas de câmara e cadeia, baseado em viagens de estudo e trabalhos para o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, apresentado como tese para a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil (depois UFRJ) e publicado em 1947 (1). Rubenilson Brazão Teixeira revisita os tópicos de análise daquele estudo pioneiro trazendo dados novos sobre o Rio Grande do Norte e assimilando contribuições recentes de trabalhos nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, História e Geografia.
Na primeira parte, retomam-se as origens, organização e funções da administração municipal no Brasil, detendo-se em seu papel na regulação do espaço urbano, com ênfase nos séculos 18 e 19. Na segunda parte, cerne do livro, investiga-se o próprio edifício da casa de câmara e cadeia, considerando-se origens, configuração, técnicas, materiais de construção, ambientes e acessos, volumetria, fachadas, características estilísticas e a relação com a formação do espaço urbano. Esse roteiro passa pela necessária descrição dos edifícios em estudo, levando à constatação de uma tipologia. Traz também uma problematização do seu processo de construção, com base em uma documentação escrita de natureza diversa. Emergem assim discussões ainda pouco exploradas pela história de nossa Arquitetura, tais como o contraponto simbólico e espacial entre a Casa de Câmara e a igreja matriz, os múltiplos sentidos do pelourinho ou as disputas em torno da localização da Casa de Câmara.
Embora por vezes ateste que transformações nos edifícios estudados estariam apenas acompanhando uma evolução mais geral da arquitetura no período, a análise ganha interesse ao estabelecer relações entre a materialidade dos edifícios estudados e o processo de afirmação e transformação do poder municipal. Como mostra o autor, no século 18 a Metrópole zelou para que as feições da Casa de Câmara fossem condignas com o prestigio de suas localidades. E, no começo do século 19, quando as atribuições da Câmara em relação à organização do espaço urbano tornam-se mais amplas, a arquitetura de seus edifícios ganhou complexidade. Já no início da República, a Casa de Câmara tornou-se órgão essencialmente legislativo, separou-se da Cadeia e passaram então a ser erguidas sedes para a Intendência Municipal.
Responder a questão que moveu o livro – quais as possíveis especificidades do caso potiguar – parece ao fim menos importante do que sua trajetória de análise. A análise das sedes do poder municipal mostra ser uma perspectiva privilegiada para acompanhar transformações em nossa história da arquitetura, da construção e das formações urbanas. A estrutura e o tom do texto tem grande valor didático, resultando em uma obra que deve se tornar referência para cursos de História da Arquitetura e do Urbanismo em regiões diversas do Brasil. Como se vê, construções por vezes de feições modestas podem ser muito reveladoras sobre a história de nossas cidades e instituições politicas.
nota
1
BARRETO, Paulo Thedim. Casas de Câmera e Cadeia. Revista do IPHAN, Rio de Janeiro, n. 11, MEC, 1947, p. 9-195.
sobre a autora
Maria Fernanda Derntl é professora e pesquisadora da FAU UnB, doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP, autora do livro Método e arte: urbanização e formação territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811 (Alameda, 2013) e coorganizadora do livro Brasília 50+50: cidade, história, projeto (EdUnB, 2014).