Retardei o quanto pude para ver O Processo, o documentário de Maria Augusta Ramos (1). Obviamente não porque o diretório de cinema da Folha de S.Paulo concedeu-lhe duas reles estrelinhas, e o da Veja só uma. Mas porque os críticos e meus amigos o tempo todo enfatizavam o quão penoso era acompanhar aquela reconstituição do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Há por certo objeções que a crítica e o público poderiam com razão levantar ao documentário internacionalmente premiado. Do ponto de vista estético: seu didatismo e linearidade, por exemplo; ou do ponto de vista político: sua leitura restrita aos eventos e personagens do Congresso; sua quase indiferença ao judiciário e mesmo à Lava Jato, e a Sérgio Moro, mencionados apenas en passant; o papel de figurante reservado à imprensa; o viés adotado pelo filme, claramente favorável à defesa.
Como também é claro que quaisquer dessas objeções poderiam ser respondidas de modo convincente. Mas como espectador interessado no assunto, digo logo: gostei muito! A despeito de toda e qualquer ressalva, por mais pertinente que seja. Achei um filme necessário, indispensável mesmo, ainda que duro, e por vezes até indigesto, tal o grotesco do evento como um todo, catastrófico, traumático, recente demais, e que não cessa de nos lançar em um tsunami de retrocessos, cotidianamente sentidos, sofridos, sem fim. Achei-o coerente, bem ambientado naquelas salas de reunião desalmadas, corredores, plenários e palácios de Brasília, às vezes observados no silêncio do concreto, às vezes no rumor que os atravessa, senão entrecortados lá fora, pela tensão nervosa das massas acampadas na esplanada dos ministérios ou na praça dos três poderes.
Seu recorte é claro, e seus personagens e fatos são dos mais relevantes. Apoiando-se em um material de campo precioso, colhido em primeira mão e no calor da hora, o filme não recorre a entrevistas diretas, nem a narradores em off, nem praticamente a imagens de arquivo. Ao contrário, é o trabalho de edição dos flagrantes colhidos in loco, de situações, falas, gestos, semblantes, ações e reações, no aqui e no agora, nos holofotes e bastidores do processo, que confere inteligibilidade ao roteiro, acentuando ao mesmo tempo a modorrenta eficiência e a pompa implacável da burocracia jurídico-política. Mas gostei também, certamente, porque ao fim e ao cabo trata-se de uma leitura do episódio por um prisma com o qual me identifico.
Mas não é do filme em si que eu queria falar aqui. Mas de como o senti. Ao longo da sessão, fiquei me perguntando por que demorara tanto a ir ao cinema e por que estava sendo tão penoso assisti-lo. E enquanto o via, às vezes com vontade de sair, de falar alto, de ironizar alguma fala ou performance, de partir pra cima de alguns daqueles golpistas asquerosos, indagava-me se esta minha dificuldade não teria algo a dizer dos enormes recalques que temos tido que produzir para sobreviver psiquicamente nessa maré gigantesca de choque, ataque, perdas, desalento e agonia. Sim, porque se não cesso de indignar-me com o fim da democracia e das instituições republicanas em meu país, sinto-me ao mesmo tempo naufragar na marcha avassaladora das coisas, sem fôlego de resistência, sem esperança na mobilização popular nem em minhas próprias capacidades de regeneração, à maneira blasé, de alguma autonomia.
E se esse espectador aqui é o que menos importa – um homem branco no Brasil, dos 10% de cima, estabelecido profissionalmente, aparentemente dotado de recursos suplementares de racionalização e evasão – enquanto eu assistia O Processo, perguntava-me se não estaria sentindo – de meu modo específico – algo mais generalizado e enraizado nas massas hoje do que um mero mal estar individual: a sensação de estar de algum modo me ajustando no transtorno permanente, de paralisia no desassossego, de incapacidade de agir e ao mesmo tempo de desenvolver qualquer fisiologia de autopreservação de minha vida de sujeito ante a ruína da sociedade brasileira.
Uma sensação por certo fabricada a grosso e administrada dia a dia pelo Estado, pela economia do dinheiro, pelo espírito do capitalismo, com seus arsenais transcendentais, religiosos, ideológicos, midiáticos e outros, mas que parece tocar fundo e no singular milhões e milhões de pessoas, embotando todo poder de auto-elaboração individual, de discriminação do valor, significado e potência do que está em curso, e de nossas reais possibilidades de superação. Pois se cada vez mais evidenciam-se as forças colossais disseminadas na multidão e a expansão de seu pendor para a recusa, suas capacidades de afirmação e transformação vem sendo comprimidas aos níveis mais infames de humanidade.
Talvez tenhamos que realmente enfrentar de cara, e muitas vezes essa espécie de trauma coletivo, ver muitos filmes como esse, ler muitos livros e reportagens, inclusive aquelas mais intragáveis, lembrar e lembrar e lembrar, martelar o passado, chorar um monte, para que talvez sejamos capazes de contar essa história de outra forma, menos kafkianamente; ou antes, capazes de reescrever essa história ainda inconclusa, como bem lembrou Dilma Rousseff em sua despedida do Alvorada!
notas
NE – texto originalmente publicado na página Facebook do autor.
1
O Processo. Direção de Maria Augusta Ramos. Documentário, Brasil/Alemanha, 2018. Elenco: Dilma Rousseff, Lula, Chico Buarque de Hollanda
sobre o autor
José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).