Na historiografia da arquitetura e da cidade baseada na imagem fotográfica, a utilização da câmera para o registro do espaço vai além da mera documentação. A produção fotográfica é assim parte do processo de, não apenas documentar, mas interpretar e escrever a história, criando imaginários coletivos e individuais sobre esses espaços. Nesse sentido, a fotografia é colocada como método de percepção do espaço, capaz de construir essas representações. A imagem é utilizada como instrumento de construção do imaginário das cidades, territorialidades que povoam a memória de um povo. A fotografia constitui um dos principais veículos através dos quais recebemos informações que nos levam a conhecer a realidade da cidade e arquitetura.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos (1), Marcelo Masagão (2), direciona o espectador através de uma deambulação pelas memórias do século 20 em uma verdadeira viagem entrecortada e entrelaçada pela recente história do mundo. Enquanto Masagão atravessa diferentes épocas e locais em uma estrutura fragmentada, trazendo imagens cotidianas dos sujeitos associadas a grandes acontecimentos humanos, José Inácio Parente (3), em Rio de Memórias (4), traça uma narrativa histórica linear, a partir de uma caminhada pelo tempo histórico tendo como ponto de partida a descoberta e uso da fotografia no Brasil e sua importância no registro e manutenção da história social na construção de paisagens brasileiras.
Apoiando-se em diferentes estruturas, ambos os filmes constroem espaços e territorialidades próprias. Porém constroem também entrelaçamentos, nós de histórias possíveis, na investigação da imagem como ferramenta, meio de transmissão e salvaguarda de uma memória cultural essencial à construção historiográfica da narrativa histórica do século 20.
Na história da arquitetura e da cidade os nós, interstícios urbanos, se definem como o espaço do encontro, da alteridade, onde se desenvolvem as relações humanas e sociais, onde a história acontece e a memória se constrói. Na história os marcos temporais dos grandes acontecimentos humanos podem ser tomados como pontos nodais. É na exploração desse caminhar entre as imagens que se abre as possibilidades de reapropriação do espaço, do lugar entre os nós da história e das cidades. A imagem não é estática, ela assume o lugar da prática, da ação no espaço, que gera o ato, mais do que o fato, histórico.
Aqui, os diretores caminham além dos entrocamentos, investigam os espaços temporais entre-nós, entre os nós. Os documentários são produzidos a partir do uso de imagens e montagens que nos remetem a memória coletiva, social. As imagens associadas dialeticamente aos espaços que elas produzem, traduzem elementos e fatos que, registrados e associados a textos e à própria trilha sonora, mostram, além da evolução da sociedade do século 20, aquilo que somos capazes de criar, destruir e amar.
Tanto Parente quanto Masagão investigam elos, resgatados e perpetuados através da imagem em nossa memória histórica e traduzidos em emoções e sentidos de nossa existência. A imagem marca assim períodos subjetivos, perdidos nas dobras do tempo, vivenciados por pessoas, sujeitos históricos, personagens conhecidos e anônimos, que realizam aquele momento recortado por meio do outro, o fotógrafo, que os observa e registra e o cineasta que resgata esses registros a fim de contar uma história. Mais do que isso registra as territorialidades dos sujeitos e suas formas de ocupar o mundo, de migrar, caminhar e transitar nos espaços, entre os espaços. Em ambos os documentários, a trilha, além do texto em off (Parente) e escrito (Masagão), conduzem o expectador, criando ritmo e dando movimento às narrativas.
Para Maria Stella Brescianni, as cidades são “antes de tudo uma experiência visual”, onde a própria representação da cidade muda de acordo com o sujeito que a percebe. Assim, a autora aponta como necessária a atenção ao tratamento da narrativa do espaço como produtora de imagens que contribuem para a compreensão da cidade, uma vez que essa narrativa “traduz o olhar do viajante e dos transeuntes mais atentos”, e cria uma representação estética do espaço (5).
Nesse sentido, Parente caminha por um Brasil colonial, escravocrata, atravessando momentos históricos de movimentações políticas e sociais, com os trabalhadores de indústrias, movimentos anarquistas e políticas higienistas, chegando ao passado recente por meio de uma narrativa que transita entre o literário e o documental, trazendo à tona os debates modernos na teoria historiográfica sobre o real e a ficção na construção da história. O documentarista traz o contexto social como pano de fundo, cenário, onde a imagem registra a memória da construção social da cidade do Rio de Janeiro. Ainda nesse sentido, ao seguir uma lógica não-linear e não cronológica em sua narrativa, Masagão força ainda mais os limites entre verdade e simulacro no fazer histórico, em 73 minutos em sua quase desconstrução do tempo, o diretor mescla imagens de acervos históricos, revistas e jornais, bem como da própria ficção do cinema, criando uma colagem histórico-literária do século 20.
Em Rio de memórias, José Inácio Parente coloca que “as civilizações que não conheceram a fotografia morreram duas vezes” – segundo ele, a fotografia é uma linguagem compreendida por todos os povos, testemunha dos sofrimentos, das lutas e vitórias e que ajuda a atravessar e perpetuar a história individual e da humanidade. Aqui, Inácio associa a descoberta da fotografia e sua capacidade de guardar a história como verdadeiro milagre, “retratos sobre papel” [...] “pintura sem palheta e pincel” [...] “a própria luz é a pintora”. Enfim revela o papel transformador da imagem. Grandes nomes são associados neste processo, como Dom Pedro II, Augusto Malta e Marc Ferrez, entre outros.
Cabe destacar aqui o papel do narrador, enquanto construtor da história, que também traz à tona o debate sobre subjetividade e objetividade na historiografia, que é pano de fundo para a dialética entre realidade e ficção. No processo de construção da história, da memória e do próprio acontecimento há, a partir do uso da imagem, de um lado, determinantes tecnológicos de um instrumento óptico, mecânico e químico de precisão inquestionável, de outro, o poder da escolha de quem manipula a ferramenta e do seu conhecimento e visão do mundo. No processo de construção do documentário há ainda duas escolhas, a do sujeito que produziu as imagens em determinado contexto histórico e social e a do documentarista que as seleciona a fim de construir uma narrativa especifica. Esse processo é ainda mais significativo na obra de Masagão onde a escolha da composição e do entrelaçamento das imagens cria uma narrativa conectada onde as imagens se interligam, levantando assim, questionamentos sobre a linearidade dos acontecimentos históricos, onde ações deslocadas no tempo se incorporam e dialogam.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, Marcelo Masagão utiliza a velocidade dos fatos transcorridos e uma aparente desordem cronológica, criando uma representação onde os eventos se misturam a partir de nuances temáticas que se sobressaem no decorrer do século – as grandes guerras, a eletricidade, revolução industrial, revolução feminista, ditadores, arte, religião etc. – capaz de criar o esperado impacto no espectador, mostrando a capacidade de adaptação da sociedade e de sua forma de contar histórias por meio de imagens: passado, presente e a expectativa de futuro que convergem de forma dinâmica no mundo contemporâneo.
Assim, que ao contar histórias por meio do uso de imagens fotográficas é possível expandir a própria memória social da história narrada para além da linearidade do tempo, criando uma proximidade espacial na própria estrutura cinematográfica, sendo capaz de influenciar as representações que formam a memória coletiva (6) dos sujeitos sociais.
A imagem constrói, então, não apenas a História, mas histórias, por vezes contraditórias - nem sempre o que se é, é o que se vê. A possibilidade de manipulação da imagem pode emergir como forma de mudar a própria história. Ainda assim, a fotografia é revelada como ferramenta poderosa no auxílio do trabalho do historiador, na construção e na convergência da visão do público para expectativas e similaridades de um contexto que existiu, mas que também foi construído a partir do imaginário e do contexto subjetivo daqueles que a contam.
Nesse sentido, ambos os filmes tratam exatamente desse poder da imagem da memória, de sua força na construção de narrativas e imaginários sociais. A força da imagem na historiografia de um passado recente, fragmentado, em constante movimento e que se revela a partir das histórias dos sujeitos e personagens. Masagão encerra a narrativa com a imagem, que se repete durante o filme, do cemitério, que revela a relação explícita com a morte que espera por todos, mas também com as rupturas onde são apontadas “mortes” de passados para dar lugar ao novo, durante o curto, porém turbulento século de extremos mostrado.
Sugere-se no documentário a mesma dissolução da formalidade que norteou a produção do século 19, principalmente a produção espacial. Que dá lugar à um mundo amórfico caracterizado pela fluidez, pela ausência de limites e pela constante mutação em uma situação onde somente o valor da ação tem sentido. O valor da ação é reproduzido tanto na produção da história quanto do espaço e, consequentemente, na história do espaço. A estrutura fílmica de Masagão reflete, portanto, essa influência da estética fragmentada do século 20.
Para Maria Stella Bresciani (7), a história das cidades possui uma expressão estética, onde se identifica a relação entre a materialidade dos espaços e suas referências para o habitante. Nesse sentido a cidade moderna seria pautada pela relação entre o sujeito e a cidade, de dois pontos de vistas distintos, um racional e universalista e outro cultural e histórico, juntamente com o debate sobre arte e técnica na produção da cidade. Assim, procura-se entender os espaços construídos de um ponto de vista estético de maneira a compreender seu caráter visual, suas interpretações, configurações e multiplicidades a partir das imagens das paisagens urbanas.
A compreensão da modernidade e da fragmentação das cidades faz parte da aceitação da própria condição do homem moderno. Nesse sentido o moderno é o transitório, efêmero, rápido. A modernidade seria o próprio progresso e mobilidades das formas. Assim, as espacialidades são construídas a partir de representações dinâmicas, compostas pelos materiais recolhidos da memória e que atuam sobre as ideias e comportamentos individuais e coletivos. Em Rio de memórias, Parente reflete sobre tais representações dos espaços ao mesmo tempo que cria uma representação própria da cidade do Rio de janeiro o começo do século 20. Assim, a imagem seria uma ilusão de uma janela aberta para o mundo, seu conteúdo e a maneira que é decifrado, bem como, por quem é decifrado, define o sentido da imagem, a realidade que ela cria e seu papel na história.
Em um debate contemporâneo sobre o papel da imagem na historiografia, a partir de seus contextos temporais específicos, ambos os filmes trazem um convite a transitar pela própria narrativa e compreender as possibilidades metodológicas do fazer histórico a partir da produção imagética, da exploração dos limites entre os espaços literais e, bem como dos tensionamentos entre realidade e ficção, objetividade e subjetividade, na historiografia das cidades e da arquitetura. Os autores conduzem o espectador em um flanar que explora as possibilidades da narrativa imagética e de suas espacialidades no próprio fazer histórico.
notas
1
Nós que aqui estamos por vós esperamos, direção de Marcelo Masagão, filme documentário, 73 min, Brasil, 1999. Link no Youtube <www.youtube.com/watch?v=gmqXVwfUHxE>.
2
Marcelo Masagão é cineasta brasileiro, que estreou como diretor de longas-metragens com “Nós que aqui estamos por vós esperamos” (1998), filme que se situa entre o documentário e o ensaio, construído a partir da montagem de fragmentos de cinejornais e documentários.
3
José Inácio Parente é cineasta brasileiro, que dirigiu A trama da rede (1980) e Acorde Maior (1983). Em “Rio de memórias” retrata a evolução e experiências fotográficas do século XIX no Brasil, mostrando a evolução da cidade, a partir do acervo original de fotógrafos como Marc Ferrez, o Imperador D. Pedro II, Augusto Malta, etc.
4
Rio de memórias, direção de José Inácio Parente, filme documentário, 47 min, Brasil, 1987. Link no Youtube <www.youtube.com/watch?v=OEP2AT5CN_A>.
5
BRESCIANNI, Maria Stella. História e historiografia das cidades, um percurso. In: FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Alameda, 2011, p. 402.
6
Para Maurice Halbwachs, as relações sociais estão constantemente presentes na formação das memórias e somente a partir delas o sujeito é capaz de lembrar. A memória não é individual, é social, e se o sujeito lembra é sempre por conta de uma alteridade presente, nunca é um processo totalmente individual. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo, Centauro, 2006.
7
BRESCIANNI, Maria Stella. Cidade, cidadania e imaginário. In: SOUZA, Celia Ferraz; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens urbanas. Porto Alegre, Editora da Universidade, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997.
sobre a autora
Luciana Jobim Navarro, arquiteta e urbanista, mestre em Teoria e História da Cidade, especialista em Artes Visuais e Planejamento de Cidades e Doutoranda em História Cultural no departamento de História da Universidade de Brasília.