O ensino de arquitetura, e em particular, do projeto de arquitetura, pode ser considerado uma das atividades didáticas mais complexas dentro do universo acadêmico, como reconhecidamente pode admitir tanto o aluno como o professor.
Para começar, o campo de conhecimento da arquitetura e do urbanismo – bem como do design, universo correlato transversalmente à arquitetura e às artes visuais – se estende pelas ciências sociais aplicadas, artes, tecnologia, gestão de projetos, etc. e ao longo do tempo, do espaço, da cultura, da paisagem, da geografia, da economia; na história dos povos e na contemporaneidade.
E para complicar, a prática de projeto, principalmente pelo rompimento do Movimento Moderno com a tradição clássica, levou a uma indefinição sobre como desenvolver uma prática projetual durante um curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo. No Brasil, a repressão do Regime Militar (1964-1985) prejudicou o debate sobre o ensino de arquitetura, de tal forma que até hoje sofremos as consequências da interrupção das discussões iniciadas com a proposta de ensino elaborada em 1962 por João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), que dividia o curso de arquitetura e urbanismo em três departamentos: projeto, história e teoria, tecnologia.
O professor Luis Espallargas Gimenez, em recente aula-homenagem a Pedro Paulo de Melo Saraiva (1933-2016), discorreu sobre a carreira deste arquiteto, começando pela sua formação na Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1955; notando que trata-se de um ano que coincide com o auge do Movimento Moderno no pós-guerra, e que desde então, os questionamentos “contra o tema da modernidade levaram à sua substituição por novas teorias que sucedem a cada cinco anos aproximadamente”, teorias que nunca param de mudar, levando Espallargas a se perguntar se é possível uma profissão ser ensinada sem uma “certa estabilidade, processo ou protocolo do que é pertinente na prática, e que permita que a cidade seja construída com certo controle”. Considerações perturbadoras para este resenhista que é também docente, e que não deixa de concordar com o palestrante.
Espallargas observa que a formação profissional da geração de Pedro Paulo era precedida por uma sólida educação de 1º e 2º graus, que contribuía muito para embasar um aprendizado “onde se desenhava todos os dias, trabalhavam muito, eram muito bem informados. Eles não eram bons arquitetos porque eram inventivos ou porque eram pessoas excepcionais, geniais. Eles eram bons arquitetos porque tinham uma formação extraordinária, uma coisa que acho que nós perdemos e que nós não iremos substituir com inventividade”, considerações certamente provocadoras. Então, como fazer para compensar os desequilíbrios problemáticos do ensino atual de projeto, com o aluno já vindo de uma formação de 1º e 2º graus deficientes?
Podemos começar pelas bases: um ponto de partida para o ensino de qualquer profissão – ou seja, “estabilidade, protocolo, processo” dos procedimentos da prática – seria um conjunto de livros, em nosso caso uma bibliografia para a formação do arquiteto como profissional de projeto. Como eram os tratados básicos de arquitetura pelos quais se fundamentava antigamente o ensino da profissão, antes do advento do Moderno.
E os tratados mais importantes seriam, para este resenhista, aqueles livros onde se explica “o que o arquiteto pensa e como concebe arquitetura, seus princípios”, como bem definiu Espallargas na ocasião – e que vale também para outro compêndio de sua coautoria, publicada pouco depois, sobre o arquiteto João Kon (1).
Estas ideias de Espallargas podem ser vinculadas ao conjunto de aulas de um breve curso ministrado pelo arquiteto e docente Angelo Lorenzi, do Politecnico de Milano, professor visitante do IAU USP em 2016. O professor Angelo observou que toda concepção de projeto implica na escolha de relações, como as arquiteturas se escolhem como referência ou como oposição (o que o projeto não pode se tornar). Portanto, o trabalho do arquiteto, como disse o professor Angelo, “é também a construção deste mundo de referências – o que veio anteriormente, numa relação ideal à distância (no tempo e no espaço, diríamos) ou numa relação concreta ou direta com o passado”.
Tais preocupações de Espallargas remontam a textos anteriores, como podemos ver nos ensaios “A propósito do juízo da arquitetura paulistana” (2) e “Autenticidade e rudimento – Paulo Mendes da Rocha e as intervenções em edifícios existentes” (3), demonstrando uma evolução coerente uma evolução destas questões, culminando em seus textos nos compêndios sobre Pedro Paulo de Melo Saraiva (4) e João Kon (ver abaixo).
Este mundo de referências pode ser um canon de projetos eleito pela reflexão do arquiteto ao longo de seu aprendizado, e de fato todo arquiteto deveria eleger um conjunto de referências, de predileções intelectuais. Mas este canon será muito mais substanciado se estiver embasado no pensamento dos arquitetos que conceberam tais projetos eleitos pelo arquiteto.
Um canon sempre se fez necessário para diversas formas de arte, principalmente na música e na literatura. Tema controverso, que já provocou polêmica violenta nos estertores do século 20, quando da publicação de O cânone ocidental, de Harold Bloom, em 1994 (5). Polêmica que rendeu numerosos apartes, incluindo a crítica de Umberto Eco publicada no New York Times. Entretanto, com certeza não há por que a arquitetura, enquanto corpo disciplinar, possa dispensar o fundamento de um canon de projetos, de autores, de livros, mesmo diante da desconfiança crônica do Moderno diante dê qualquer coisa que possa ser definida como “canônica”, ou mesmo “icônica”.
Neste sentido, destaca-se assim o papel do tratado de arquitetura onde se explica “o que o arquiteto pensa e como concebe arquitetura, seus princípios”, que incluem não apenas o approach do arquiteto em relação ao programa e intenções projetuais, mas como ele pensa a cidade em relação ao projeto, o diálogo entre projeto, sítio e entorno; o cuidado com a questão ambiental e o detalhe construtivo-arquitetônico – este no sentido vitruviano destacado por Alberti, das partes essenciais para a resolução do todo.
O primeiro tratado de arquitetura, ou o único que aparentemente sobreviveu ao fim do Império Romano, foi o clássico de Marcus Vitruvius Pollio (por volta 90-20 a.C), De Architectura Libri Decem, “Os dez livros da arquitetura” (por volta 27 a.C.). Os romanos faziam tratados técnicos de várias práticas, desde a medicina até a guerra, então podem ter havido outros de arquitetura, mas que teriam se perdido. As circunstâncias excepcionais expostas por Vitruvius na dedicatória a César Augusto talvez expliquem sua sobrevivência.
Como bem definiu Fernando Vázquez Ramos, em Os tratados do século XX: edições especiais (6), os tratados de arquitetura “são peças típicas do Renascimento, renasceram com ele”, considerando-se que o tratado inaugural da Era Moderna, De Re Aedificatoria libri decem (1452), de Leon Battista Alberti (1401-1472) foi claramente escrito como uma inspiração comentada do tratado vitruviano. Vázquez ainda observa que “a partir dessa obra germinal, os tratados foram aparecendo paulatinamente até se converterem no veículo privilegiado da transmissão do conhecimento sobre a arte de projetar arquitetura”.
Entre os tratados subsequentes, podemos destacar Tratado de Arquitetura / Libro Architettonico (1465), de Antonio Averlino, dito o Filarete (1404-1472), o primeiro a incluir desenhos e o conceito de uma cidade ideal, mais tarde ampliada por Sebastiano Serlio (1475-1554) em seu Tutte l’opere d’architettura et prospettiva di Sebastiano Serlio Bolognese (1619), já no Barroco. Rico em desenhos, inclusive comparativos, podemos considerar que o primeiro tratado didático de arquitetura seja o Regole degli Cinque Ordini d’Architettura (1562), ou “Canon das Cinco Ordens de Arquitetura” de Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573), livro também conhecido simplesmente como “Vignola”.
O primeiro tratado em que o arquiteto registra de fato como concebe projeto, seus princípios de arquitetura, narrando sua carreira e experiências de seu próprio punho, seria o monumental I Quattro Libri dell’architettura (1570), de Andrea Palladio (1508-1580). Vale dizer, aqui, que é lamentável um certo desdém intelectual da academia pela narrativa biográfica ou autobiográfica do arquiteto, que conta e analisa sua experiência como arquiteto e construtor – como enfrentou e resolveu os problemas de projeto, obra, gestão, as questões urbanas etc. Os impasses e as conclusões. As recomendações de projeto. Que forma melhor haveria de se aprender uma profissão? Mas na escola de arquitetura brasileira atual, prefere-se frequentemente ficar apenas no plano das grandes ideias e das grandes indignações.
O tratado de Vincenzo Scamozzi (1552-1616), L’Idea dell’Architettura Universale (1615) constitui um corolário do tratado palladiano, com desenhos magníficos.
Com o advento da École de Beaux-Arts e da École Polytechnique, temos uma sucessão de tratados franceses: Les Dix Livres d’Architecture (1673), de Claude Perrault; Nouveau Traité de toute l’Architecture (1706), do Abade de Cordemoy; o Cours d’Architecture (1750), de Jacques-François Blondel; L’Architecture considérée sous le rapport de l’art des moeurs et de la legislation (1804), de Claude-Nicolas Ledoux; e o tratado seminal de Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834): Précis des leçons donnés à École Polytechnique (1809), seguido de Précis des leçons d’Architecture (1819).
Mais tratados surgiram em outros idiomas. Johann Bernard Fischer von Ehrlach, o mestre do Barroco Austríaco, escreveu Entwurf einer historischen architektur, com belíssimos desenhos, em 1721. E no século 20, um dos tratados mais populares entre estudantes de arquitetura (antes do Moderno) foi A History of Architecture in the Comparative Method (1905), de sir Banister Fletcher (1866-1953) e seu pai, arquiteto também chamado Banister Fletcher (1833-1899).
Para quem estudou na FAU USP na década de 1980, pode se lembrar do professor Benedito Lima de Toledo recordando que, ainda nos anos 1950, os estudantes de arquitetura no Brasil tinham que estudar pelo menos os tratados de Vignola e Palladio, entre outros. O professor Júlio Roberto Katinsky também se lembrava de ter que estudar o “Banister Fletcher” nas aulas de História da Arquitetura.
Então, como podemos selecionar aqueles que poderiam ser considerados, numa produção recente (neste século pelo menos), os “tratados de arquitetura” moderna brasileira no sentido que Espallargas definiu, “o que o arquiteto pensa e como concebe arquitetura, seus princípios”? Este resenhista selecionou os seguintes títulos abaixo, que mostram claramente como “aprender arquitetura com quem faz arquitetura” palladiano do título deste artigo.
Antes, uma justificativa. O leitor pode se queixar da ausência de alguns títulos, por que não estariam incluídos nesta seleção de livros que poderiam atuar como tratados contemporâneos, faróis para guiar a prática e o julgamento profissional dos arquitetos? Um exemplo seria o volume Eduardo de Almeida – arquiteto brasileiro contemporâneo, do indefectível Luis Espallargas Gimenez (7). Neste caso temos uma monografia que serviu de catálogo para uma pequena exposição sobre a obra do arquiteto na 6ª Bienal Internacional de Arquitetura em 2005.
Assim, aqui temos apenas uma visão parcial e selecionada da obra do arquiteto, sem maiores considerações acerca da totalidade de seus projetos (escolas, fábricas, teatros, as torres Gemini, sedes institucionais, a Biblioteca Brasiliana ainda não construída na época). O texto de Espallargas, como sempre, é consistente e lança luzes fundamentais sobre a rigorosa e precisa arquitetura de Eduardo de Almeida, mas o compêndio é insuficiente e até um pouco desapontador, mesmo para quem se interessasse em conhecer apenas as casas projetadas pelo arquiteto.
Outro título ausente desta seleção seria Sidonio Porto um intérprete de seu tempo, organizado por Vicente Wissembach (org.), com texto de Monica Junqueira de Camargo (8). No caso deste compêndio, muito interessante e bem-vindo, não pode ser considerado como tratado devido a ausência de uma participação mais ativa do arquiteto biografado no texto de Monica (na forma de diálogos, depoimentos, intervenções explicativas); e a falta de obras da fase inicial da carreira de Sidonio Porto, desenvolvidas, por exemplo, com Raimundo Rocha Diniz.
Além disso, a própria extensão e amplitude da carreira de Sidonio Porto – cuja produção na década de 1980 reflete em parte o estado confuso do debate arquitetônico brasileiro da época, como Monica tão bem definiu – faz com que o livro seja mais interessante para quem é arquiteto já há algum tempo, do que para o estudante de arquitetura. E serão os arquitetos com certa idade e experiência de vida quem mais retirarão lições do panorama de projetos do livro – não somente em relação à questão acima, mas também nas soluções racionais de implantação de grandes conjuntos edificados, nos detalhes criativos de iluminação e ventilação, nas soluções de estrutura e cobertura, nas plantas bem resolvidas de complexos problemas de programa, acessos e circulação.
Pelo mesmo critério, não incluímos aqui Oswaldo Arthur Bratke, de Hugo Segawa e Guilherme Mazza Dourado (9) e Joaquim Guedes, de Monica Junqueira Camargo (10); além dos diversos compêndios sobre Vilanova Artigas lançados em comemoração de seu centenário, incluindo o catálogo raisonné editado por Rosa Artigas (11), bem como outros volumes sobre Eduardo de Almeida e Paulo Mendes da Rocha lançados nos últimos 20 anos, os quais não nos estenderemos por falta de espaço. Já a notável autobiografia projetual de Álvaro Vital Brazil, Cinquenta Anos de Arquitetura (12), seria claramente um tratado pelo critério aqui adotado, mas está fora de circulação há algum tempo.
Enfim, vamos então aos que seriam tratados de arquitetos do Movimento Moderno no Brasil.
Residências em São Paulo, de Marlene Milan Acayaba (13)
A reedição de 2011, pela Romano Guerra Editora, desta monografia (14) contribuiu para que uma geração inteira de novos arquitetos e estudantes de arquitetura tivesse contato com a pesquisa inédita e pioneira de uma produção selecionada dos principais arquitetos modernos paulistas, do pós-guerra até 1975.
Apesar de alguns muxoxos por parte de quem discordou do período histórico adotado pela autora, o público leitor da época ficou espantado, pois nunca antes tinha sido publicado nenhum compêndio brasileiro que mostrasse uma seleção de projetos, com sistematização de dados, memorial construtivo, análise crítica rigorosa e desenhos técnicos padronizados na forma de plantas e cortes. De organização editorial similar haviam apenas as publicações internacionais de arquitetos contemporâneos como as dedicadas a Richard Meier, Kevin Roche, Gordon Bunshaft, Kenzo Tange, Renzo Piano, Norman Foster, Richard Rogers, I.M. Pei etc. (e ainda por cima, muitas vezes na forma de edições monográficas de revistas, com desenhos de pequenas dimensões).
Superando-se as paixões e disputas das lutas políticas dos anos 1960-80, particularmente contra o Regime Militar, já em sua agonia final por ocasião da publicação, a monografia contribuiu para encorajar e estimular o retorno dos arquitetos ao debate da produção arquitetônica em si.
Sem necessariamente ter se inspirado pelos quatro livros de Palladio, Residências em São Paulo 1947-75 pode ser considerado, principalmente aos olhos atuais, como um equivalente em relação à produção da Escola Paulista, particularmente ao Livro II do tratado palladiano, no qual o mestre veneziano discorre sobre sua experiência ao projetar e construir casas-sede de fazendas, as villas, estabelecendo também os sistemas de cálculo paramétrico das dimensões de cada volume e espaço interno.
Os arquitetos formados no século 21 e os estudantes nascidos nos anos 1990 podem se perguntar por que causaria tanto impacto um livro sobre projetos de casas unifamiliares da Escola Paulista, ao invés de programas mais complexos, como escolas. Na década de 1980 ainda era possível a uma classe média paulistana morar em residências unifamiliares, o que seria mais difícil nos tempos de hoje. E o projeto residencial era considerado pelos arquitetos da Escola Paulista como um laboratório de pesquisa formal e construtiva. As cidades como casas e as casas como as cidades, como disse Artigas, quase citando Alberti.
Levando-se em consideração que o compêndio de Marlene Acayaba não pretende configurar-se como um tratado pedagógico de ensino de projeto per se (o caso dos quatro livros de Palladio), existe claramente uma preocupação didática na forma de apresentar e discutir os projetos, e que revela em sua própria sistemática o discurso dos arquitetos modernos paulistas.
De fato está tudo lá: princípios projetuais como a estrutura ordenando a distribuição das funções e ambientes do programa (aqui tomando emprestado uma leitura de Espallargas, ver abaixo), o espaço central de vivência em galeria com iluminação zenital, ao redor do qual se organizam os espaços sociais, íntimos e de serviços da casa; a dissolução dos limites entre interior e exterior (onde começa e termina a casa?), a harmonia dialética entre jardins e construção, e o diálogo que se cria com o sítio, seu entorno, o bairro e a cidade.
Esta última questão se manifesta de forma singela na apresentação de cada projeto selecionado pela autora, através de um fragmento dos indefectíveis mapas planialtimétricos Gegran / Emplasa da cidade em escala 1/2000. Tratava-se de uma escolha óbvia numa época em que não havia outros recursos de geoinformação, como atualmente temos, e tais mapas mostravam nitidamente as curvas de nível, hidrografia, sistema viário, quadras e lotes. Desta forma, o memorial com mapa sugeria o diálogo da proposta em relação ao sítio e sua topografia, e os condicionantes naturais e construídos do entorno; e de como a legislação de uso do solo impunha um tipo de ocupação que era, geralmente, discretamente contestada pelo próprio projeto.
Os desenhos dos mapas Gegran / Emplasa, feitas ainda manualmente a partir de reconhecimento aerofotogramétrico na década de 1970, tem notável qualidade gráfica (pesos de pena, grafismos de representação, bom padrão de normografia) diante da produção de mapas digitais posterior. Da mesma forma, as plantas e os cortes destacam-se pela alta qualidade gráfica. Não se tratam de reproduções dos desenhos originais, mas de re-desenhos das peças originais para fins de padronização da publicação, esforço não usual e corajoso na época. O resultado foi extremamente feliz, na medida em que os desenhistas pensavam de forma tectônica, construtiva, pés-no-chão, de quem sabe que está se representando uma obra construída (ao contrário de tantos exemplos virtuais atuais, de representação digital).
Daí o fato de que, apesar da escala 1/100, é possível perceber, principalmente nos cortes, detalhes arquitetônicos e construtivos que os desenhistas sabiam que eram importantes para se representar, pois resolviam questões importantes como a forma da cobertura (vigas invertidas, platibandas, vigas-calha, gárgulas, lajes em caixão-perdido, lajes nervuradas, sheds, treliças metálicas, abóbadas, etc.), caixas d’água e seus apoios, escadas, corrimãos, peitoris, passarelas, terraços-jardins, espelhos d’água, jardineiras, janelas com ou sem esquadria, banheiros e cozinhas, transições de piso e soleira, mobiliário embutido – tudo reforçado por fotografias pertinentes.
Estes detalhes tinham que constar das plantas e cortes pois não foram desenhados pelos arquitetos para resolver algum problema não previsto nas etapas anteriores de escala 1/200 e 1/100, mas porque nasceram como parte essencial da concepção projetual, servindo não apenas para resolver uma função, mas para resolver ou melhorar uma qualidade arquitetônica do projeto em sua totalidade integral. Detalhe no sentido vitruviano do termo, e tão destacado por Alberti e Palladio, onde as partes são indissociáveis e correspondentes ao todo, o todo indissociável e correspondente às partes, e as partes em relação às partes:
“A beleza resultará da forma e correspondência com o todo, com respeito às várias partes, das partes com atenção a um e outro, e destes de novo em relação ao todo; que a estrutura pode aparentar um corpo complexo e inteiro, no qual cada membro concorda com o outro, e tudo necessário para compor o que tu pretendes formar” (Palladio, I Quattro Libri dell’architettura, Livro I, capítulo I, 1570).
A feliz reedição facsimilar de 2011, da Romano Guerra Editora, vem acrescida de um pós-escrito ilustrado com o material de imprensa relatando o lançamento da obra (de comparação interessante com a cobertura online dos lançamentos de hoje), e que constitui uma memória preciosa dos arquitetos paulistas mais importantes da época. E um adendo simpático: uma tira vermelha de elástico tipo caderno moleskine.
Ícaro de Castro Mello – principais projetos, organização de Joana Mello (15)
Nos primeiros anos do século 21, algumas editoras investiram, pela primeira vez no quadro histórico brasileiro, na publicação de livros para arquitetos e estudantes de arquitetura – os motivos são variados e fogem ao escopo desta resenha. É o caso da série Portfólio Brasil / Arquitetura da J.J. Carol, que nos honrou com a publicação desta primeira monografia da obra de Ícaro de Castro Mello (1913-1986), um dos poucos arquitetos modernos brasileiros a se especializar no campo da arquitetura esportiva, e de forma qualificada. Título que veio a reforçar a pouca bibliografia existente sobre o tema.
Existe até hoje uma carência no Brasil da bibliografia de arquitetura especializada ou tipológica, como no caso dos edifícios para atividades esportivas ou hospitais – e sente-se mesmo uma aversão à especialização e até um desencorajamento na pesquisa de arquitetura tipológica, apesar da bem considerada monografia de Nikolaus Pevsner, A History of Building Types (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1976). No caso da arquitetura esportiva, durante as décadas de 1970-80 a única referência de projeto era o ótimo Os esportes – traçado e técnica construtiva dos campos esportivos, de Nestor Lindenberg, muito bem organizado e desenhado (São Paulo, Cultrix, 1976). Posteriormente tivemos alguns novos títulos como Patrica Totaro – arquitetura esportiva, de Cris Correa (São Paulo, C4, 2011), mas ainda é uma bibliografia escassa.
Hoje os estudantes de arquitetura, e mesmo os jovens arquitetos, parecem não conhecer ou entender a importância icônica da obra de Ícaro de Castro Mello na história do Movimento Moderno no Brasil, para além da arquitetura esportiva. A reverência que havia ao arquiteto, atleta olímpico e militante da arquitetura, se perdeu. Esta monografia coordenada por Joana Mello contribui para resgatar a obra e memória de Ícaro, sem ter encerrado o assunto, pois uma breve olhada na cronologia “Projetos e obras” (p. 60-67) permite verificar que, com uma produção extremamente prolífica e interessante (de 1936 a 1986, incluindo exemplos internacionais), deve ter sido difícil selecionar o que deveria ser publicado, tanto em termos de projeto como de imagens. Entretanto, a cronologia indica que, para fazer justiça à obra de Ícaro, seria necessário uma futura publicação de maior porte.
É evidente que a organização da pesquisa sofreu com as limitações de páginas e espaço de texto, do formato-padrão de qualquer série editorial temática, sem que se desmereça o mérito de sua publicação. Tais limitações são reforçadas por ser um catálogo de exposição, também para a 6ª Bienal Internacional de Arquitetura (2005), tal como a monografia sobre Eduardo de Almeida descrita acima por Luis Espallargas.
Todavia, a seleção de projetos é extraordinária. Temos exemplos consagrados de ginásios esportivos como os do Ibirapuera (1952-57), Fortaleza (1964-71) e Brasília (1970-73); bem como exemplos menos conhecidos, mas notáveis, como o do Sesc Bertioga (1962-64). Há exemplos de estádios bem conhecidos, como o de Brasília (1972, depois ampliado para a Copa do Mundo de 2014, pelo escritório do arquiteto); bem como exemplos não concluídos (Rio Claro, 1967) e não construídos, como o magnífico projeto para o Sport Club Corinthians Paulista de Itaquera (1980), injustamente esquecido pela imprensa geral nas discussões sobre a futura Arena Corinthians para a Copa de 2014.
Uma questão importante é o projeto de grandes conjuntos para esportes e lazer, implantados em sítios verdejantes, fora dos bairros centrais, os principais sendo as unidades do SESI ou Sesc construídos nos anos 1960-90 (ao vê-los, reparamos como tais empreitadas deixaram de ser produzidas a partir da década de 1990, não cabendo espaço nem escopo aqui para discutirmos as razões). Os projetos apresentados na publicação são exemplos modelares de implantação em terrenos amplos, de geometria irregular e topografia acidentada, com mata e cursos d’água existentes, e de acesso complicado. Muitos não foram concluídos integralmente. Entre esses exemplos, o Esporte Clube Sírio em São Paulo (1950-55), a Associação Atlética Banco do Brasil em São Paulo (1959) e o Sesc Itaquera (1984-92).
Esta publicação foi selecionada como um tratado não apenas em função do tema e da grande qualidade projetual dos exemplos da carreira de Ícaro de Castro de Mello. Pode ser considerada como tal por apresentar uma cronologia de projetos, uma bibliografia de referências, pelos textos de Joana Mello apresentando cada tipologia arquitetônica onde atuou o arquiteto; pelos depoimentos e um memorial biográfico de Alberto Xavier, que embora breve e sintético, conta um pouco do Ícaro atleta e militante da consolidação profissional dos arquitetos no IAB, uma luta pouco lembrada nos dias de hoje, e travada em tempos difíceis da história brasileira recente. E por fim, pela quantidade de fotos e desenhos técnicos como plantas, cortes e elevações – todos, sem exceção, interessantes e reveladores.
Aqui cabe um reparo em relação ao projeto gráfico do livro. A capa em si tem uma expressividade soturna, quase sinistra, nada a ver com a alegria e a energia dos estádios, ginásios, quadras e piscinas apinhadas de gente numa tarde ensolarada de verão, que sempre associamos à arquitetura de Ícaro de Castro Mello. E as dimensões diminutas dos desenhos prejudicam a sua compreensão (e são desenhos bem didáticos, os cortes explicam e dimensionam todo o projeto, inclusive a estrutura e cobertura). Ainda por cima, a baixa resolução gráfica também prejudica a leitura de vários desenhos.
Este resenhista, ainda como estudante de arquitetura, guardou um exemplar da revista A Construção em São Paulo onde foi apresentado projeto de Ícaro de Castro Mello para o estádio do Corinthians, como reportagem de capa, no artigo “ ‘Salve o Corinthians!’ O projeto do estádio já está pronto – Estádio corintiano foi projetado para ser o maior e melhor equipado do mundo” (16).
Só nesta revista (de comprimento e largura um pouco superior ao do livro) é possível vermos uma magnífica perspectiva a nanquim do interior do estádio, com milhares de torcedores com faixas e bandeiras corintianas desenhadas uma a uma (uma grande lição para quem faz esses “renderings” atuais em computador, tão coloridos, artificiosos e sem vida); uma bela perspectiva externa, uma implantação extremamente bem desenhada, cortes complexos, e também muito bem elaborados; e fotos da magnífica maquete. A reportagem em, si, sem autor, é um verdadeiro memorial de projeto (além de anexar uma pequena crônica) deste estádio, infelizmente nunca executado, e esquecido por todos na empreitada delirante que foi fazer a Copa do Mundo no Brasil do século 21. Para o resenhista, as dimensões e qualidade gráfica dos desenhos desta revista são as que deveriam ter balizado o projeto gráfico da edição da J.J. Carol.
Marcos Acayaba, de Marcos Acayaba (17)
Até hoje um item de desejo na biblioteca de qualquer estudante de arquitetura que se preze em sua paixão pelo desenho (mas atualmente um pouco difícil de comprar), a monografia sobre e por Marcos Acayaba constitui um raro exemplo, remontando a Palladio e I Quattro Libri dell’architettura, de um arquiteto que apresenta e discute sua própria obra arquitetônica de forma honesta, crítica, didática, mas despretensiosa, e com clareza de escrita – deste que é um dos arquitetos brasileiros contemporâneos mais publicados no Exterior. Os bons textos de Hugo Segawa, Júlio Roberto Katinsky, Guilherme Wisnik acentuam e esclarecem a forma de pensar e projetar do arquiteto.
Aliás, esta é a questão fundamental: mais do que um catálogo raisonné de sua obra, aqui o arquiteto abertamente discute seus procedimentos de projeto caso a caso, inclusive suas influências e inspirações, suas referências de projeto. Há uma seleção rigorosa de projetos, em ordem cronológica sem distinção de tema, o que indica uma intenção de registrar honestamente uma evolução de ideias projetuais ao longo da carreira. A “Cronologia de Projetos” no final (p. 262-268) mostra um portfólio monumental de propostas, projetos e obras entre 1965 e 2006, mas a seleção de projetos, fotos e desenhos é adequada e satisfatória (embora, na cronologia, há vários projetos e obras que atraiam muito a curiosidade). Há também uma preciosa seleção bibliográfica sobre as obras (p. 269-270). E as fotos de Nelson Kon, proverbialmente magníficas.
A obra residencial, bem conhecida, dispensa maiores comentários, bem como as agências bancárias, escolas, o Pavilhão Pindorama. Há os registros de projetos urbanos pouco comentados hoje, mas de grande qualidade, como sua proposta para o concurso público do IAB-SP de Reurbanização do Vale do Anhangabaú (1981) e a proposta para a Reurbanização da área do Carandiru (1980-82). Há o pouco divulgado projeto para o Coliseum na Marginal do Rio Pinheiros (1982), quase uma surpresa. A sua proposta para o concurso fechado de projetos para o MuBE – Museu Brasileiro da Escultura ainda mantém um encanto peculiar e compara bem com a proposta vencedora, e celebrada, de Paulo Mendes da Rocha. E vemos a sequência das extraordinárias casas-árvore a partir de 1987 (com a Residência Hélio Olga), projetadas com o sistema GMTAT – Grelha de Madeira Treliçada Auto Travada.
Em todos os casos, há um memorial de projeto (que também é uma pequena crônica de projeto e obra), onde o arquiteto discute de forma franca o programa e o sítio apresentado pelo cliente, as dificuldades detectadas e de como se chegou na solução projetual-construtiva, incluindo problemas e soluções de canteiro, os impasses e as conclusões – caso raríssimo na historiografia de projeto no Brasil, daí sua preciosidade. Como escrevemos acima, que forma melhor haveria de se aprender o fundamento de uma profissão, ou de refletir sobre ela?
Em 2017 completam-se 10 anos da publicação deste título. A curiosidade é grande: que outras obras o arquiteto terá concluído nessa década? Não seria o caso de uma edição ampliada da monografia? Não faltariam leitores.
Para evitar cair num formato muito longo e pesado, a continuação deste texto está em sua parte-II, a seguir. No próximo texto discutiremos publicações que abordam obras dos arquitetos Marcello Fragelli, Salvador Candia, Antonio Carlos Barossi, Pedro Paulo de Melo Saraiva e João Kon.
notas
NE - Primeira parte do texto disponível em: FUJIOKA, Paulo Yassuhide. Tratados brasileiros de arquitetura moderna. Aprendendo arquitetura com quem faz – parte 2. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 182.01, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.182/6403>.
1
GUERRA, Abilio; SERAPIÃO, Fernando; ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis (Orgs.). João Kon, arquiteto. São Paulo, Romano Guerra, 2016.
2
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. A propósito do juízo da arquitetura paulistana. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 105.02, Vitruvius, fev. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.105/73>. Do mesmo autor, ver: ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Arquitetura paulista da década de 1960: técnica e forma. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2004; ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. O recuo brutalista. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.01, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5041>.
3
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Autenticidade e rudimento. Paulo Mendes da Rocha e as intervenções em edifícios existentes. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 001.04, Vitruvius, jun. 2000 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.001/1006>.
4
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Pedro Paulo de Melo Saraiva. São Paulo, Romano Guerra / Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2016.
5
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995.
6
VÁZQUEZ RAMOS, Fernando Guillermo. Os tratados do século XX: edições especiais. Revista Arq.Urb, São Paulo, n. 5, USJT, 2011 <www.usjt.br/arq.urb/numero_05/arqurb5_07_artigo_fernando_vazquez.pdf>. Do mesmo autor, ver: VÁZQUEZ RAMOS, Fernando Guillermo. Redesenho. Conceitos gerais para compreender uma prática de pesquisa histórica em arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.09, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6181>.
7
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. O melhor detalhe é aquele que não se vê. In GUERRA, Abilio (Org.). Eduardo de Almeida. Coleção Arquiteto Brasileiro Contemporâneo, volume 1. São Paulo, Romano Guerra, 2006, p. 12-37.
8
WISSEMBACH, Vicente (org.). Sidonio Porto um intérprete de seu tempo. Texto de Monica Junqueira de Camargo. São Paulo, PW Gráficos Editores Associados, 2009.
9
SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme Mazza. Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo, ProEditores, 1997.
10
CAMARGO, Monica Junqueira. Joaquim Guedes. São Paulo, Cosac Naify, 2001.
11
ARTIGAS, Rosa (org.). Vilanova Artigas. São Paulo, Terceiro Nome, 2015.
12
BRAZIL, Álvaro Vital, Cinquenta anos de arquitetura. São Paulo, Nobel, 1986.
13
ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo 1947-75. São Paulo, Projeto, 1987.
14
ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo 1947-1975. RG facsimile, volume 1. São Paulo, Romano Guerra, 2011.
15
MELLO, Joana (org.). Ícaro de Castro Mello – principais projetos. Série Portfólio Brasil / Arquitetura. São Paulo, J.J. Carol, 2005.
16
Vários autores. “Salve o Corinthians!” O projeto do estádio já está pronto – Estádio corintiano foi projetado para ser o maior e melhor equipado do mundo. A Construção em São Paulo, São Paulo, ano 34, n. 1759, Editora Pini, 26 out. 1981, p. 4-13.
17
ACAYABA, Marcos. Marcos Acayaba. Textos de Marcos Acayaba, Hugo Segawa, Júlio Roberto Katinsky, Guilherme Wisnik. São Paulo, Cosac Naify, 2007.
sobre o autor
Paulo Yassuhide Fujioka é arquiteto, mestre e doutor pela FAU USP, professor do IAU USP de São Carlos. De 1997 a 2000 foi Assistente de Curadoria da 3ª e da 4ª Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo, evento organizado pela Fundação Bienal e pelo Instituto de Arquitetos do Brasil.