A questão se agrava no contexto latino-americano, no qual os professores tiveram sua formação superior estruturada, principalmente, sob bases eurocêntricas, nas quais a arquitetura latina era tida como marginal – ou, segundo Marina Waisman (3), “regionalista” – e a mulher era eclipsada pela historiografia. Ana Gabriela Godinho Lima (4) discute a bibliografia básica estudada na graduação em Arquitetura e Urbanismo, argumentando sobre a importância de se apresentar ao alunado uma visão mais ampla da realidade. A atuação do educador passa por reinvenções constantes e a exposição às dificuldades inerentes da atividade diária, o posiciona em uma condição de buscar o autoconhecimento periódico das suas ações perante os alunos e a ele mesmo. O olhar sensível do educador sobre si, parece revelar vícios e virtudes, dúvidas e medos, humanizando-o e criando empatia. Michel Foucault (5) afirma que “não se pode transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado consigo mesmo”, pois, assim como na política não é possível governar sem autoconhecimento, o mesmo cabe à educação.
Dentre outros autores que estudam a questão da docência no ensino superior pode-se destacar as pesquisas das professoras Selma Garrido Pimenta, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e Léa das Graças Camargo Anastasiou, professora da PUC-PR. Anastasiou e Pimenta (6) abordam questões relativas às exigências atuais da profissão, as condições de trabalho e o processo de ensino-aprendizagem. Sinalizam a crescente preocupação com a formulação de políticas que caracterizem o exercício da profissão, uma vez que, a formação pedagógica específica para o professor de ensino superior não existe.
Mediada pela professora Ana Gabriela Godinho Lima, a mesa redonda (7) realizada em outubro de 2018 no programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, contou com a participação dos professores doutores convidados: Paulo Bruna (FAU USP e FAAP), Volia Kato (Mackenzie), Aline Nassaralla (Belas Artes) e Márcio Novaes (FAAP). De um modo geral, todos comentaram sobre o início da carreira e pontuaram algumas questões-chave presentes no ambiente de ensino de Arquitetura e Urbanismo. Dentre elas estão: a preocupação com a falta de incentivo à pesquisa, a importância da inovação no conhecimento e a necessidade de emancipar o aluno, revendo a sua relação com o professor na sala de aula, de modo a favorecer a criação de um ambiente que favoreça a troca de conhecimento, buscando posicionamentos críticos. Além disso, pontuou-se a relevância de haver uma integração maior entre as disciplinas teóricas e práticas, para que o aluno tenha uma base maior de conhecimento ao projetar e enriqueça a troca de opiniões entre os mais experientes e os ingressantes.
Os professores Paulo Bruna e Volia Kato enfatizaram a necessidade de se rever a posição do professor em sala de aula, como uma figura catedrática, na qual se transmite o conhecimento aos alunos, de maneira acrítica como verdade absoluta. Hoje, há uma abertura maior às opiniões diversas. Comentou-se sobre a necessidade do incentivo à leitura, às práticas emancipadoras do alunado e a própria relação entre os professores em sala de aula. Estes pontos de discussão levaram ao posicionamento do professor Márcio Novaes, que discorreu sobre a dificuldade dos alunos em receberem críticas, principalmente, com relação às criações autorais. Esse assunto levantou uma nova questão à mesa: como lidar com a divergência de opiniões entre aluno e professor sobre um determinado assunto? Neste contexto, discutiu-se que este é um desafio contemporâneo e que a falta de debate e de pensamentos diferentes prejudica a evolução da individualidade dos alunos.
Durante o debate, as seguintes questões merecem destaque: como ocorre a relação, em sala de aula, dos professores mais experientes com os mais jovens; sobre a existência de um distanciamento entre as práticas profissionais e as acadêmicas e em relação às normativas do MEC em exigir o título de mestre e doutor como um fator obrigatório para dar aula; como lidar com a geração atual de jovens, que muitas vezes passam por problemas psicológicos, como a depressão; se a profissão de professor de Arquitetura e Urbanismo é um trabalho valorizado e onde está o valor desta profissão; como manter a motivação – o brilho no olhar – não apenas do aluno, mas também do professor, quando ele tem que repetir o conteúdo com o qual trabalha diversas vezes?
A professora e socióloga Volia Kato comentou sobre suas práticas pedagógicas adotadas no início de sua carreira, quando introduzia leituras teóricas de sua área de conhecimento e propunha aos alunos associá-las às aproximações empíricas e idas a campo. Para ela, os professores devem despertar nos alunos uma visão de mundo, mobilizando interesses para a busca do conhecimento de forma independente. A medida que estimula o prazer pela leitura e pelo conhecimento, o professor deve instigar o aluno, no despertar a sensibilidade do olhar para o mundo das ideias, dando diretrizes aos caminhos que serão seguidos pelos próprios alunos. Para que isso ocorra é necessário existir reciprocidade entre docente e discente, tal qual ocorre quando se compreende a existência de igualdade na relação. A professora Aline Nassaralla apontou para a necessidade de desestigmatizar a figura de mestre e discípulo na relação, humanizando a figura do professor. O filósofo Jacques Rancière (8) acredita que esta emancipação é, de fato, uma troca, pois ambos se beneficiam à medida que o professor é humanizado e o aluno é reconhecido e valorizado como ser pensante.
Ser docente em uma universidade implica em um conjunto de tarefas complexas, que depende de cada professor, da sua maneira de ver, de sentir e de reagir. Talvez, seja de fácil associação saber o que ensinar, mas o mais complexo seja o como ensinar. Os professores de Arquitetura e Urbanismo, na maioria das vezes, não recebem formação didática. Essa questão configura-se como um importante foco de pesquisa, devido às crescentes discussões nos cursos de bacharelados sobre a falta de formação pedagógica, à exemplo do que ocorre nos cursos de licenciatura. A maneira como os novos professores enfrentam, estudam e abordam as dificuldades da carreira acadêmica impacta em transformações no ambiente professoral.
A complexidade crescente na temática do ensino da Arquitetura e do Urbanismo na contemporaneidade, as inquietações sobre o papel do professor em sala, os conflitos entre discentes e docentes deram a tônica dessa reflexão. Nesse sentido, tornou-se imprescindível a autoavaliação por parte dos professores, sobretudo, com a apropriação dos conhecimentos adquiridos por parte dos mestrandos e doutorandos, e com vistas às futuras atuações dos mesmos no meio universitário. Fica evidente através das discussões, as conexões implícitas entre os saberes da profissão do arquiteto, e como isso influencia na vivência em sala de aula. O tema “Autorreflexão”, proposto pelo grupo, proporcionou aos docentes um momento para repensar aspectos da sua vivência no ambiente acadêmico. Como resultado, percebeu-se uma sensibilidade, domínio e profundidade das experiências acadêmicas de cada um, explorando questões que permeiam o ensino de Arquitetura e Urbanismo.
Através das exposições e depoimentos desses profissionais, conclui-se que existe uma preocupação no modo de se compartilhar conhecimento no curso de Arquitetura e Urbanismo e que a autorreflexão trouxe à tona práticas desprendidas da visão “tradicional e catedrática” do professor. A importância das palavras “honestidade”, “aproximação” e “abertura”, até então, restritas às relações pessoais, migraram também para o ofício professoral. Principalmente, no campo da Arquitetura e do Urbanismo, uma profissão que trabalha com o lado criativo e pessoal do ser humano, muitas vezes fechado a críticas. Ensinar é doar-se, é ter empatia para com o outro, é despertar o interesse do estudante para a riqueza e complexidade da profissão escolhida.
“O papel do professor é inspirar”
Ana Gabriela Godinho Lima, 2018
notas
1
PERRENOUD, Phillipe. Dez novas competências para ensinar. Convite à viagem. Tradução Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre, Artmed, 2000.
2
“Uma boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, e sobretudo de sua história de vida escolar (BUTT E RAYMOND, 1989; CARTER E DOYLE, 1996; JORDEL, 1987, RAYMOND, no prelo a, no prelo b; RICHARDSON, 1996). Os professores são trabalhadores que foram mergulhados em seu espaço de trabalho durante aproximadamente 16 anos (em torno de 15 mil horas), antes mesmo de começarem a trabalhar (LORTIE, 1975)”. TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, n. 13, São Paulo, jan./abr. 2000, p. 13. Disponível em <http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n13/n13a02.pdf>.
3
WAISMAN, Marina. O interior da história. Historiografia para uso de latino-americanos. Tradução: Anita Di Marco. São Paulo: Perspectiva, 2013;
4
LIMA, Ana Gabriela Godinho Lima. Ensino de arquitetura e urbanismo: discurso, prática projetual e gênero. No prelo, 2017.
5
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Frédéric Gros. 2ed. São Paulo, Martins Fontes, 2016.
6
ANASTASIOU, Lea das Graças Camargos; PIMENTA, Selma Garrido. Docência no ensino superior. 5a edição. São Paulo, Cortez, 2014.
7
Mesa redonda "Auto-reflexão: o que é ser professor de arquitetura e urbanismo no contexto contemporâneo? FAU Mackenzie, São Paulo, 9 de outubro de 2018, das 19h20 às 22h50.
8
“A emancipação é a consciência dessa igualdade, dessa reciprocidade que, somente ela, permite que a inteligência se atualize pela verificação. O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência. E o que embrutece os ‘inferiores’ embrutece, ao mesmo tempo, os ‘superiores’. Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a um semelhante, capaz de verificar a igualdade das duas inteligências. Ora, o espírito superior se condena a jamais ser compreendido pelos inferiores. Ele só se assegura de sua inteligência desqualificando aqueles que lhe poderiam recusar esse reconhecimento”. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. São Paulo, Autêntica Editora, 2010.
sobre os autores
Flavia Guedes, Hugo Rossini Costa Longa, Rita Patron, Taís Ossani e Thais Luppi Cardoso são alunos de mestrado do Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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