Há livros que se tornam grandes amigos dos seus leitores. Este é o caso do livro aqui resenhado. Ele me guiou por uma verdadeira incursão por temas que me são muito caros, como a literatura, a poesia, o budismo, as paisagens. Ainda cultivo na memória a capa desenhada do seu exemplar dos velhos e saudosos anos 1980. Hoje em dia, é possível encontrar este livro até em formato eletrônico (1). Seu autor é o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Consagrado poeta e escritor, professor da Universidade de Buenos Aires e diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina, Borges dispensa maiores apresentações.
O livro Sete Noites consiste de sete ensaios. Trata-se de um livro pequeno, conciso e profundo. Nele, Borges nos encanta com histórias várias de sua vida, inclusive com lembranças carinhosas. É o caso do relato de uma ocasião em que ouviu um sobrinho lhe contar que sonhou que Borges estava na casinha de cachorro – ao que a criança logo emendou: “o que você estava fazendo lá?”
Conduzindo-nos com igual zelo, Borges aborda temas como o Himalaia, os hindus, as lendas, as religiões, a ioga, a literatura épica, a poesia (desde Homero a Oscar Wilde). Nos desdobramentos desses temas se encontram alguns dos mais interessantes aportes do livro. Aqui serão resumidamente abordados apenas dois deles: a chamada “Fé Poética”, e a tarefa de ser poeta.
A Fé Poética é um conceito resgatado por Borges de uma afirmativa de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), que a definiu como “uma suspensão voluntária da incredulidade”. O primeiro exemplo com que Borges a ilustra é o do teatro. O escritor argentino nos propõe a pensar numa apresentação teatral, em que sabemos que os atores estão fantasiados, repetindo falas de peças de Shakespeare, Ibsen ou Pirandello. Pois bem, detenhamo-nos no Hamlet, de Shakespeare. A propósito dele, escreve Borges: “aquele ator fantasiado que monologa lentamente na antecâmara da vingança é de fato Hamlet, o príncipe da Dinamarca. E nos abandonamos a ele” (p. 27).
Prosseguindo em sua exploração do conceito, Borges ilustra a Fé Poética com outro caso: evoca nossa situação como plateia do cinema, caracterizando-a como ainda mais curiosa, pois, em suas palavras, no cinema “já não estamos vendo sequer alguém fantasiado: vemos a fotografia de um disfarce. E, no entanto, acreditamos nelas enquanto dura a projeção” (p. 27). Quem nunca sentiu isso ao se entregar, em uma sala escura, à realidade fílmica – aquela que se passa na tela, durante a sessão de cinema, que a faz real.
Em outra entrada em Sete Noites, Borges, abordando a literatura clássica, e fazendo dialogar Homero e Oscar Wilde, nos oferece preciosas reflexões sobre a leveza e a profundidade; e, ainda, sobre a nossa credulidade na antiguidade (“Homero, de fato existiu?”, pergunta Borges). Se existiu ou não, isso não nos impede de crer em Homero, como podemos crer em Wilde, num exercício de “Fé Poética”. Aqui chegamos ao segundo tema a destacar: a tarefa de ser poeta. Eis como Borges a enuncia:
“O escritor vive como escritor. A tarefa de ser poeta não se realiza num horário fixo: ninguém é poeta das oito ao meio-dia e das duas às seis. O poeta é poeta sempre e se vê continuamente assaltado pela poesia” (p. 181).
Qualquer semelhança com a vida de Paterson (2), personagem poeta enfocado no filme de mesmo nome, pode não ser mera coincidência (!). Quantos escritores e poetas não se veriam nesta mesma situação? Este pensamento de Borges me traz à lembrança uma reflexão de Virgínia Woolf, em que a escritora revela:
“chego à conclusão de que o que faz de mim uma escritora é a capacidade de receber choques. Arrisco-me até a afirmar que, no meu caso, o choque é imediatamente seguido do desejo de explicá-lo” (3).
Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino nos oferece, logo de entrada, quatorze definições do que seja “um clássico”. Entre elas, destaco a de número sete, a seguir:
“7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (4).
Por tudo o que acima foi dito sobre Sete Noites, e pelo que o livro abarca de culturas diversas, é impossível não considerá-lo um clássico. Compreendendo o ofício do poeta e do escritor, contando casos de família, refletindo sobre o Oriente e o Ocidente, Buda e Cristo, credulidade e crença; explicando como uma lenda inspira outra, destinando-nos seus mais diversos pensamentos, Borges nos conduz por uma verdadeira expedição literária por suas Sete Noites – um clássico.
Boa leitura!
notas
1
BORGES, Jorge Luis. Oral e Sete Noites. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
2
Paterson. Direção de Jim Jarmusch. Com Adam Driver, Golshifteh Farahani, Rizwan Manji. Drama, 118 min, 2016.
3
WOOLF, Virginia. Momentos de vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 84.
4
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 11.
sobre a autora
Eliane Lordello é Arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), e Doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). É Arquiteta e Urbanista da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura.