Imagens, sons e palavras são a tríade que dão corpo a um complexo signo híbrido que se desenvolveu ao longo do século 20 e alcança níveis cada vez mais sofisticados no século 21: o cinema. Tomemos aqui como signo a definição do pai da matéria, o filósofo, lógico, cientista e matemático norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914): signo é qualquer coisa que representa alguma outra coisa para alguém.
Tragamos mais uma camada para a equação: a obra do cultuado cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1), que chamou a atenção do mundo para a cinematografia de seu país. Expoente do cinema produzido no Irã a partir do final dos anos 1980 (2), o diretor, morto em 2016, explora a capacidade de reflexão da arte cinematográfica e cria uma obra singular que pensa e questiona o cinema enquanto linguagem, arte e ferramenta de representação do real. Seu formalismo próprio se une a uma estética social, dando origem a um cinema poético, político, metafórico, autorreflexivo e autorreferente.
Autorreflexão e autorreferência são as bases de Shirin (2008), uma de suas obras mais radicais, que propõe uma inédita relação entre espectador e filme. Planos estáticos se alternam em cortes secos para trazer à tela apenas as expressões de uma plateia em uma sala de cinema. Mulheres em primeiro plano ora choram, ora sorriem, ora sofrem, ora se angustiam (figuras masculinas são raras e, quando aparecem, estão nos cantos dos planos). Sem falas ou diálogos entre elas, ganham protagonismo exclusivamente suas expressões. E isso é o que nos entrega a tela.
Extracampo estão os sons e diálogos do filme a que assistem aquelas mulheres: A História de Khosrow e Shirin, baseado em um poema persa do século 12 sobre os amores de uma princesa armênia pelo rei da Pérsia. Na junção entre o que ouve e as reações que vê, o espectador constrói o filme, costurando no imaginário as duas camadas dissociadas – som e imagem – que Kiarostami nos oferece. Assistimos a um filme e ouvimos outro.
No caminho da leitura semiótica da obra (3), o primeiro passo, conforme indica Peirce, é abrir o olhar para os fenômenos. Olhos – e sentidos – disponíveis, o que nos invade é o escuro do espaço de projeção, que retoma o conforto uterino inerente à sala de cinema, aspecto qualitativo localizado na primeiridade perciana, campo das sensações abstraídas de julgamentos, de onde emerge o caráter de qualissigno do filme, ou seja, as primeiras impressões sensórias e abstratas que ele desperta no espectador.
Depois do primeiro passo, é necessário dar o segundo: o olhar observacional. É o momento de lançar mão da capacidade perceptiva, da análise de como o signo se corporifica, ou seja, de seu caráter de sinsigno, como Peirce chama os signos imbuídos de secundidade, categoria do singular, do aqui-agora, do existente. Não é de se estranhar certo desconforto diante do filme, corporificado pela subversão de Kiarostami das convenções narrativas clássicas do cinema, que sugere um exercício que exige a participação do espectador, diferente da posição passiva assumida frente à linguagem clássica que “aprisiona” o nosso olhar.
Após sentir e observar, é momento de generalizar. Chegamos, então, ao terceiro passo, situado na terceiridade peirciana, quando deve-se extrair de um fenômeno aquilo que ele tem em comum com outros e com os quais forma uma classe. Esse é o habitat do legissigno, signos com caráter de lei, de regularidade. Regularidade que, em Kiarostami, mora na irregularidade: Shirin integra a cinematografia do diretor, cujos traços comuns que compõem sua obra são o incomum, o deslocamento do olhar.
Olhar que, obviamente, participa ativamente do filme que vemos. Nele, emergem rostos sem fala. Ausência de língua, mas não de linguagem. Os signos-expressões das mulheres são reflexo das interpretações do signo-filme a que assistem. Seu potencial interpretativo – propriedade sígnica que Peirce chamou de Interpretante Imediato –, o efeito de um signo que, dada sua natureza e contexto, pode vir a se efetivar ao encontrar um intérprete, se traduz em Interpretantes Dinâmicos – como Peirce chamou o efeito que um signo efetivamente produz em um intérprete – expressados em reações de angústia, medo, susto, compaixão e prazer com a história de Shirin.
Mulheres trazem expressões-interpretantes de susto e angústia ao ouvirem sons de trovão, uma delas fecha os olhos ao assistir ao sonho de guerra de Shirin, outra desvia o olhar no momento em que ouvimos sons de espadas perfurando corpos, muitas sorriem quando Shirin parte em busca de seu amor, algumas ficam indiferentes a várias dessas passagens e a perda do amor de Shirin é o único momento em que, na tela, uma expressão-interpretante se repete: a tristeza.
A partir do filme que vemos nós, espectadores-intérpretes de espectadoras-intérpretes, registram-se semioses de semioses, que integram o processo de construção de interpretantes em Shirin: replicamos os Interpretantes Dinâmicos da história que ouvimos a partir da mediação das expressões que nos sugerem os efeitos sígnicos do filme naquelas espectadoras; são elas que determinam a interpretação do filme que ouvimos.
O que ouço e o que vejo me contam a mesma história: a busca de Shirin pelo amor do príncipe persa. É essa a “realidade” que o filme tenta representar; é esse seu Objeto Dinâmico, definido por Peirce como o objeto ao qual o signo se refere. Shirin e A História de Khosrow e Shirin representam o mesmo Objeto Dinâmico através de diferentes Objetos Imediatos – como o signo se reporta ao seu OD –, um dentro do outro; objetos híbridos dentro de um signo híbrido.
Camadas e elementos imbricados que exigem a retomada constante da primeira lição de Peirce e Kiarostami, que corporifica uma convergência conceitual fundamental da semiótica peirciana e do cinema kiarostâmico: libertar o olhar.
Que subam os créditos.
notas
1
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
2
MELEIRO, Alessandra. O novo cinema iraniano: arte e intervenção social. São Paulo, Escrituras, 2006.
3
SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. 2ª edição. São Paulo, Cengage Learning, 2018.
sobre a autora
Magaly Corgosinho é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e pós-graduada em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos pelo Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação, da Universidade de São Paulo. Autora da monografia Cinema Documentário: Ficção e Realidade em Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho (2007) e do artigo “De objeto a sujeito: os índios como protagonistas da produção audiovisual” (2012).