Esgotado em livrarias (físicas e virtuais) o livro Revistas em revista – imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922) é merecedor de uma reedição (que venha em breve!). Esta resenha é a minha forma de pleiteá-la.
Publicado originalmente em 2001, fruto da tese de doutorado da autora, Ana Luiza Martins, Revistas em revista é uma obra de fôlego, em enfoque, fundamentação e alcance de leitores. Eu a li pela primeira vez em 2006, e citei-a em minha tese de doutorado, defendida em 2008. Seu referencial teórico, com fundamento na história do cotidiano e das mentalidades, faz desta uma obra de grande interesse para pesquisadores, e o público em geral, que certamente será cativado pela abordagem, o texto e as lindas ilustrações.
A remissão histórica da obra informa que as revistas remontam ao século 17. A experiência pioneira no periodismo literário é francesa e vincula-se ao lançamento do Journal des Sçavants (posteriormente chamado Journal des Savants), que circulou em Paris de 1665 a 1795. É o que assinala a historiadora Ana Luiza Martins como uma informação que “a bibliografia é unânime em apontar” (p. 38). A historiadora aponta a existência de revistas também na Itália e Alemanha, igualmente no século 17.
Martins salienta que o periodismo tinha seu fulcro em “agremiações e/ou grupos que se queriam colocar, valendo-se do aperfeiçoamento do papel e de suportes técnicos que uma imprensa secular vinha permitindo operacionalizar” (p. 39). Esta conjuntura, acrescenta a historiadora, era favorecida de modo especial pela evolução dos meios de transporte.
Segundo a auotra, primeiro os jornais, e depois as revistas, transformaram-se em meios usuais de informação. Em tal contexto, confiava-se aos jornais as notícias de teor político e de imediata divulgação. Às revistas consignavam-se temas variados, de informação mais apurada, anunciando as mais recentes descobertas sobre as matérias tratadas.
Na Europa, o avanço técnico das gráficas, o aumento da população leitora, e o alto custo do livro desenharam a conjuntura propícia para o sucesso das revistas naqueles oitocentos, lembra Martins. Mas é o mérito de condensarem um diversificado conjunto de informações em uma só publicação que a autora considera o motivo determinante para o êxito desses veículos no século 19.
Ana Luiza acrescenta que situadas entre o jornal e o livro as revistas contribuíram para aumentar o público leitor, colocando o consumidor em contato com o “noticiário ligeiro e seriado, diversificando-lhe a informação” (p. 40). A esses motivos, a autora acrescenta ainda o baixo custo da revista.
As principais características com que a autora distingue as revistas oitocentistas dos livros daquele tempo assemelham-se às que os diferenciam na atualidade. São elas: a leveza da configuração, o menor número de folhas e a leitura entremeada de imagens. No respeitante a este último aspecto, os recursos atingidos pela ilustração são apontados pela autora como o “marco revolucionário” na trajetória da revista.
Citando Robert (1989); Freire (1943); Rocha (1985), Martins resgata aspectos adicionais do periódico, a saber: o caráter mais ou menos especializado da publicação; a periodicidade geralmente mensal; o fato de ser datada, de apresentar artigos originais de crítica ou análise; de passar em revista vários assuntos; de facultar um tipo de leitura fragmentada, descontínua, e por vezes seletiva; de ser quase sempre uma criação do trabalho em grupo.
Parece-nos pertinente acrescentar, a essas características, três outras. A primeira é a facilidade de aquisição, pois a grande maioria das revistas é comercializada em bancas de jornais, nas ruas das cidades (excedem tal quadro as revistas acadêmicas e as publicações comercializadas unicamente por assinaturas). Esse caráter explica em parte a penetrabilidade das mais diferentes revistas nas diversas classes sociais. A segunda característica é a facilidade de transporte e manuseio, permitindo a leitura sob as mais variadas – e até adversas – condições, a exemplo do transporte coletivo. Nesta facilidade reside a consideração dessa mídia como fortemente companheira.
Por fim, outra característica é a interatividade que facultam ao público leitor, desde seções de cartas a colunas direcionadas para responder as questões dos leitores, a partir das quais estruturam sua temática e seu texto.
Apesar do quão importante sejam esses aspectos na associação da revista com a memória, a afetividade sobrepuja-os todos. O público leitor de uma determinada revista tende a ver-se como uma comunidade, o que atualmente é muito incentivado pelas revistas, inclusive lançando mão de sites interativos. As revistas, assim como os livros, além de interagir com os leitores, tornam-se objeto de colecionismo e da formação de acervos.
Do ponto de vista da relação da revista com a memória, há ainda algumas considerações a fazer. Martins assinala como traço recorrente da revista o seu caráter fragmentado e periódico, “imutável nas variações geográficas e temporais onde o gênero floresceu, resultando sempre em publicação datada, por isso mesmo de forte conteúdo documental” (nota 12, p. 46).
Além do aspecto datado, outras características associam um jaez documental à revista. São elas: a própria historicidade de sua trajetória; a sua permanência como mídia ao longo dos tempos; a sua durabilidade como suporte, graças ao material papel, embora de encadernação menos durável que a do livro. Na ótica documental, as revistas são preciosas para a memória cultural, nela incluída a memória das cidades, sendo, portanto, muito valorizadas pelos historiadores, reconhecimento este arrazoado por Martins nos termos que seguem.
“Fonte preferencial para pesquisas de teor vário, a revista é gênero de impresso valorizado, sobretudo por “documentar” o passado através de registro múltiplo: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus consumidores.
O caráter lúdico desse periódico, de leitura amena e ligeira, explica a opção expressiva por essa modalidade de suporte da leitura na produção da História em suas múltiplas dimensões” (p. 21).
Apesar do quão importante sejam esses aspectos na associação da revista com a memória, a afetividade sobrepuja-os todos. As revistas, assim como os livros, além de interagir com os leitores, tornam-se objeto de colecionismo e da formação de acervos.
A afetividade por antigas revistas é flagrante nas falas de pessoas idosas, como se fossem esses periódicos parte integrante das suas famílias. No belo livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, de Ecléia Bosi, isso se faz presente no seguinte relato de Dona Jovina à autora: “Meu pai assinava revistas francesas: L’Ingénieur, La Nature, L’Illustration, que era linda, no Natal vinham cópias de pinturas célebres que se punham em quadro” (1).
Ao iniciar a exploração do caso específico das revistas em São Paulo no período de 1890 a 1922, Martins abre seu capítulo com uma epígrafe de Afonso de Freitas. Ei-la:
“[...] a história da imprensa paulistana é a própria história intelectual e política, é a documentação mais abundante e valiosa da história da evolução social moderna de nossa terra, em suas ramificações várias, porquanto São Paulo, máximo expoente da civilização e do progresso brasileiros, reflete com intensidade extrema todas as irradiações de uma perfeita nacionalidade adiantada” (epígrafe do capítulo "Cidade mercadoria: a venda de uma imagem", grifo de Martins, p. 471).
Na sequência do capítulo aberto pela citação acima, desvela-se São Paulo por suas revistas em tempos de República. É um tratamento impecável do caso empírico, e um passeio literário fartamente ilustrado por capas de revistas da época. Entre elas, figuram: Illustração Paulista (1893); Vida Paulista (1905); O Álbum Paulista, (1913); São Paulo Magazine (1906), Illustração de S.Paulo (1917); São Paulo Illustrado (1920).
Chegando a este ponto do livro, penso que é o momento de silenciar. É hora de deixar que os leitores saboreiem as antigas revistas, no enfoque de Martins. Não quero que os internautas sejam incomodados por um spoiler desta que é uma obra tocante para quem, como eu, padece da paixão pela coisa impressa. Boa leitura a todos!
nota
1
BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 281.
sobre a autora
Eliane Lordello é Arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) e Doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Histórico (UFPE, 2008). É Arquiteta da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.