A cidade conversa através de seus ruídos, que denunciam suas dinâmicas e ambientam as suas histórias. São estes os mesmos que dão o tom e o nome à obra de Kleber Mendonça Filho que estrou em 4 de janeiro de 2013 – O som ao redor (1). Cabe ao som conceber o ar intrigante da trama, ao passo que rodeia à rotina característica das personagens: seja através do latido incansável de um cachorro que perturba a vida, pelo barulho e helicópteros ou até o próprio silêncio de uma rua que é cada vez mais vazia de gente. O filme é ambientado na rua Setúbal, no bairro de mesmo nome no Recife, mas simbolizando um cenário urbano maior, provável interpretação de um cenário brasileiro da contemporaneidade.
A rotina denuncia o enfoque social do filme. A casa enquanto cenário inicia uma diferenciação primária dos perfis de cada personagem: há quem viva em casa e em apartamento, em maior ou menor requinte, quem aparece mais em áreas de serviço ou sociais. A relação de cada uma das personagens centrais com os seus respectivos funcionários domésticos também elucida suas personalidades – seja na presença de uniforme, no tratamento, ou mesmo na ausência dessa figura. Essa elucidação, porém, não se restringe ao funcionário em si, relações marcantes para a identidade das personagens partem do ambiente de serviço: do rapaz simpático que é “amigo” da funcionária e toma café da manhã com a filha dela à mesa, até a mãe de família que se “entretém” com a máquina de lavar quando está sozinha em casa.
A medida que a trama caminha, o roteiro começa a nos apresentar as relações entre cada um destes agentes que o compõe. As principais relações entre eles são familiares, mas os círculos se demonstram num ambiente de interesses – João que é personagem central, tem seu pai apresentado à trama porque busca por informações, seu primo porque acredita que ele furtou o som de sua namorada e o avô porque é seu empregado; e Bia, outra personagem central, é atacada pela irmã por ter comprado uma televisão maior que a dela.
Posterior à essa primeira abordagem, a discussão se expande a fim de construir seu enfoque maior. Em paralelo, o filme desenvolve seu cenário em questões pertinentes às discussões do urbanismo, também agravadas pela sociedade de interesses: a (in)segurança na cidade, a transformação da dinâmica urbana, a memória sendo engolida pelos grandes empreendimentos, as relações conflitantes entre público e privado, o agravante comercial na moradia. Por desconhecer Recife, a percepção se volta estritamente ao que é retratado no filme, sendo estes problemas que provavelmente marcam a vida na cidade e que, nem de longe, são particularidades de lá.
Pode-se julgar que a figura mais importante da trama é mais próxima do antagonismo: Francisco é misterioso, sabe-se que é dono da maioria dos imóveis na região e, por isso, tem maior influência. Apesar do mistério principiante, é este quem esclarece toda a dinâmica e o propósito do filme. A pista é clara: a posse de um engenho conta ao telespectador a relação deste e suas propriedades residenciais com um coronel e suas terras, podendo ser compreendida até em uma leitura menos atenciosa. A personagem funciona quase como um elo entre gerações exploradoras de temporalidades diferentes, mas essencialmente análogas.
Pode-se colocar, enfim, O som ao redor como um retrato de denúncia da nova roupagem do coronelismo não só no Recife, apesar de este ser o cenário, mas na dinâmica urbana e social brasileira como um todo: a política brasileira é historicamente galgada nesses preceitos, o que recai sobre todos as esferas da sociedade. A realidade é que, apesar da passagem de tempo, o Brasil ainda é arcaico. O recente embate de interesses entre Geddel Vieira Lima – Ministro-chefe da Secretaria de Governo – e o Iphan no caso do edifício La Vue é um exemplo claro. As terras apenas foram substituídas pelos imóveis, as cercas pelos muros, os capangas por seguranças... A única coisa que se mantem é o capital: seja no passado ou no presente, quem dita as regras ainda é quem tem mais. Quase quatro anos depois o filme ainda se faz atual e deixa a amarga sensação de que esse status permanecerá.
notas
NE – resenha de outro autor sobre mesmo filme: SENS, Caio. Um intruso no condomínio. Apontamentos acerca de O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 166.02, Vitruvius, out. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.166/5767>.
1
O som ao redor, roteiro e direção de Kleber Mendonça Filho; produção de Emilie Lesclaux. Brasil, CinemaScópio, 131’, 2012. Com Irandhir Santos, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, W.J. Solha, Irma Brown, Yuri Holanda, Lula Terra, Albert Tenorio, Nivaldo Nascimento, Clebia Sousa e Sebastião Formiga.
sobre o autor
João Paulo Campos Peixoto é aluno de graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Uberlândia e atual conselheiro titular no Conselho do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Cultural de Uberlândia – Comphac.