O desenho marca uma das mais constantes preocupações de arquitetos e estudantes de arquitetura em São Paulo. Talvez essa condição explique a grande quantidade de reflexões sobre o tema que se registra em ensaios, dissertações e mestrados e teses de doutorado apresentadas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo desde sua fundação e onde Os croquis e os processos de projeto de arquitetura, de Rafael Antonio Cunha Perrone, foi apresentado como tese de livre-docência. Ainda que a pesquisa em grande parte tenha sido propiciada e desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Isso porque, eu suponho, nunca houve em séculos anteriores uma tradição de pintura em São Paulo como em outras regiões do Brasil, como no Nordeste ou em Minas, nas quais se desenvolveu um aprendizado local e constante, capaz de caracterizar uma tradição. Os pintores que aqui exerceram sua atividade (reconhecidos em geral nas Igrejas), já vieram prontos, por assim dizer, como o mineiro Patrício da Silva Manso, o mestre de Jesuino do Monte Carmelo (e indiretamente de seu filho). Na realidade os artistas que se sobressaíram em São Paulo eram autodidatas, como os primeiros desenhistas da família Dutra, sendo Arquimedes Dutra aluno de Escola de Arte italiana. Foi professor na FAU USP.
Renato Palumbo Doria que apresentou em 2005 a tese de doutorado “Entre o Belo e o Útil: Manuais e Práticas do Ensino do Desenho no Brasil do Século 19", ao pesquisar o ensino de desenho, achou um documento registrando uma escola de pintura situada no próprio Palácio do Governo Paulista. Parece que essa escola funcionou até a morte do professor na segunda metade do século 19, extinguindo-se então sua existência. Alguns quadros produzidos encontram-se no Recolhimento da Luz, mas pela modéstia de sua realização, pode-se pensar em atividade mais amadorística do que profissional. No final do século 19 e no inicio do século 20, tanto Almeida Junior como Candido Portinari, foram estudar fora de São Paulo, aliás, como Anita Malfatti que estudou na Alemanha e Estados Unidos ou Tarsila do Amaral, que depois de aulas particulares (como qualquer moça prendada de sua classe), freqüentou os ateliers de Andre Llote e Fernand Leger.
O próprio grupo do Santa Helena (Rebolo, Volpi, Zanini, Figueira), pode ser caracterizado como autodidata e o mesmo do estudante de engenharia Vilanova Artigas, associado a esses artistas, particularmente durante os finais da década de 30 do século passado.
Nas Escolas de Belas Artes, inclusive na mais importante entre nós, a Nacional do Rio de janeiro, o desenho não era problema, pois, só era admitido como aluno quem já sabia desenhar. Na Politécnica de São Paulo igualmente não era o desenho problema, mesmo o técnico, era irrelevante: diferente das escolas de engenharia francesas como nos mostra o pesquisador A. Picon, nem mesmo em São Paulo a geometria descritiva era cultivada, com um ensino simplificado. Nada parecido com as grandes épuras que encantavam (não só instruíam) de outras escolas técnicas do exterior do país. Eis porque, talvez, o desenho e seu aprendizado se tornou um problema para estudantes de arquitetura, desde as primeiras turmas.
Em 1998, por ocasião da festa do cinqüentenário da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, eu imaginei fazer uma exposição só de pintores e desenhistas da Escola, entre alunos e professores; chegamos a arrolar os nomes de 80 artistas, alguns vivendo no exterior. Não só Mauricio Nogueira Lima, Claudio Tozzi, ou Odileia Setti Toscano, Artigas ou Ernesto Carvalho Mange poderiam participar dessa exposição. O professor Mange, pouco antes de morrer inaugurou uma exposição de pintura que eu me comprometi a criticar com o autor, mas lamentavelmente não aconteceu. Igualmente a grande exposição, por falta de recursos também não se realizou, mas muitas propostas aqui gestadas pavimentaram as realizações atuais aqui e pelo Brasil. Porque ainda que individuais, em suas iniciativas, todas as atividades artísticas são sempre coletivas.
Esta tese, “Os croquis e os processos de projeto de arquitetura” de Rafael Perrone, se insere nesse percurso. Porque, se a obra de arquitetura enquanto realização absorve o conhecimento coletivo tanto no que concerne às ciências exatas, como as ciências sociais, ela ainda não pode deixar de ser uma intervenção modificadora da realidade em que nos movemos. Mas ela é também o registro de uma proposta que visa afetar a vida de todos.
Nesse sentido, todo este discurso só pretende expor essa outra face da realidade: é um momento de arte, e só por isso ele se justifica.
O trabalho ora apresentado pode ser entendido como um prolongamento de sua tese de doutorado, que também versa sobre o desenho. Mas essa tese analisa o desenho enquanto conhecimento (e veículo de transmissão do conhecimento) enquanto sua tese de livre docência centra todo trabalho na exposição da intervenção, naquilo que nos distingue de todos os outros animais, ou seja, como observa Marx o que distingue um modesto arquiteto de uma abelha é que o arquiteto, antes de agir tem um projeto prévio na cabeça.
Sim, mas esse projeto se desenrola no próprio processo de se realizar. Se nós reproduzirmos os desenhos iniciais das obras de Palladio, guardadas cuidadosamente no RIBA, devido ao zelo de Inigo Jones que os comprou quando sua viagem à Itália e aproximarmos dos croquis de um estudante iniciante de arquitetura, veremos que eles pouco se distinguem: é que eles se encontram no mesmo estágio de elaboração e portanto usam dos mesmos recursos.
Mas não podemos supor que essa semelhança seja identidade: cada um dos “croquis” subentende universos semânticos distintos. Também não podemos supor que se trata de um momento inaugural: o arquiteto Matheus Gorovitz há vinte e cinco anos atrás me enviou 80 folhas de “croquis” do arquiteto Oscar Niemeyer para o Palácio do Congresso em Brasília, e que eu publiquei em minha tese de livre-docência com permissão do autor, nas quais se poderiam reconhecer dezenas de soluções espaciais e plásticas para o mesmo programa. Todas igualmente válidas se bem que não teriam o mesmo efeito daquela escolhida. Esta depois de transformada em obra tornou-se o emblema visual da cidade como Capital da República. Ou seja, o “croquis inicial” é na verdade uma etapa final de uma longa e trabalhosa opção projetual.
A tese de Rafael Perrone apresenta-se em um volume, um que poderia ser considerado a das afirmações do autor e entrevistas com arquitetos e professores de arquitetura. Na medida mesma que a tese se apresenta com uma investigação empírica, faz parte do trabalho, essa coletânea de entrevistas. E se o primeiro capítulo se apresenta o croquis como a gênesis do projeto, a afirmação mais constante é que o projeto (particular) tem sua origem no próprio projeto (projetos anteriores). Ou seja, o processo do projeto é um percurso circular paradoxalmente sem começo e sem fim. No seu desdobramento, embasa-se a idéia como mero corolário, que o projeto origina (e se origina) no aprendizado do projeto. E se desenvolve, obrigatoriamente, no ensino do projeto.
Ora, ao mesmo tempo em que o autor registrou dezenas de entrevistas, exibindo a herança de sua formação arquitetônica de exatidão das ideias, na medida mesma que sem nunca mencionar um estudo de sua obra, o conjunto de tese expõe na exatidão de sua linguagem, um projeto de sua vida. Então se pode afirmar, que o trabalho do professor desvela um desejo, não a realidade vivida, mas a realidade desejada: propriamente, uma obra de arte.
nota
NE – O presente texto é o prefácio do livro comentado.
sobre o autor
Julio Roberto Katinsky é arquiteto e doutor em arquitetura (FAU USP, 1957 e 1973). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo e membro de corpo editorial da Pós, revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da instituição.