A publicação Memória moderna de São Paulo, editada pelo Grupo Contravento em 2017, é sem dúvida documento precioso, seja por seu conteúdo, seja pela forma que toma: apresenta textos, entrevistas e desenhos do que seria o Corredor das Humanas na USP, e que não chegou a se concretizar (sendo apenas os edifícios da FAU e da FFLCH construídos). Suas qualidades são visíveis aos olhos de quem a manipula e pode acessar seus textos e seus desenhos. O que poderia ser dito sobre essa publicação, sem reproduzir seu próprio conteúdo? Talvez um caminho, pouco seguro, seja buscar o que não a enaltece à primeira vista, ou buscar o que nela possa existir de inconsistente – e logo se verá o contrário. Buscar como a articulação entre palavra e imagem, e entre forma e conteúdo, se materializa nesse volume.
Também seria possível buscar na arquitetura moderna ou no projeto construtivo brasileiro as raízes dessa articulação: visível no tratamento gráfico, por meio da composição dos textos em Helvética ou pelas representações austeras dos edifícios em questão.
Mas essa articulação (e não a simples justaposição) é própria da produção artística contemporânea, e é olhando para esse volume como obra complexa (e não documento inerte) e atual, buscando seus erros, que se pode encontrar seus acertos. Pensemos então em alguns deles, a partir da oposição entre erro e acerto, mas também entre o que é belo e o que é brutto.
Parte da arquitetura paulista dos anos 1950 aos 1970 é referida como brutalista. Não cabe aqui investigar a origem do termo como adotado pela crítica e pela historiografia – Ruth Verde Zein já o fez (1). Propõe-se um desvio: brutto, em italiano, seria a antítese do belo. E, na Estética, brutto e belo podem coexistir como predicados. O que o Corredor das Humanas e o volume em questão têm de brutto?
Memória moderna de São Paulo foi impresso em risografia, sobre um papel sem revestimento, suas páginas são apenas coladas. O Corredor das Humanas não foi construído em sua totalidade e junto com seus edifícios foram dissolvidos projetos estéticos e políticos.
A risografia não permite imprimir grande formatos, então foi preciso escolher: ou um acabamento com cadernos costurados entre si, tornando o volume maleável, possível de ser aberto sem dificuldades e resistente ao manuseio, mas restringindo o tamanho final da página; ou a bruttezza de folhas coladas no dorso, mas que podem se desdobrar em outros sentidos, possibilitando os grandes planos em que são impressas as plantas, sem intervalos ou quebras. Uma negociação constante entre forma e função.
A risografia também tem limitações quanto à construção das retículas e ao registro. Ponto, linha e plano comportam-se de maneira diferentes em relação à impressão em offset, muito mais precisa e, de certa maneira, fidedigna – ou não, e Aloísio Magalhães e Eugene Feldman o provam com Doorway to Brasília (2). Em comum entre os métodos de impressão só há o vazio, aquilo que não recebe tinta. É esse mesmo vazio o que há de comum entre os edifícios das Humanas: ponto, linha e plano geram espacialidades diversas nos desenhos de Corona, Millan, Saraiva, Rocha, Artigas e Guedes – passíveis de atravessamento pelo que, vulgarmente, se denomina vazio. E seria nesse vazio intra e entre as edificações que um espaço humanista (mais que das humanas) seria explorado (e felizmente o é, na FAU e na FFLCH).
Os desenhos das plantas, concebidos a partir de um rigor construtivo, geométrico, são impressos de maneira brutta pela risografia: os ângulos não são precisos, as retas são corroídas, as curvas carecem de pontos. E é belíssimo saber que a FAU ou a FFLCH padecem dessa mesma brutezza em sua execução enquanto construção e matéria. Ainda mais significativo é pensar que, por não serem exatos, esses desenhos não podem ser tomados como documentos certeiros, como levantamentos as built. São documentos de si mesmo, e não do que existe ou deveria existir. Afinal, FAU e FFLCH foram construídas, mas como representar as demais obras, que não foram levadas a cabo? Ou que FAU e que FFLCH estão ali representadas? Um dos maiores problemas da preservação do patrimônio moderno diz respeito ao uso de documentos idealizados – desenhos precisos e fotografias ardilosas. Abrir mão de fotografias, maquetes e desenhos mais detalhados devolve a esses edifícios um estado de suspensão, de memória.
E que memória se tem de São Paulo? Seria moderna a memória? Ou a cidade? A memória, como construção social, traz consigo contradições, “se dá no presente e para responder a solicitações do presente”, como ensina Ulpiano B. de Menezes (3). Memória moderna de São Paulo não quer ser registro definitivo, parece surgir dessa solicitação presente, em que nos perguntamos para onde vai a cidade, a democracia, a liberdade, ou mesmo para onde tudo isso poderia ter caminhado. E então esse volume é todo permeado por uma imagem-texto que se furta a uma leitura e identificação imediatas: são as palavras de Blaise Cendrars a rememorar São Paulo, “nem antigo nem moderno”.
Seu poema “São Paulo” poderia ser a própria publicação – e então tudo mais seria só ilustração, anexo, apêndice. “São Paulo” é figura, enquanto os demais elementos são fundo. Mas essa dicotomia não é real nesse volume: figura e fundo se alternam e se mesclam em linhas paralelas, das quais saltam a tipografia desenhada especialmente para a publicação (notem que é só uma a tipografia, que ganha dois pesos não em seu corpo, mas pela justaposição às linhas paralelas). Dessa mesma matriz tipográfica surgem silhuetas: ora são arquitetos – Mendes da Rocha, Melo Saraiva e Delijaicov, que concederam depoimentos para a publicação –, ora são a própria cidade. E São Paulo vai se construindo de memórias, pessoas e edifícios que se alternam.
Ao contrário do que possa parecer, não há zona de conforto nem muitas certezas em Memória moderna de São Paulo. É na sua elegante experimentação – textual e imagética, formal e material –, que ficam impressas as memórias contemporâneas de projetos futuros.
notas
1
ZEIN, Ruth Verde. Brutalismo, sobre sua definição. (ou, de como um rótulo superficial é, por isso mesmo, adequado). Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 084.00, Vitruvius, maio 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/243>.
2
MAGALHÃES, Aloisio; FELDMAN, Eugene. Doorway to Brasilia. Nova York, Philadelphia Falcon Press, 1959.
3
MENESES, Ulpiano Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 34, São Paulo, 1992, p. 11.
sobre o autor
Pedro Augusto Vieira Santos é arquiteto (2010), mestre (2015) e doutorando (bolsa Capes) pela FAU USP. Desenvolve pesquisas nas áreas de História e Preservação da Arquitetura e História da Arte. Fundador da Ikrek Edições, editora dedicada à produção de livros de artista.